Meu pai tinha um nome estranho. Que eu
saiba esse nome só houve em Dores da Boa Esperança. Acho que ele se
envergonhava do nome porque, nas apresentações, ele o falava bem
baixinho, acho que para o outro não ouvir.
Qual seria a origem de um nome tão
esquisito, de mau gosto, mesmo? Uma coisa é certa: não foi invenção
de pai ou mãe dorense, porque lá os homens todos tinham nomes
comuns e cristãos. Era sabido que ter o nome de um santo era ter o
santo como padrinho e isso ajudava a vida na terra e a entrada da
alma no céu. Padre não aceitava nome diferente. Quando meu irmão
foi ser batizado, o padre refugou ao ouvir o nome da boca do meu pai.
“Ivan não é nome cristão”. E sem aceitar argumentos batizou o
meu irmão de Ivan José, que é o nome por que ele deve ser
conhecido nos cartórios divinos, muito embora nos cartórios humanos
ele continue a ser simplesmente Ivan. O que me intriga é: o que foi
que fez com que o padre aceitasse o nome do meu pai? Não era nome
cristão. Era nome de um maldito condenado às profundezas do
inferno: Herodiano. Você conhece algum Herodiano? Em Dores ele não
foi o único. Como eu disse, esse nome só poderia ter vindo de fora,
e esse que veio de fora com esse nome foi um juiz. Imaginem agora se
o padre, na pia batismal, recusasse o nome, mormente se o
meretríssimo juiz doutor Herodiano fosse o padrinho. Estava
declarada guerra entre a Igreja e a Justiça. Se a Igreja e a Justiça
estivessem em guerra, como poderiam padre e juiz subirem juntos nos
palanques das festas?
Quais teriam sido as razões que levaram
o pai do juiz a dar-lhe esse nome maldito? Maldito sim, porque
Herodiano vem de Herodes, aquele rei facínora que mandou matar a
espada todas as crianças pequenas na esperança de matar Jesus. Tão
ruim era Herodes que todo mundo rezava por sua morte. Vendo a morte
aproximar-se e imaginando as celebrações de júbilo nas cidades de
Israel, ele ordenou que no dia da sua morte todos os líderes das
aldeias fossem passados ao fio da espada para que todo mundo
chorasse. Não sei se foi assim mesmo, mas foi o que me contaram. É
certo que o pai do juiz Herodiano não gostava da Igreja. O padre,
para ser coerente com a sua fé, deveria ter-se recusado a batizar o
meu pai com o nome Herodiano. Mas, como é bem sabido, os interesses
do poder suplantam as convicções da fé. Como o nome Herodiano era
comprido e complicado de falar, a preguiça do povo o encurtou e meu
pai passou a ser conhecido como Diano, o que, para ele, foi um
alívio.
O que terá levado as mães a escolher
esse nome feio se há tantos nomes bonitos? O nome é feio, mas
imagino que o “meritíssimo” devia ser bonito. Nome feio em homem
bonito fica bonito como o homem... Homem de cidade grande, falava no
“xis”, almofadinha, tomava banho, fazia a barba com navalha,
aparava o bigode, passava brilhantina no cabelo, usava lenço
perfumado no bolsinho do paletó e colarinho engomado com gravata.
Além do que, ele jamais faria o que era comum entre os homens do
lugar: ele não enfiava a camisa por dentro da cueca. Naquele tempo
as cuecas eram de confecção caseira. As noivas, zelosamente
preparadas por suas mães para o casamento, além de aprender a
cozinhar e a fazer doces e quitandas, tinham de aprender a fazer
vestidos e calças para elas mesmas (era assim que se denominavam
aquelas peças do vestuário feminino que hoje são chamadas
calcinhas. Naqueles tempos não havia razão alguma para o “inha”,
porque eram rústicas, motivos de vergonha, e não deveriam ser
dependuradas em varais, onde poderiam ser vistas pelos homens de
imaginação descontrolada. A quantas orgias se entregavam os homens
pela simples contemplação dessa peça do vestuário feminino! De
seda, com rendinhas, só mesmo no corpo de mulheres de vida fácil.
Também atendiam pelo apelido de V-8, nome que nada tinha a ver com
motor de automóvel. Nunca me explicaram a razão de tal apelido.
