domingo, 23 de maio de 2021

A casa

Depois de velho visitei a casa onde nasci. Casa dos tempos de riqueza do meu pai. Estava como nova, pintada, cuidada, a mesma cara, a varanda, o jardinzinho ao lado da varanda com trepadeira, árvores no quintal que não poderiam ser as mesmas. Bati à porta, atendeu uma senhora de avental, a empregada. Expliquei. “Eu nasci nesta casa faz muito tempo, antes de você nascer, no dia 15 de setembro de 1933. Estou com saudade desta casa que não cheguei a conhecer. Saí dela antes de saber as coisas. Agora eu queria muito entrar nela, para vê-la pela primeira vez. Será que a patroa permitiria que eu a visitasse?” Ela se abriu num sorriso e pediu que esperasse e foi contar para a patroa sobre aquele visitante inesperado. Veio a patroa, uma senhora com cabelos brancos como os meus, com um sorriso. Eu a abracei e agradeci-lhe por haver cuidado tão bem da minha casa. Fez-me entrar. Observei tudo atentamente. Aquele espaço era muito velho, mais velho que eu. Imaginei meu pai e minha mãe ainda jovens, meus irmãos pequenos... Onde teria sido o lugar do piano Pleyel? As casas novas são mais confortáveis que as antigas. Elas não têm nada a ser consertado: torneiras que pingam, pias entupidas, cupins, fechaduras enferrujadas, goteiras, madeiras que a água apodreceu...
As casas novas não precisam de carinho. Estão lá para a função de serem habitadas. São escravas que não falam. Mudas. Não falam porque não têm estórias para contar. Dentro delas a gente só pensa em conveniências, conforto e modernidades. Frias. Ainda não foram impregnadas pelos cheiros humanos: o cheiro do suor, dos sabonetes, dos perfumes, do fumo, do fogão de lenha, da comida, do jasmim, do tempo.
Por razões religiosas eu comecei a fumar cachimbo quando vivi nos Estados Unidos. Trouxe o prazer comigo. Fumava enquanto trabalhava. As espirais de fumaça têm um poder desrealizador que abre espaços para a fantasia. O perfume do cachimbo impregnou o meu escritório. Meu filho, já adulto, me confessou que, menino, quando eu viajava e ele ficava com saudades, entrava no meu escritório e ficava lá assentado, sozinho, sentindo o cheiro do meu cachimbo...
Agora me digam: que cheiro de casa nova tem o poder de curar saudade? As casas novas são desinfetadas, têm cheiro de pinho sol... Por isso elas são más educadoras — paralisam a imaginação. Não são assim as casas velhas. São como os velhos, têm alma, ficam doentes, pedem para ser cuidadas, estão misturadas com o corpo daqueles que viveram nelas.
Comovo-me com as casas abandonadas, à espera da demolição. Fico a imaginar o momento quando alguém disse: “Vou construir uma casa!”. E se pôs a sonhar e a fazer planos. “Haveremos de ser muito felizes nessa casa”, ele dizia para sua mulher. A construção de uma casa se faz sob a ilusão da eternidade. A ilusão é que, protegida pelas paredes, a vida fica protegida contra a corrosão do tempo. Mas aí o tempo passa, os filhos crescem, os pais ficam velhos, os filhos se casam, mudam para outras casas, a casa se esvazia e fica assombrada pelos fantasmas que moram na solidão. O jeito, então, é vendê-la. Com a casa vendida vão muitas ilusões. Fiquei a pensar nas ilusões do meu pai e de minha mãe. Passei então ao quarto onde nasci.
Naquela manhã a Mema reuniu os sobrinhos e os levou para passear, longe da casa. Eles não entenderiam o que estava para acontecer. Na verdade, eles não deveriam entender. Na casa o movimento era incomum, mulheres entrando e saindo de um quarto, água fervendo no fogão, o marido andando como um bobo de um lado para o outro. Até que se ouviu o choro de uma criança. O choro anunciava o nascimento. A parteira anunciou: “É um menino!”. Minha mãe ficou desapontada. Já tinha três filhos homens. Tinha rezado muito para que na sua barriga estivesse uma menina. Toda mãe sonha com uma menina como companheira e enfermeira, para quando os dias forem maus. Quando a Mema voltou com os meninos, eles foram informados pelo pai que um irmãozinho havia chegado — sem explicar nem como nem de onde. Era o dia 15 de setembro de 1933. Assim foi: no desejo de minha mãe, eu deveria ter sido uma menina... Ela mesma me disse, muito tempo depois, carinhosamente. Aconteceu naquele quarto…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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