segunda-feira, 10 de maio de 2021

Coração: terra que ninguém pisa

Coração do outro é uma terra que ninguém pisa. Minha mãe repetia essa oração quando recebia a visita de muda melancolia. Meu coração estava pisado pelo amor, e só eu sabia. Era um caminhar manso como pata de gato traiçoeiro. Fugia com meu amor para todas as penumbras. Seis minutos eram suficientes para a saudade me transbordar. Fui, desde pequeno, contra matar a saudade. Saudade é sentimento que a gente cultiva com o regador para preservar o cheiro de terra encharcada. É bom deixá-la florescer, vê-la brotar como cachos de tomates, desde que permaneçam verdes e longe de faca afiada. Nada tem mais açúcar que um tomate verde.
Ela deixava a cabeça tombar sobre o pano, como se procurasse seu próprio colo. Atravessava a agulha sem ferir a trama do linho. A linha abraçava o tecido de maneira amorosa como meu amor me enlaçava. No rastro da linha nasciam pequenos ramos, algumas flores, peixes entre algas. Minha irmã desocultava seu carinho nos bordados. Quando a linha estava por terminar, ela dava um nó forte para não deixar fugir sua imaginação. Eu não podia entender a semelhança entre o nó do bordado com o nó nas tripas do homem do guarda-chuva preto. Um nó, eu podia ver, o outro, só suspeitava. Suspeitar é não ter certeza. Minha alma se dividia em duas: uma da verdade e outra da mentira. E ficava difícil de escolher.
Meu pai se encostava na pia, depois de afiar a navalha. Cobria o rosto com espuma branca e estava mais velho que São Pedro. Eu não conhecia Papai Noel. Jamais o presente me surpreendeu. Depois, aparava a barba deixando o rosto mais liso que a pele dos tomates. A loção invadia a casa, forte como o álcool.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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