Coração do outro é uma terra que
ninguém pisa. Minha mãe repetia essa oração quando recebia a
visita de muda melancolia. Meu coração estava pisado pelo amor, e
só eu sabia. Era um caminhar manso como pata de gato traiçoeiro.
Fugia com meu amor para todas as penumbras. Seis minutos eram
suficientes para a saudade me transbordar. Fui, desde pequeno, contra
matar a saudade. Saudade é sentimento que a gente cultiva com o
regador para preservar o cheiro de terra encharcada. É bom deixá-la
florescer, vê-la brotar como cachos de tomates, desde que permaneçam
verdes e longe de faca afiada. Nada tem mais açúcar que um tomate
verde.
Ela deixava a cabeça tombar sobre o
pano, como se procurasse seu próprio colo. Atravessava a agulha sem
ferir a trama do linho. A linha abraçava o tecido de maneira amorosa
como meu amor me enlaçava. No rastro da linha nasciam pequenos
ramos, algumas flores, peixes entre algas. Minha irmã desocultava
seu carinho nos bordados. Quando a linha estava por terminar, ela
dava um nó forte para não deixar fugir sua imaginação. Eu não
podia entender a semelhança entre o nó do bordado com o nó nas
tripas do homem do guarda-chuva preto. Um nó, eu podia ver, o outro,
só suspeitava. Suspeitar é não ter certeza. Minha alma se dividia
em duas: uma da verdade e outra da mentira. E ficava difícil de
escolher.
Meu pai se encostava na pia, depois de
afiar a navalha. Cobria o rosto com espuma branca e estava mais velho
que São Pedro. Eu não conhecia Papai Noel. Jamais o presente me
surpreendeu. Depois, aparava a barba deixando o rosto mais liso que a
pele dos tomates. A loção invadia a casa, forte como o álcool.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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