Todos temeram, por algum tempo, que
Crispina tivesse uma recaída do seu acesso de loucura, que
desaparecesse como no passado, ou mesmo que precisasse ser recolhida
à nossa casa para tratar novamente os males de sua alma. Chegavam
notícias de que ela havia mergulhado num estado de melancolia
preocupante, sem comer ou cuidar da própria higiene. Isidoro zelava
por ela, sacrificando em parte seu trabalho na fazenda, expressando
preocupação com a tristeza da mulher. Havia o peso da irmã
instalada ainda na casa do pai, no outro lado do terreiro, com seu
sobrinho crescendo saudável, sobrinho este que talvez fosse filho de
seu companheiro.
As coisas não se resolveram de forma
fácil, mas o tempo cuidou para que as emoções esmorecessem.
Soubemos que, apesar da indiferença que Crispina havia demonstrado
durante o difícil trabalho de parto de Crispiniana, a gêmea não
hesitou em procurar pela irmã que, mergulhada em sua melancolia, foi
incapaz de reagir e se deixou cuidar como se fosse a sua mãe ausente
quem fazia aquela tarefa. No princípio, Crispiniana evitou levar o
pequeno consigo, temendo sua reação, que pudesse considerar a
presença da criança uma afronta ao seu sentimento de perda. Ainda,
porque temia que pudesse Crispina vislumbrar algum traço de Isidoro
em seu rosto.
Mas a própria criança, com seus gestos
inocentes de choro ou satisfação, se encarregou de despertar um
brilho na palidez das atitudes da tia. E como as coisas que não
podemos explicar ou entender, aconteceu que o leite de Crispiniana
secou. Nunca saberemos se foi uma ação deliberada da mãe, ou um
dos eventos místicos tão comuns na vida do povo de Água Negra. A
irmã que estava mergulhada na melancolia pela perda do filho, mas
atenta ao desconforto revelado no constante berreiro do sobrinho, o
abrigou em seu seio sem que ninguém precisasse pedir por isso.
Talvez de forma instintiva tenha deixado a criança por si só
perseguir seu leite que, mesmo passados tantos dias da chegada do
filho natimorto, ainda minava feito uma fonte de água, como as que
surgem nas serras que circundam a Chapada Velha. Era o gesto que
faltava para unir as gêmeas, por um breve tempo, até as próximas
disputas e brigas, num movimento de afeto e rancor que faria parte de
seus dias até o fim de suas vidas.
Vi o menino dando seus primeiros passos e
depois correndo para o seio da tia, em plena brincadeira de jarê,
numa das muitas celebrações da liturgia em nossa casa. A última
vez que o vi mamar no seio de Crispina, na conversa tímida que
tinham diante da audiência, o menino já se aproximava dos dois
anos. Era forte, ativo, parecia muito com as duas irmãs e com o
compadre Saturnino, nada guardando em seus traços da possível
paternidade de Isidoro.
Foi na noite de Santa Bárbara, em
dezembro, e meu pai, apesar de suas obrigações nas brincadeiras do
jarê, havia acordado mal humorado, com respostas lacônicas às
perguntas que lhe faziam. Só os mais próximos, como nós, sabíamos
o porquê do desconforto visível em seus gestos. No fim da tarde,
dona Tonha trouxe, numa caixa antiga, adornos de encantada que meu
pai vestiria à noite, depois da ladainha, e à medida que os
espíritos chegassem e lhe tomassem o corpo para se fazerem
presentes. Na caixa estavam guardadas as roupas de Santa Bárbara,
Iansã, a dona da noite, lavadas e passadas desde a última vez em
que Zeca a havia vestido. A repulsa pelas vestes era tanta que a
roupa não era guardada no quarto dos santos como as demais, mas na
casa de Tonha, ela mesma cavalo para a encantada nas noites de jarê.
