sexta-feira, 2 de abril de 2021

Meu pai

Meu pai tinha um nome estranho. Que eu saiba esse nome só houve em Dores da Boa Esperança. Acho que ele se envergonhava do nome porque, nas apresentações, ele o falava bem baixinho, acho que para o outro não ouvir.
Qual seria a origem de um nome tão esquisito, de mau gosto, mesmo? Uma coisa é certa: não foi invenção de pai ou mãe dorense, porque lá os homens todos tinham nomes comuns e cristãos. Era sabido que ter o nome de um santo era ter o santo como padrinho e isso ajudava a vida na terra e a entrada da alma no céu. Padre não aceitava nome diferente. Quando meu irmão foi ser batizado, o padre refugou ao ouvir o nome da boca do meu pai. “Ivan não é nome cristão”. E sem aceitar argumentos batizou o meu irmão de Ivan José, que é o nome por que ele deve ser conhecido nos cartórios divinos, muito embora nos cartórios humanos ele continue a ser simplesmente Ivan. O que me intriga é: o que foi que fez com que o padre aceitasse o nome do meu pai? Não era nome cristão. Era nome de um maldito condenado às profundezas do inferno: Herodiano. Você conhece algum Herodiano? Em Dores ele não foi o único. Como eu disse, esse nome só poderia ter vindo de fora, e esse que veio de fora com esse nome foi um juiz. Imaginem agora se o padre, na pia batismal, recusasse o nome, mormente se o meretríssimo juiz doutor Herodiano fosse o padrinho. Estava declarada guerra entre a Igreja e a Justiça. Se a Igreja e a Justiça estivessem em guerra, como poderiam padre e juiz subirem juntos nos palanques das festas?
Quais teriam sido as razões que levaram o pai do juiz a dar-lhe esse nome maldito? Maldito sim, porque Herodiano vem de Herodes, aquele rei facínora que mandou matar a espada todas as crianças pequenas na esperança de matar Jesus. Tão ruim era Herodes que todo mundo rezava por sua morte. Vendo a morte aproximar-se e imaginando as celebrações de júbilo nas cidades de Israel, ele ordenou que no dia da sua morte todos os líderes das aldeias fossem passados ao fio da espada para que todo mundo chorasse. Não sei se foi assim mesmo, mas foi o que me contaram. É certo que o pai do juiz Herodiano não gostava da Igreja. O padre, para ser coerente com a sua fé, deveria ter-se recusado a batizar o meu pai com o nome Herodiano. Mas, como é bem sabido, os interesses do poder suplantam as convicções da fé. Como o nome Herodiano era comprido e complicado de falar, a preguiça do povo o encurtou e meu pai passou a ser conhecido como Diano, o que, para ele, foi um alívio.
O que terá levado as mães a escolher esse nome feio se há tantos nomes bonitos? O nome é feio, mas imagino que o “meritíssimo” devia ser bonito. Nome feio em homem bonito fica bonito como o homem... Homem de cidade grande, falava no “xis”, almofadinha, tomava banho, fazia a barba com navalha, aparava o bigode, passava brilhantina no cabelo, usava lenço perfumado no bolsinho do paletó e colarinho engomado com gravata. Além do que, ele jamais faria o que era comum entre os homens do lugar: ele não enfiava a camisa por dentro da cueca. Naquele tempo as cuecas eram de confecção caseira. As noivas, zelosamente preparadas por suas mães para o casamento, além de aprender a cozinhar e a fazer doces e quitandas, tinham de aprender a fazer vestidos e calças para elas mesmas (era assim que se denominavam aquelas peças do vestuário feminino que hoje são chamadas calcinhas. Naqueles tempos não havia razão alguma para o “inha”, porque eram rústicas, motivos de vergonha, e não deveriam ser dependuradas em varais, onde poderiam ser vistas pelos homens de imaginação descontrolada. A quantas orgias se entregavam os homens pela simples contemplação dessa peça do vestuário feminino! De seda, com rendinhas, só mesmo no corpo de mulheres de vida fácil. Também atendiam pelo apelido de V-8, nome que nada tinha a ver com motor de automóvel. Nunca me explicaram a razão de tal apelido. Imaginei que o V tinha a ver com o fato de que, se vistas de frente, pareciam um V. E 8 porque, se vistas de cima para baixo, os dois buracos faziam um 8), e calças, camisas e cuecas para seus maridos, e também toalhas de banho, feitas de sacos de algodão que eram descosturados, abertos, alvejados com folhas de mamão no coradouro e, finalmente, costurados uns nos outros para virarem toalhas. Eu mesmo só vim a conhecer toalhas de banho compradas em lojas quando adolescente, no Rio de Janeiro. Aí, felicidade suprema, no dia do casamento a noiva ganhava uma máquina de costura Singer que seria seu instrumento de trabalho e sobrevivência caso o seu marido morresse, como aconteceu com a minha tia Marieta, que muito amei. Sustentou os filhos costurando. Ela era tão alegre! Morreu de um jeito que eu gostaria de morrer. Estava tomando sopa com as duas filhas, falou uma coisa engraçada como era seu costume, deu uma gargalhada e seu rosto mergulhou no prato. Morreu em meio a uma risada, tomando sopa...
