A última coisa que se soube sobre o
Holandês é que ele era nascido na Albânia e tinha passaporte
britânico. Era um homem muito alto, gordo, com uma grande cara
vermelha e gaiata; gostava de tomar cerveja consumindo toda sorte de
peixes em conserva, frios, do Báltico. E frequentava um bar que
havia em Tânger chamado Consulado — um bar cujo nome permitia a
cônsules e auxiliares de qualquer país telefonar para casa a
qualquer hora dizendo honradamente que estavam no Consulado.
O Holandês não era cônsul, era homem
de negócios — não de um grande negócio, mas de muitos pequenos
negócios, por exemplo: sócio de um varejo de cigarros e de dois
táxis de turismo, intermediário correto na venda de alguns artigos
de contrabando, representante de uma companhia de navegação cujos
navios nunca vinham a Tânger, mas aceitavam transbordo de
mercadorias para alguns portos do Mar do Norte; organizador de
banquetes e coquetéis; entendia um pouco de tudo, inclusive de
moedas e selos raros; tinha uma pequena mulher de cabelos brancos
azulados, sempre de calças compridas, sorridente, de olhos azuis,
com uns restos de beleza; fumava cachimbo; às vezes lhe vinham
ideias. Aquela ideia lhe veio na madrugada de quinta para
sexta-feira, duas semanas depois da Semana Santa, quando alguém da
roda se queixou de que não conseguira transporte nem alojamento para
assistir à Feira de Sevilha... Mais duas ou três pessoas
concordaram em que realmente o papel seria ir a Sevilha, e o Holandês
perguntou: — Vocês querem ir a Sevilha?
Fez um gesto com a imensa mão mandando
que esperassem, foi ao telefone, demorou dez minutos, puxou um lápis
do bolso, fez uns cálculos em um guardanapo de papel e anunciou que
a 45 dólares por cabeça levaria oito pessoas a Sevilha para os dois
últimos dias da Feira — sábado e domingo — incluindo
transporte, alojamento, breakfast. Depois, com a maior naturalidade,
tirou do bolso uma tábua de marés, estudou-a e disse: “Saímos
sexta às 10:45 da noite, podemos estar de volta segunda-feira antes
das duas da tarde.”
Quase ninguém ali trabalhava aos
sábados; era matar apenas o primeiro expediente da segunda-feira. Na
hora marcada todos embarcavam alegremente em um pequeno iate, menos a
mulher do Holandês. Menos, quer dizer: ela embarcava, mas não
alegremente; pelo contrário, chorava sem cessar, fazia “não”
com a cabeça e puxava pelo paletó o seu grande marido que se
curvava para ouvir recriminações ditas em segredo e depois piscava
um olho para os outros, como quem diz: coisa de mulher. E bebia mais
uma cerveja.
Atravessaram o estreito de Gibraltar em
direção a Tarifa, foram bordejando a costa espanhola. Ao amanhecer,
o Holandês apontou, à direita, Trafalgar e falou das relações do
Almirante Nelson com os judeus de Tânger; na barra do rio que leva a
Sevilha explicou que Guadalquivir vem do árabe “Ued-El-Kabir”,
Rio Grande; sabia tudo, o Holandês, inclusive, como se viu depois, a
origem das “casetas” da feira e a história dos negros touros
miúras; só não sabia que, apesar de haver bem calculado a maré,
seria impossível na volta, segunda-feira pela manhã, transpor a
barra do rio de retorno ao Atlântico, isto porque duas lanchas da
polícia rodearam o iate e uma delas acabou se atravessando em seu
caminho, e obrigou-o a parar. Os homens que subiram a bordo
declararam que o Holandês estava preso e o iate provisoriamente
apreendido. O embaixador brasileiro no reino de Marrocos e o seu
cônsul em Tânger discutiram a situação; conseguiram liberar o
iate depois de provar que ele não pertencia ao Holandês, nem este
era seu verdadeiro capitão, mas sim um amarfanhado marinheiro velho
e louro que mostrou seus documentos. O cônsul ainda foi a terra ver
se soltava o Holandês, mas desanimou diante de um telegrama da
Interpol. A mulherzinha desmaiou; fez-se vir um médico de terra que
a reanimou e levou de volta fumo de cachimbo para o prisioneiro. “Eu
bem sabia, eu bem dizia”, dizia ela, “ele é louco”; e chorava
mais.
Todos ficaram consternados: a) porque com
a baixa maré só iriam chegar a Tânger à noite; b) porque o
Holandês era boa-praça, tanto que fizera questão de oferecer uma
ceia aquela madrugada, que ele mesmo preparava — “eu o vi cortar
pepinos (disse a mulher de um vice-cônsul), com que cuidado ele
cortava os pepinos, o pobre homem!”
Bem, naturalmente não fora por ele
cortar mal pepinos que a Interpol o prendera, e sim por algum outro
motivo, que não se soube. Tudo o que se soube, como eu já disse,
foi que ele era nascido na Albânia e tinha passaporte britânico, o
bom Holandês.
Rubem Braga, in Recado de primavera
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