Zeca Chapéu Grande se envergonhava de
ter que deixar as calças que honravam a sua posição de liderança
na fazenda, como pai espiritual, e vestir saias, emprestando seu
corpo a uma mulher. Fazia porque era a sua obrigação, compromisso
que havia assumido quando se curou da loucura e se fez no santo na
casa de João do Lajedo, em Andaraí. Mas se envergonhava, porque a
audiência era formada por seus compadres e vizinhos, que muitas
vezes conduzia nos trabalhos de mutirão para a fazenda.
Nessa noite, fiquei ao lado das filhas de
santo que o ajudavam a se trocar durante a celebração. Os tocadores
aqueceram seus tambores na fogueira acesa no terreiro. A primeira a
chegar, após a ladainha e a saraivada de fogos, foi justamente a
dona da festa, Santa Bárbara; a caixa trazida por dona Tonha
continha a saia vermelha, o adé e a espada de Iansã, todos os
adornos que a santa vestiria. O quarto dos santos, onde rezavam a
ladainha, tinha velas acesas e uma profusão de cores das imagens e
bonecas. Havia imagens de gesso e madeira de diferentes tamanhos e
estados de conservação. S. Sebastião, Cristo Crucificado, o Bom
Jesus, S. Lázaro, S. Roque, S. Francisco, Padre Cícero. Havia
pequenos quadros, uns de cores vivas, outros desbotados, de S. Cosme
e S. Damião, Nossa Senhora Aparecida, Santo Antônio. Havia
fotografias de meus pais, da velha Donana, outras tantas, pequenas,
de devotos. Havia flores de papel, algumas mais novas, outras
pálidas. Sempre-vivas, que colhíamos na estrada ou nas cercanias,
entre as rochas.
Fazia calor. Os presentes suavam e
enxugavam o suor com as costas ou a palma das mãos, sem deixar os
lábios vacilarem na prece. Havia muita gente e o quarto era tão
pequeno que a maioria acompanhava da sala, principalmente as mulheres
e os homens mais velhos. Os mais jovens e as crianças ficavam
alheios às rezas e conversavam em tom baixo; as crianças brincavam
e, quando saíam de controle, uma das mulheres se virava para
reclamar e pedir silêncio, com os dedos em riste e olhos
arregalados.
Havia beleza nos cantos que antecediam a
aparição da encantada, e muito mais encanto quando meu pai deixava
o quarto dos santos para dançar ao som dos atabaques, no meio da
sala. Era um homem magro, mais baixo que minha mãe, e com um tom de
pele mais claro que o nosso. Não era jovem e carregava no rosto os
traços de sua idade. Sulcos profundos, vales na sua pele erodida
pelo sol e o vento, que ainda enfrentava todos os dias para plantar e
ter direito à morada de sua família na fazenda. Àquela época,
Zeca Chapéu Grande já parecia um ancião, guia do povo de Água
Negra e das cercanias, referência para todos os tipos de assuntos,
desde divergência de trabalho a problemas de saúde.
Dali, do quarto quente dos santos que
rescendia a suor e alfazema, Zeca, que agora abrigava Santa Bárbara,
vestia a saia vermelha e branca, engomada com todo zelo por dona
Tonha, e com o rosto encoberto sob o adé lustroso, ornado de contas
vermelhas que recobriam a face. Saiu empunhando a espada de madeira
feita por ele mesmo. A espada, pequena, cortava o ar com seus
movimentos ágeis. “Ê, Santa Bárbara, virgem dos cabelos louros,
ela vem descendo com sua espada de ouro”, a audiência batia palmas
e cantava em coro, seguindo o tocador de atabaque. Enquanto os homens
aceleravam o toque, Santa Bárbara se agitava em seus passos e giros.
Duas mulheres arriaram no chão, com os olhos semicerrados e
movimentos que anunciavam a chegada de mais Santas Bárbaras. Foram
conduzidas para o quarto por minha mãe e dona Tonha para que
pudessem colocar suas vestes também.
