Ele está lá. Quase ninguém vê, mas
está. A maior lição sobre a relatividade do poder. A fugacidade da
fama. A efemeridade da glória. Ele, o Conde de Porto Alegre. Manoel
Marques de Souza. Terceiro varão de uma dinastia de centauros de
espada em riste. Parido na guerra, pela guerra. Engatinhando nas
poças de sangue dos campos de batalha, a pele do rosto feita couro
pelos ventos do pampa. Aos 13 anos despedindo-se da casa da mãe para
se entreverar com os castelhanos. Aristocrata da guerra, virou barão,
visconde e por fim um conde, os dois últimos na Guerra do Paraguai.
Morreu embebido em dores e feitos, a mortalha bordada de galões e
medalhas. E era tão importante, mas tão importante, o nome
estendido como um pelego de brios sobre as coxilhas do Rio Grande,
que mereceu a primeiríssima estátua cravada na mui leal e valorosa
Porto Alegre. Título, aliás, que ele conquistou para a capital ao
arrancar a cidade dos arcabuzes farrapos.
O ano era 1885. O conde eternizado em
mármore. A princesa Isabel em distintíssima pessoa veio instalar o
herói na praça que levava o nome de seu pai, dom Pedro II. E com
tal entusiasmo que pode muito bem ter plantado uma pulga no penteado
da condessa viúva: “As nobilíssimas condecorações que lhe
ornavam o másculo peito, com a ponta de sua fulgurante espada...”
E por aí foi o real discurso.
Pois então. Não foram 15 segundos de
fama como uns e outros e, mesmo assim, onde acabou? Num
insignificante triângulo entre a Duque de Caxias e a Riachuelo,
batizado com seu pomposo nome. Sei lá quem é aquele velho,
irrita-se o mendigo do lugar. Quem diria. O conde! O conde! Reduzido
àquele velho... Ele, que partia para a batalha como se fosse para um
salão de baile. Marchava para o combate de luvas brancas. Agora com
a sobrecasaca de guerra coberta de limo, a mesma que a lenda conta
ter as abas 47 vezes perfuradas pelas balas inimigas na segunda
batalha de Tuiuti. O conde, acostumado ao cheiro do sangue derramado
pela pátria, condenado agora ao fedor do mijo. Porque, sim, urinam
na estátua do conde. Cheiro tão forte e tão constante que, mesmo
que lhe reste ainda algum admirador, não haveria como chegar perto.
O conde cheirando como um zorrilho. Que lição para uns e outros,
para tantos.
Durou exatos 27 anos a sua glória em
mármore. Durou até muito tempo, dadas as circunstâncias. Porque a
República proclamada em 1889 lançou uns à porta da frente e outros
ao curral do poder. Nada muito radical, que eram todos cavalheiros e
cavalheiros queriam se manter. Fundamental mesmo era que os peões
continuassem onde sempre estiveram, embuchando os canhões de uns e
também de outros. O fato é que, se dom Pedro II perdeu o posto na
vida, pareceu justo que também o perdesse na praça de todos os
poderes, que desde então virou Marechal Deodoro. E se o imperador
perdeu o lugar, o que sobraria então para o conde. Foi quando sua
estátua teve de ceder a vaga para a do republicano Júlio de
Castilhos. Rumou para a praça que era a do Portão – mas como o
portão não tinha boca nem correligionários para reclamar sua
sorte, já tinha sido rebatizada antes como General Marques e,
naquela ocasião, Conde de Porto Alegre.
Não foi em sacrossanta paz que se
passou. Afinal, a condessa ainda era viva e os antigos donos do poder
não eram gato morto para serem chutados com tanta sem-cerimônia. A
Federação, jornal do partido republicano, disfarçou o que pôde
para agradar aos inimigos de ocasião, mas não de privilégios. Foi
assim que noticiou o traslado da estátua ocorrido na tarde de 12 de
outubro de 1912: “Foi uma verdadeira festa cívica a solemnidade
com que se realisou o acto official da inauguração da estatua do
invicto general, conde de Porto Alegre... O povo affluiu em grande
massa ao local da inauguração, sendo numerosa também a
concurrencia de familias. Os gymnasios trajavam uniforme kaki, de
polainas e luvas brancas...” Achylles Porto Alegre “recitou
soneto de sua lavra”, que terminava em trágico estilo: “Basta!
Basta! Silencio! Elle era a gloria.” Ahã!
Nem na primeira página! Publicaram essa
pérola da diplomacia na página dois. A primeira era ocupada por uma
digressão deveras curiosa: “O recente projecto do divorcio que
dorme sob a classica pedra tumular despertou uma propaganda adversa,
feita por meio de conferencias, no centro cattolico desta capital”.
E discorria sobre uma tese que comprovava o aumento dos “hediondos
crimes de infanticidios” em todos os países que ousaram adotar tal
heresia. Enveredando logo em seguida para a notícia de que o grande
tenor Caruso havia sido coroado com um par de chifres pela “graciosa
soprano” Ada Giacchetti, fato nominado como “um episodio profano
entre artistas de alto cotturno, um desaguisado entre diva e divo”.
Pobre conde decaído, soçobrando entre
anúncios de “pilulas orientaes” para aformosear os seios e
Uroformina Giffoni para “gonorrheas”. Numa edição que ainda
exibia um acirradíssimo match de Foot Ball entre o
Fussball Club Porto Alegre e o Club Recreio Juvenil, onde
“sucederam-se de momento a momento as cargas cerradas ao goal”.
Tsc, tsc.
A Federação ainda teve o desplante de
registrar que a “estatua ficou collocada num lugar de bastante
destaque, fazendo frente para o ponto mais transitado da praça”.
No que foi raivosamente contestada em crônica de Mário Totta nas
páginas do concorrente Correio do Povo: “E correram-te da praça...
O que os inimigos da tua pátria nunca puderam fazer, (...) os teus
patrícios fizeram-te ainda ontem – desalojaram-te. Vivo tu,
ninguém o faria; morto correram-te.”
Assim é a vida, como também a morte, e
é bom que alguns muitos aprendam com o Conde de Porto Alegre. Porque
ainda, ainda não era tudo. Por volta de 1970 viraram o conde. Assim,
como se faz com um velho entrevado. Se mais uma vez cometeram esse
desrespeito, não parece haver registro. O certo é que o olhar
altaneiro, longínquo, que costumava pousar sobre os campos de
batalha antes de esmagar o inimigo, está hoje condenado à tediosa
visão de uma loja de artigos de cama, mesa e banho. Até a espada,
que ele trazia cintilante, para que os inimigos nela pudessem
mirar-se na hora da morte, se quebrou em uma dessas andanças. O
conde – quanta ironia! – ficou sem espada, sem poder, sem fama e
sem glória. Como o mais infeliz, o mais miserável de seus soldados.
No fim tudo é pó. Esquecimento. E o
inconfundível cheiro de urina. E se aconteceu com o conde – o
conde! – pode acontecer com qualquer um. O Conde de Porto Alegre
reduzido a uma vida que ninguém vê num canto da cidade.
Eliane Brum, in A vida que ninguém vê
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