Mas que sentir de filho? Se de algum modo
fico toda sem um único sentimento reconhecível. Que sentir? Vejo
sua cara queimada de sol, cara inteiramente inconsciente da expressão
que tem, toda concentrada que está como um bicho bonito, delicado e
feroz – nas lambidas de seu sorvete.
O sorvete é de chocolate. O filho
lambe-o. Às vezes se torna lento demais para o seu prazer, e ele
então morde-o, e faz uma careta que é inteiramente inconsciente da
felicidade incômoda que dá o pedaço gelado enchendo a boca quente.
Essa, a boca, é muito bonita. Olho o filho toda compacta, mas ele
está habituado à burrice de meu olhar concentrado de amor. Ele não
me olha, e não se incomoda de ser observado nesse seu ato íntimo,
vital e delicado: e continua a lamber o sorvete com a língua
vermelha e atenta. Não sinto nada, senão que sou inteira, pesada de
material de primeira, boa madeira. Como mãe, não tenho finura. Sou
grossa e silenciosa. Olho com a rudeza de meu silêncio, com meu olho
vazio aquela cara que também é rude, filho meu. Não sinto nada
porque isso deve ser amor pesado e indivisível. Ali estou, recuada.
Recuada diante de tanto. O indevassável me deixa com uma espécie de
obstinação áspera; impenetrabilidade é o meu nome; estou ali,
endomingada pela natureza. Minha cara deve estar com um ar teimoso,
com olho de estrangeira que não fala a língua do país. Parece um
torpor. Não me comunico com pessoa alguma. Meu coração é pesado,
obstinado, inexpressivo, fechado a sugestões.
Estou ali, e vejo: o rosto do menino
tornou-se por um instante ávido – é que deve ter encontrado algum
pedaço de sorvete com mais chocolate que o resto, e que a língua
esperta captou. Ninguém diria que sou magra: estou gorda, pesada,
grande, com as mãos calejadas não por mim mas pelos meus
ancestrais. Sou uma desconfiada que está em trégua. O filho come
agora a casca do sorvete. Sou uma imigrante que se enraizou em terra
nova. Meu olho é vazio, áspero, olha bem. E vê: um filho de cara
concentrada que come.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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