Severo, nas últimas brincadeiras de
jarê, havia se postado mais próximo aos tocadores. Atento aos
toques, já arriscava bater sozinho no couro aquecido, tentando
reproduzir o ritmo. Estava maior e mais forte. Tinha um sorriso
luminoso, a pele mais negra pela faina debaixo do sol. O corpo
irrompendo das roupas, que estavam pequenas. Os olhos de Belonísia,
assim como os meus – sei que ela também me notava –, perseguiam
com atenção seus gestos. Tio Servó também assumia, por um breve
tempo, um dos atabaques, sempre no começo da festa, ou quando um
encantado de sua estima, como Tupinambá, vinha girar na sala entre
os presentes. Muitas vezes, Sutério vinha participar da audiência e
também ensaiava tocar o atabaque nos intervalos entre um giro e
outro.
Nessa noite, em particular, estava
presente o prefeito. Havia cinco anos, meu pai tinha atendido um de
seus filhos. Vieram buscá-lo de carro, um Gordini vermelho,
coisa nunca vista em Água Negra. Até então só conhecíamos a Ford
Rural da fazenda e os carros que vimos na estrada quando fomos
para o hospital por causa do acidente. Desde então, aparecia na
festa de Santa Bárbara. Da primeira vez, meu pai não aceitou seu
pagamento, mas pediu que trouxesse um professor da prefeitura para
que desse aula às crianças da fazenda. Contava que viu um tanto de
constrangimento no rosto de Ernesto, que, sem escapatória, fez a
promessa. A gratidão por meu pai e pela encantada era grande, por
isso teve que cumprir o que prometeu. Havia também o medo que o
encantamento que curou o filho se desfizesse. Então, meses mais
tarde, viria uma professora no carro da prefeitura, três dias na
semana, para dar três horas de aula na casa de dona Firmina. Firmina
vivia sozinha e dispunha de um pequeno galpão com tábuas que,
apoiadas em duas latas cheias de barro, se tornavam um banco para
sete ou oito crianças. Para reforçar o que aprendíamos com
professora Marlene, tínhamos o apoio de minha mãe. Dizia que só
não poderia ensinar matemática, porque não sabia; “tenho a
letra, mas não tenho o número”.
Inclusive, no princípio, o prefeito
sugeriu uma solução menos trabalhosa e, sabendo que minha mãe era
alfabetizada, quis fazê-la professora. Minha mãe, consciente de
suas limitações, recusou. Reforçou em sua fala a expressão “tenho
a letra, mas não tenho o número”, e que queria muito que seus
filhos de sangue e de pegação tivessem estudo e pudessem ter uma
vida melhor do que a que tinha. Essa era a razão de todo o esforço
que meu pai fez para que tivéssemos um professor e, percebendo que
não era o suficiente, uma escola. Meu pai não era alfabetizado,
assinava com o dedo de cortes e calos, de colher frutos e espinhos da
mata. Escondia as mãos com a tinta escura quando precisava colocar
suas digitais em algum documento. De tudo que vi meu pai bem querer
na vida, talvez fosse a escrita e leitura dos filhos o que perseguiu
com mais afinco. Quem acompanhasse sua vida de lida na terra ou a
seriedade com que guardava as crenças do jarê, acharia que eram os
bens maiores de sua existência. Mas pessoas como nós, quando viam o
orgulho que sentia dos filhos aprendendo a ler e do valor que davam
ao ensino, saberiam que esse era o bem que mais queria poder nos
legar.
E não foi com espanto que vi naquela
noite, antes de todos os outros encantados chegaram e se abrigarem no
seu corpo, Santa Bárbara girar, gritar e parar com sua espada
apontada para o prefeito, a quem fez honras, como se cumprimentasse
um monarca, mas também como se se dirigisse a um súdito, para lhe
pedir, na frente da audiência, que cumprisse a promessa feita no
passado – e que não me recordo de sabermos – de construir uma
escola para os filhos dos trabalhadores. O prefeito olhou
desconcertado, esboçando um sorriso sem graça, quando se viu diante
do olhar das quarenta famílias que moravam em Água Negra. Quase
compassivo, recordando das graças e temendo a má sorte que teria,
dependendo do esforço empreendido para realizar a ordem dada pela
encantada, aquiesceu.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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