Imaginei que o V tinha a ver com o fato de que, se vistas de frente,
pareciam um V. E 8 porque, se vistas de cima para baixo, os dois
buracos faziam um 8), e calças, camisas e cuecas para seus maridos,
e também toalhas de banho, feitas de sacos de algodão que eram
descosturados, abertos, alvejados com folhas de mamão no coradouro
e, finalmente, costurados uns nos outros para virarem toalhas. Eu
mesmo só vim a conhecer toalhas de banho compradas em lojas quando
adolescente, no Rio de Janeiro. Aí, felicidade suprema, no dia do
casamento a noiva ganhava uma máquina de costura Singer que seria
seu instrumento de trabalho e sobrevivência caso o seu marido
morresse, como aconteceu com a minha tia Marieta, que muito amei.
Sustentou os filhos costurando. Ela era tão alegre! Morreu de um
jeito que eu gostaria de morrer. Estava tomando sopa com as duas
filhas, falou uma coisa engraçada como era seu costume, deu uma
gargalhada e seu rosto mergulhou no prato. Morreu em meio a uma
risada, tomando sopa...
Pois as cuecas, quando não eram
ceroulas, tinham pernas até o joelho e eram abotoadas na cintura. O
fato de as pernas das cuecas irem até o joelho lhes dava utilidades
impensadas, como aconteceu com o meu tio Antônio, apelidado Fodosca,
pescador inveterado. Havendo feito uma grande pescaria, os peixes não
cabendo no embornal, ele teve uma ideia criativa: tirou as calças,
tirou a cueca, deu nós nas pernas da cueca e a encheu de peixes...
Mas os homens do lugar, sem conhecimento
das finezas da cidade, enfiavam a camisa dentro da cueca, puxavam a
cueca para cima, e ela ficava aparecendo sobre o cinto largo na
cintura, exibindo o botão de madrepérola. O doutor Herodiano,
sabendo que aquelas cuecas eram ridículas, não permitia que fossem
vistas por ninguém e muito menos pelas mulheres: ele enfiava a
camisa entre a cueca e as calças para que a cueca não aparecesse.
Meu pai ganhou a vida de muitas maneiras.
Era menino pequeno quando seu pai morreu. Teve de deixar o grupo
escolar no segundo ano, para ajudar a mãe. Não sei se chegava a ser
uma “loja”. Acho que não passava de uma bitácula, botequim onde
se vendia cachaça, fumo de rolo, toucinho de porco, velas, fósforos,
querosene, que atendia pelo nome de “criosene”, açúcar mascavo,
rapadura, lamparinas. Sua primeira obrigação era varrer, pois loja
mal varrida é sinal de dono desmazelado. Até bem velho ele guardou
a mania de varrer. Era também responsável por acender os lampiões
a querosene, o que ele fazia subindo num tamborete. Aos catorze anos
já era responsável pelo negócio, que já não era mais uma
bitácula, mas um respeitável estabelecimento que vendia ferragens,
tecidos, bijuterias, perfumarias, armarinhos. Progrediu. Ficou muito
rico. Já mencionei a versatilidade da sua empresa. Era proprietário
da única bomba de gasolina da cidade (naquele tempo não havia posto
de gasolina; era uma bomba mesmo, cilíndrica, vermelha, numa
esquina. A gasolina era bombeada à mão e enchia um cilindro de
vidro na cabeça da máquina, onde estavam indicados os litros),
proprietário de várias casas de aluguel, pelas quais nunca recebeu
um tostão porque os inquilinos eram pobres. (Ele não conseguia
cobrar. Quando, andando pela rua, percebia que um devedor se
aproximava, virava a primeira esquina para não lhe causar
constrangimento... Meu irmão Ismael me contou que papai, certa vez,
como representante de uma firma no Rio, foi cobrar uma dívida na
Vila Nepomuceno. A casa do devedor, com todas as janelas abertas,
indicava que havia pessoas lá dentro. Pois ele chegou pé ante pé e
bateu à porta bem de leve, para que ninguém escutasse. Como ninguém
atendesse ele se foi, relatando à dita firma que, no cumprimento de
sua missão de cobrança, não havia encontrado ninguém na casa.)
