Na beirada do Rio Grande, Quaraí não
sabe. Mas é uma cidade abençoada. Não por suas lendas nem por seu
passado de glórias. Não pelo Cerro do Jarau nem por sua fronteira
cortada a sangue. Nem mesmo porque as portas e as janelas não
carecem de trancas porque coisa alguma as violará além de sombras e
fantasmas renitentes. Quaraí não é abençoada pelo que considera
importante. Quaraí é abençoada por causa do Tierri.
Fronteiriço feito touro chucro, ele tem
a cara talhada em madeira, larga e grossa como um tronco de umbu.
Gaúcho como os primeiros, os autênticos, com uns olhos de noite, os
cabelos como pelo de bicho e o corpo maciço, feito para a lida de
quem não conhece colchão. Cada músculo nascido com ele, sem
conhecer academia ou anabolizante.
Tierri, um mestiço como só o pampa é
capaz de parir, simples como eram as coisas e as gentes feitas entre
o céu e a terra, como no princípio. Antes que o vento começasse a
empurrar a roda da ambição e também a da fortuna. E o mundo
virasse de pernas para o ar. Tierri é o chorador da cidade. Chora os
mortos de Quaraí. Todos eles. Os ricos, os pobres, os remediados. Os
que sucumbem de paixão, os que tombam de doença, os que caem de
cansaço. E também os que arriam por desistência. Até mesmo os que
morrem porque esqueceram de viver. Tierri chora os mortos não porque
alguém tenha pedido nem porque algum parente tenha pago. Não por
contrato, mas por gosto. Tierri o faz porque não chorar os mortos é
ofender os vivos. Porque chorar a morte é sua missão na vida.
Não há em toda Quaraí quem saiba
precisar quando tudo começou. Filho de um changueiro morto de
paixão, como se diz de quem sucumbe dos males do coração, e de uma
daquelas mulherzinhas pequenas que se vê por aquelas bandas.
Pequenas e morenas que criam um balaio de filhos lavando na sanga,
cozinhando na pedra, esfolando as mãos, os joelhos e a vontade, mas
jamais desistindo porque não conhecem tal luxo. Filho do seu Caetano
e da dona Negrinha, Tierri foi batizado Salatiel Vargas, nome de
macho como se impõe na fronteira. E desde novo notou-se nele uma
cabeça boa para as coisas do coração, desapegada das praticidades
da vida.
Tierri é um passarinho cantador, que
corta o pampa sibilando seu nome de um jeito comprido e sentido, como
se passasse a vida chamando quem não o ouve. Salatiel tinha um irmão
assim, que cortava a cidade assobiando, zunindo nos ouvidos do povo o
seu apito espichado e um tanto agoniado. Por causa desta mania esse
irmão foi chamado Tierri até morrer com a cabeça despedaçada em
uma cancha de futebol. Salatiel herdou então o nome do morto e virou
Tierri. E Tierri será até o dia de sua morte.
Não há cristão, evangélico ou ateu
que saiba dizer por aqueles lados como foi que se passou. Num
daqueles dias agourentos do pampa, quando o ar se anuncia como
desgraça e até as vacas se constrangem de mugir, Tierri apareceu no
velório. Trazia um lenço grande, encardido como se tivesse sido
lavado no barro, e, mal avistou o defunto, já começou a chorar. Não
o choro comedido da boa educação, com lágrimas pingando à
unidade, como se o olho tivesse sido torcido. Nem o pranto do
crocodilo, com uma vista no caixão e a outra na herança. Mas o
choro copioso, em vagalhão, despejado de dentro do peito como se
toda a sua vida fosse não mais do que um preâmbulo para aquele
momento.
Era de tal qualidade o choro de Tierri
que apavorou a viúva, os filhos e os parentes. E só não assustou o
defunto porque este já estava esquecido das misérias terrenas,
preocupado apenas em desencarnar o mais breve possível e não
prolongar nem um minuto a mais sua estadia na terra. Tierri chorava
aos soluços, dava para ouvir o galope do peito. Chorava um choro
chorado, alquebrado sobre o ataúde, mirando o defunto como se não
quisesse esquecer nenhum detalhe do rosto que a terra em seguida
engoliria, com indiferença e também com generosidade. Não contente
em chorar, gemer e suspirar em volume máximo, Tierri ainda beijava o
esquife, com uns beijos chupados, babados e estalados. E bradava, a
quantos andassem por ali:
– Morreu, maninha!
Desde então, lá se vão anos e até
décadas, Tierri vem chorando todos os mortos de Quaraí. Não se
sabe como descobre nem como tão rápido aparece, mas muitos já
foram os velórios em que Tierri chegou junto com o morto, antes dos
parentes. Basta a notícia o alcançar para largar tudo de pronto.
Sobe no primeiro ônibus e desembarca na funerária. Chega, vai
sacando o lenço do bolso e se põe a fungar como se não vivesse
para outro fim. Deixa patrão empenhado, biscate pela metade, jornal
por entregar, caminho pelo meio. Não há nada mais forte para Tierri
do que o chamado dos mortos. E aquele índio graúdo, largo como um
boi de canga, chora tanto, tão bem e tão sentido que recebe os
pêsames como se parente fosse.
Tanto é o seu empenho em atender aos
finados com presteza que, às vezes, Tierri se precipita. Dias atrás
avistou a ambulância na porta e já foi adentrando na casa. O doente
não pensava em morrer, sequer ensaiava uns passinhos no além.
Tierri desdobrava o lenço quando foi corrido como mau agouro. Saiu
com uma lágrima escorrendo do canto do olho, uma que não conseguiu
recolher a tempo. Tal é a ânsia de adivinhar o desenlace para
prestar com brio as fúnebres homenagens, que Tierri acabou por se
tornar o flagelo dos velhinhos da cidade. Mal adivinha um passeando
seus passos vacilantes pelos lados da praça e já sai correndo
atrás. Se atira às costas do pobre e sentencia, de joelhos e mãos
em prece:
– Este vaaai!
E sempre que lhe perguntam por que abre
as comportas dos olhos para todo e qualquer defunto, sem ver idade,
sexo, raça, religião ou posses, Tierri responde do mesmo jeito.
Arregala os olhos como se não entendesse tão descabida questão e
despeja seu vozeirão enrolado:
– É meu amigo.
Tierri chora generosa e democraticamente.
E, se aos mortais comuns a vida não reserva nenhuma certeza, em
Quaraí o povo pode morrer sossegado.
Por isso é uma cidade abençoada. Por
causa não de suas glórias passadas nem de suas lendas contadas nem
de seu alardeado sossego. Mas porque é a única onde um cidadão
pode viver com a certeza de que será chorado na morte. Não um choro
pingado nem um pranto interesseiro. Mas um choro afogado, do fundo do
peito, como se não houvesse vivido no mundo pessoa mais amada,
querida e acalentada. É essa a missão de Tierri, de quem às vezes
o povo ri ou judia. Esse Tierri humilde, que muita gente arrelia,
entendeu que não havia nada mais nobre do que dar importância na
morte mesmo a quem não a teve na vida. Ele, que conhece na pele e na
herança a desigualdade da sina, inventou um jeito de igualar a todos
pelo menos no último dia.
Talvez tudo o que Tierri espere é que,
quando também ele se for, Quaraí lhe dê na morte a importância
que não lhe deu na vida. E chore um choro sentido, fungado e babado
pela morte de quem por ela chorou toda a vida.
Eliane Brum, in A vida que ninguém vê
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