quarta-feira, 14 de abril de 2021

No ponto!

O tempo refrescou. Calamo-nos algum tempo. O mar, atrás das folhagens, suspirava, enfim doce e tranquilo. O vento soprava, o sol se deitou. Dois corvos da tarde passaram sobre nós, e suas asas assobiaram como se estivessem rasgando uma peça de seda — digamos, a combinação de seda de uma cantora.
O crepúsculo caía como uma poeira dourada, que se espalhava pelo rádio. A franja louca de Madame Hortência pegou fogo, e agitou-se na brisa da tarde como se quisesse voar para incendiar as cabeças vizinhas. Seu colo descoberto pela metade, seus joelhos abertos, enfeados pela idade, as rugas de seu pescoço, suas sapatilhas desbeiçadas, tudo se cobriu de ouro.
Nossa velha sereia teve um arrepio. Tendo fechado ao meio seus olhinhos avermelhados pelo vinho e pelas lágrimas, olhou ora para mim, ora para Zorba, que de lábios secos acompanhava enlevado os movimentos de seu seio. Escurecera. Ela olhava para nós dois com um ar interrogador, esforçando-se para adivinhar qual era o seu Canavarro.
Bubulina — arrulhou apaixonadamente Zorba, apoiando seu joelho contra o dela. — não há nem Deus nem Diabo, não dê confiança. Erga sua cabecinha, apóie sua mãozinha na face e cante para nós. Viva a vida, e a morte que vá para o inferno!...
Zorba estava aceso. Enquanto sua mão esquerda torcia os fios do bigode, a mão direita passeava sobre a cantora embriagada.
Falava aos arrancos e seus olhos estavam lânguidos. Certamente não era essa velha mumificada e rebocada que ele via diante de si, mas toda a “espécie fêmea” como era seu hábito de chamar as mulheres.
Desaparecida a individualidade, o rosto apagava-se. Jovem ou decrépita, bela ou feia, eram variantes sem importância. Atrás de cada mulher estava austero, sagrado, cheio de mistério, o rosto de Afrodite.
Este era o rosto que Zorba via, era este que ele desejava e ao qual falara; Madame Hortência não era senão uma máscara efêmera e transparente que Zorba arrancava para beijar a boca eterna.
Levante seu pescoço de neve, meu tesouro — retomou ele com voz súplice e arquejante. — levante seu pescoço de neve, e solte sua canção!
A velha cantora apoiou a face na mão gorducha, gasta no tanque de lavar, e seu olhar se fez langoroso. Deixou escapar um grito selvagem e triste e começou sua canção preferida, mil vezes repetida, olhando para Zorba — ele já havia escolhido — com os olhos opacos e semicerrados: No fim de meus dias... Por que te encontrei ... (Au fin de mes jours — Pourquoi t’ai-je rencontré...)
Zorba pulou, foi buscar o santuri. Sentou-se na terra à turca, despiu o instrumento e levantou suas manoplas.
Oh! Oh! — bramiu ele, — pega uma faca e me degola, minha Bubulina!
Quando a noite começou a cair, e a estrela da noite surgiu no céu, quando se levantou alegre e cúmplice a voz do santuri, Madame Hortência, empanturrada de galinha, arroz, amêndoas grelhadas e vinho, pendurou-se pesadamente sobre os ombros de Zorba e suspirou. Esfregou-se levemente em seus flancos ossudos, gemeu e suspirou mais uma vez.
Zorba me fez um sinal e sussurrou: — Ela está no ponto, patrão. Cai fora!

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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