Exportador de café, dono de fábrica de móveis, armazéns,
teatro-cinema, restaurante, serraria, fábrica de manteiga, bar, sua
loja vendia de tudo, até urnas mortuárias. Provocou revolução em
Boa Esperança e redondezas fabricando picolés. Foi à falência,
ficou pobre, ganhou a vida no cabo de foice e enxada, virou viajante,
vendia de tudo, sacos de aniagem para os fazendeiros, coco ralado,
calendários, correias para movimentar polias, caixas de doces de
fruta em pasta, brinquedos de celulóide, pedras semipreciosas,
materiais para farmácia, inclusive camisinhas, não sei como se
chamavam naqueles tempos. Isso foi meu irmão Ismael que me contou:
acompanhava meu pai nas viagens de trem, fuça daqui, fuça dali,
abriu uma caixa parecida com uma caixa de charutos, e lá estavam
elas arranjadas como numa exposição. Ele levou um susto, acho que
nem sabia direito para que aquilo servia. Perguntei se ele tinha
certeza de que elas eram para venda e não para uso pessoal; aí ele
desconversou. Mas antes de prosseguir é necessário esclarecer a
fabricação das urnas mortuárias que naquele tempo não tinham esse
nome pomposo. Eram conhecidas pelo nome verdadeiro, caixões
dedefunto, porque é isso que são. O defunto é literalmente
encaixotado, não importando a forma exterior do caixote. Eles, os
caixões, vinham das fábricas em estado de esqueleto, armações de
madeira, ripas de pinho, em tamanhos vários, para se ajustarem ao
tamanho do falecido. Era nas lojas em que os ditos esqueletos eram
vendidos que se fazia o acabamento em tecidos de cores várias, de
acordo com o gosto do freguês. O branco era reservado para os
anjinhos e as virgens. Presenciei, na cidade de Perdões, um costume
curioso, num enterro de uma virgem. Vinha o caixão sendo
piedosamente carregado por homens quando, ao se aproximar o enterro
da igreja matriz, várias virgens das Filhas de Maria, todas de
branco, inclusive o véu, substituíram os homens nas alças pelas
quais o caixão era carregado. Passada a igreja, os homens voltaram
às alças e as virgens voltaram aos seus lugares. Fiquei intrigado.
Depois de muito pensar, concluí que assim se fazia para evitar que
Deus, que mora na igreja e de lá observa as coisas, vendo a virgem
sendo carregada por homens, chegasse a conclusões indevidas que
maculassem o estado virginal da defunta. A virgem nem depois de morta
podia ter qualquer relação com os homens. É preciso evitar as
aparências enganosas. Até mesmo Deus pode se enganar... Voltando à
loja do meu pai: o freguês chegava, expunha o seu caso, e o meu pai
lhe mostrava os tecidos mais cheios de dor, geralmente roxos com
beiradas douradas. Aí pregava-se o tecido sobre o esqueleto de
madeira com tachinhas, e estava pronto o caixão de defunto e o
freguês o levava, ou no ombro ou debaixo do braço, conforme o
tamanho. Acho que eram mais ecológicos que os de hoje.
Como eu dizia, meu pai ganhou a vida de
muitas maneiras, mas sua vocação era a de alquimista. Eu exerci a
arte da psicanálise. Um dos meus clientes foi o artista Geraldo
Jürgensen. Certo dia ele chegou para a sessão com cara de moleque.
Perguntei logo: “Que arte você andou fazendo?”. Aí ele me
contou. Fora contratado por uma loja do shopping center para
fazer uma decoração. Estava sem ideias. Resolveu ir caminhar por um
pasto para ver se a inspiração vinha. Veio da forma mais
inesperada. Pisou num bolo de bosta de vaca mole. Ficou muito bravo.
Agachou-se para limpar a gosma. Aí olhou ao redor. O que ele viu o
encheu de alegria: dezenas de montes de bosta de vaca seca, redondos,
esculpidos. Viu imediatamente o que devia fazer. Foi para casa, pegou
uma cesta, voltou ao mesmo lugar, catou um certo número de bostas
secas, levou-as para o seu ateliê, limpou-as com um pincel,
pintou-as com um spray de tinta dourada e com elas fez um
móbile que, naquele momento, estava pendurado no shopping, e
todo mundo queria saber a técnica que usara para produzir aqueles
objetos mágicos, tão delicados, tão leves. E começou a rir. Aí
eu tive satori. Compreendi que isso é a arte da psicanálise:
transformar bosta em ouro. Pois essa era a verdadeira vocação do
meu pai: alquimista. Só que ele não usava tinta dourada para
transubstanciar bosta em ouro. Ele usava as palavras. Usava as
palavras com tal magia que ele mesmo acabava por se convencer. Não
queria ver ninguém triste. Ele fantasiava e pronto: estava
inventado. O problema é que a bosta dourada não dura muito.
Esfarela-se. Volta a ser bosta... Era um homem bonito, assim me
disseram. As mulheres o achavam parecido com Rodolpho Valentino.
Queria ver todo mundo feliz. Queria ver todo mundo feliz porque ele
mesmo queria sentir-se feliz. Falava felicidades. No seu mundo não
havia lugar para dor. Se a dor aparecia ele a transformava
magicamente por meio das palavras. Por isso eu me senti sempre órfão.
