quinta-feira, 15 de abril de 2021

Torto Arado / 13

Continuei a encontrar Severo na estrada, quase sempre no mesmo lugar, às segundas-feiras. Minha mãe havia melhorado e Belonísia havia retomado sua rotina de me acompanhar à feira. Meu pai também costumava ir com Zezé, mas na maioria das vezes preferia continuar labutando com a terra, para ver se dava alguma coisa. Procurava por um frescor de umidade, uma “ventura”, como ele mesmo dizia. Cavava e lançava sementes. As roças haviam migrado para mais perto do rio, e chegou um tempo em que o próprio leito, sem água em alguns trechos, passou a ser utilizado para plantar. E mesmo no leito tinha porções de terra que não serviam para o plantio, eram por demais argilosas. O que vingava ia para a mesa. Uns poucos quiabos ou abóboras miúdas. A mandioca não prestava, as raízes apodreciam com o excesso de umidade. E se ficasse no sequeiro naquele tempo de estiagem nem chegava a se desenvolver.
Severo nos seguia para a cidade, era de conhecimento dos nossos pais. As filhas de Tonha também iam, e ele passou a ser visto como um protetor. Belonísia estava mais retraída, parecia perceber que naquele período as atenções dele estavam voltadas para mim. Por algumas vezes tentou se desobrigar de me acompanhar, principalmente quando o buriti não rendia as duas sacas. Pedia para ajudar nosso pai a colher taboa e alimentava os animais que sobreviviam. Ela manejava o facão melhor que eu, e confesso que invejava sua habilidade. Brandia os instrumentos com uma força que admirava, ao mesmo tempo em que fazia me sentir fraca para a lida com a terra. Com sua disposição, Belonísia se aproximava mais de meu pai, passava a lhe fazer companhia, junto com meu irmão, e participava das decisões, embora Zeca sempre lembrasse que ela era mulher, e lhe negasse determinadas tarefas. Mas isso não a abatia. Era como se estivesse sempre esperando a oportunidade para demonstrar sua força, seus conhecimentos e sua destreza.
Apesar desse afastamento sutil, sentia que Severo a entusiasmava nas brincadeiras de jarê, já que a nossa convivência passou a ser de novo mais constante. Havíamos estreitado os laços dormentes devido às adversidades que vivíamos naquela estiagem. Observava os movimentos brandos que Belonísia fazia para chamar a atenção de Severo que, apesar de demonstrar grande apreço por ela, estava de forma mais constante comigo. Talvez a pequena diferença de idade que havia entre nós para dois adolescentes representasse um hiato. Talvez fossem apenas as afinidades que descobrimos nos caminhos para a feira: a vontade de estudar, a casa de dona Firmina se tornou minúscula para o que ansiávamos; a vontade de deixar a fazenda que, assim como nele, foi despertada em mim.
Como o buriti estava levando alimento para nossa mesa, diversificando nossa dieta de beiju de jatobá, ninguém inquiria sobre o tempo que eu passava na mata, na beira dos marimbus colhendo os frutos, que começavam a rarear com o término da safra. À medida que ficavam mais escassos, precisávamos de mais tempo para encontrá-los. Nesse tempo, me aproximava mais das margens do rio Santo Antônio, me aproximava mais da roça de meus tios e de Severo. Ficávamos cada vez mais juntos, rindo ou divergindo, ou apenas em silêncio. Até que as mãos passaram a se tocar para impedir um gesto, ou apenas por pilhéria. Eu sentia sua respiração, por vezes calma, em outros momentos intensa, dependendo do teor das suas manifestações. Até que passei a ouvir os batimentos de seu coração diante do silêncio que vinha da tranquilidade da mata, sem água, sem folhas farfalhando, por horas sem pássaros, que não tinham alimento. Sua mão já não tocava apenas a minha, tocava meu ombro. Eu me permitia empurrar levemente seu peito. E quando estávamos cansados, apenas deitávamos em qualquer lugar da margem do rio para sentir o vento, que só para contrariar nem chegava a soprar. Mas quando soprava, lançava sobre nossos corpos a terra seca. Eu passei minhas mãos para limpar seu rosto, ele fez o mesmo com o meu, e um dia deixei que sua boca tocasse em minha boca, e nesse dia apenas lembrei do meu sentimento quando o vi beijando Belonísia. Não retornei bem para casa, era como se tivesse traído minha irmã. Mas não suportei muito tempo esse sentimento de traição, subverti, porque tudo o que estava sentindo era grandioso. Voltei para a beira do rio só por voltar, o buriti já tinha terminado. Saía sem avisar e ouvia reclamações de minha mãe, que queria saber por onde andava. Ainda não podia dizer a verdade, dizia apenas que estava com algumas das meninas que moravam mais distantes.
Tudo foi crescendo de forma tão pujante que era como se meu corpo se guiasse sozinho, e Severo agia da mesma forma na trama em que estávamos enredados. Naquela terra mesmo, entranhada da secura da falta de chuva, deixamos nossos suores para que lhe servisse de alívio. O silêncio da ausência dos pássaros, dos animais que migravam para onde havia água, foi rompido por nossos sussurros. Depois de tanto ouvirmos falar sobre as crianças mortas, a natureza, misteriosa e violenta, nos impelia para conceber a vida.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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