Não tinha com quem falar sobre as minhas dores. Se eu trouxesse a
ele minhas dores, meu pai não saberia acolhê-las. Seria doloroso
demais. Para ele. Ele era fraco. Empunhava sua vara de condão e
minhas dores se transformavam em risos. Para ele. Mas em mim elas
continuavam a doer. Fui sempre sozinho.
Ele era um ator que acreditava no seu
script. Sei mesmo que chegou a fazer algumas experiências no
palco, em Boa Esperança. Não deu certo, mas representou seu papel a
vida inteira. Eu disse “representou”. Mas está errado. Um bom
ator não representa. Ele vive o seu papel. Shakespeare se assombrava
com o que acontecia com os atores. “Não é incrível que um
ator, por uma simples ficção, um sonho apaixonado, amolde tanto sua
alma à imaginação, que todo se lhe transfigure o semblante, por
completo o rosto lhe empalideça, lágrimas vertam dos seus olhos,
suas palavras tremam e, inteiro seu organismo se acomode à mera
ficção? E tudo por nada!” Meu pai vivia as suas ficções.
Especializou-se em papéis alegres. Seu público era qualquer grupo
de pessoas. Onde ele estava tudo era alegria.
Tinha tristeza de não ter estudado.
Tratou de compensar. Por conta própria estudou francês, que usava
nos restaurantes do Rio que imitavam Paris. “Poisson sans
boisson, c’est poison...”, ele repetia num tom de
brincadeira. Comprou um atlas enorme, em francês. Uma enciclopédia
de capa preta. Eu ficava olhando as lombadas dos volumes escritas em
dourado onde estavam as primeiras e as últimas palavras de cada
volume. Volume I: A-ARAVEÇA. Volume II: ARAVEL-BEGH. Volume III:
BEGONIA-CAFÉ. Até aí eu sabia de cor. O restante não consegui
aprender. Meu irmão Ismael foi atrás da dita, que está depositada
num canto de um museu onde ninguém a olha, e completou: IV:
CAFEATO-CHLORASTROLITE. VI: CROCIDURA-DRAMA. VII: DRAMADEIRA-ESTRELA
DO SUL. VIII: ESTRELLAMIN-GALEOS. IX: GALEOTA-HIPPODROMIA. X:
HIPPODROMO-JYNGIPICO. XI: K-MACCHABEU S. XII: MACCHIA-MINHO. XIII:
MINHOCA-OBVOLVIDO. XIV: OC-PELIBRANDO. XV: PELI CANA-POUCHYA. XVI:
POUCO-RIO DO FARO. XVII: RIO DE JANEIRO-SCHWARZWASSER. XVIII:
SCHWATKA-SURURUS Diccionario Internacional, Lisboa, Rio de
Janeiro, São Paulo, Londres, Paris, Nova York, W. W. Jackson,
editor, sem data de publicação). E a coleção Biblioteca
Internacional de Obras Célebres. Meu pai a abria na página do poema
de Guerra Junqueiro e o lia. Ao final do poema eu estava chorando. E
me mostrava a ilustração de Robinson Crusoé: ele espantado diante
das pegadas na areia que não eram suas. A Encyclopaedia
foi-se. O atlas francês desapareceu. Restaram-me quatro volumes da
Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
Pagou caro por sua vocação artística.
Arthur Miller, sem o conhecer, escreveu a sua estória: A morte do
caixeiro-viajante. Quando vi essa peça pela primeira vez, num
teatro em São Paulo, o impacto foi tão grande que me senti
fisicamente mal. Era a estória da vida do meu pai. O script da vida
não é igual ao script da peça. A fotografia dele de que mais gosto
é uma em que ele, já velho (mais moço do que eu agora), está
assentado numa poltrona, fumando o seu cachimbo, com olhar perdido. A
fumaça, em suas espirais azuis, vai dissolvendo os contornos nítidos
das coisas. Ela tem um poder de “desrealização” das coisas
sólidas. Os pintores chineses sabiam disto e, para misturar
realidade com irrealidade, enchiam suas telas com neblinas. O
cachimbo é um objeto “nefelegênio” (não procure no dicionário.
Acabei de inventar essa palavra. Quer dizer “gerador de nuvens”).
As últimas palavras que ouvi dele foram: “Ainda há esperança?”.
Bela pergunta para quem nasceu em Boa Esperança. De toda a riqueza,
o que dele herdei foi um peso de papel de vidro verde, cheio de
bolhas de ar. Olhando para aquela infinidade de bolhas de ar, de
tamanhos variados, iluminadas pela luz, imagino que dentro do peso de
papel há galáxias e estrelas…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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