Pois as cuecas, quando não eram ceroulas, tinham pernas até o joelho e eram abotoadas na cintura. O fato de as pernas das cuecas irem até o joelho lhes dava utilidades impensadas, como aconteceu com o meu tio Antônio, apelidado Fodosca, pescador inveterado. Havendo feito uma grande pescaria, os peixes não cabendo no embornal, ele teve uma ideia criativa: tirou as calças, tirou a cueca, deu nós nas pernas da cueca e a encheu de peixes...
Mas os homens do lugar, sem conhecimento das finezas da cidade, enfiavam a camisa dentro da cueca, puxavam a cueca para cima, e ela ficava aparecendo sobre o cinto largo na cintura, exibindo o botão de madrepérola. O doutor Herodiano, sabendo que aquelas cuecas eram ridículas, não permitia que fossem vistas por ninguém e muito menos pelas mulheres: ele enfiava a camisa entre a cueca e as calças para que a cueca não aparecesse.
Meu pai ganhou a vida de muitas maneiras. Era menino pequeno quando seu pai morreu. Teve de deixar o grupo escolar no segundo ano, para ajudar a mãe. Não sei se chegava a ser uma “loja”. Acho que não passava de uma bitácula, botequim onde se vendia cachaça, fumo de rolo, toucinho de porco, velas, fósforos, querosene, que atendia pelo nome de “criosene”, açúcar mascavo, rapadura, lamparinas. Sua primeira obrigação era varrer, pois loja mal varrida é sinal de dono desmazelado. Até bem velho ele guardou a mania de varrer. Era também responsável por acender os lampiões a querosene, o que ele fazia subindo num tamborete. Aos catorze anos já era responsável pelo negócio, que já não era mais uma bitácula, mas um respeitável estabelecimento que vendia ferragens, tecidos, bijuterias, perfumarias, armarinhos. Progrediu. Ficou muito rico. Já mencionei a versatilidade da sua empresa. Era proprietário da única bomba de gasolina da cidade (naquele tempo não havia posto de gasolina; era uma bomba mesmo, cilíndrica, vermelha, numa esquina. A gasolina era bombeada à mão e enchia um cilindro de vidro na cabeça da máquina, onde estavam indicados os litros), proprietário de várias casas de aluguel, pelas quais nunca recebeu um tostão porque os inquilinos eram pobres. (Ele não conseguia cobrar. Quando, andando pela rua, percebia que um devedor se aproximava, virava a primeira esquina para não lhe causar constrangimento... Meu irmão Ismael me contou que papai, certa vez, como representante de uma firma no Rio, foi cobrar uma dívida na Vila Nepomuceno. A casa do devedor, com todas as janelas abertas, indicava que havia pessoas lá dentro. Pois ele chegou pé ante pé e bateu à porta bem de leve, para que ninguém escutasse. Como ninguém atendesse ele se foi, relatando à dita firma que, no cumprimento de sua missão de cobrança, não havia encontrado ninguém na casa.) Exportador de café, dono de fábrica de móveis, armazéns, teatro-cinema, restaurante, serraria, fábrica de manteiga, bar, sua loja vendia de tudo, até urnas mortuárias. Provocou revolução em Boa Esperança e redondezas fabricando picolés. Foi à falência, ficou pobre, ganhou a vida no cabo de foice e enxada, virou viajante, vendia de tudo, sacos de aniagem para os fazendeiros, coco ralado, calendários, correias para movimentar polias, caixas de doces de fruta em pasta, brinquedos de celulóide, pedras semipreciosas, materiais para farmácia, inclusive camisinhas, não sei como se chamavam naqueles tempos. Isso foi meu irmão Ismael que me contou: acompanhava meu pai nas viagens de trem, fuça daqui, fuça dali, abriu uma caixa parecida com uma caixa de charutos, e lá estavam elas arranjadas como numa exposição. Ele levou um susto, acho que nem sabia direito para que aquilo servia. Perguntei se ele tinha certeza de que elas eram para venda e não para uso pessoal; aí ele desconversou. Mas antes de prosseguir é necessário esclarecer a fabricação das urnas mortuárias que naquele tempo não tinham esse nome pomposo. Eram conhecidas pelo nome verdadeiro, caixões dedefunto, porque é isso que são. O defunto é literalmente encaixotado, não importando a forma exterior do caixote. Eles, os caixões, vinham das fábricas em estado de esqueleto, armações de madeira, ripas de pinho, em tamanhos vários, para se ajustarem ao tamanho do falecido. Era nas lojas em que os ditos esqueletos eram vendidos que se fazia o acabamento em tecidos de cores várias, de acordo com o gosto do freguês. O branco era reservado para os anjinhos e as virgens. Presenciei, na cidade de Perdões, um costume curioso, num enterro de uma virgem. Vinha o caixão sendo piedosamente carregado por homens quando, ao se aproximar o enterro da igreja matriz, várias virgens das Filhas de Maria, todas de branco, inclusive o véu, substituíram os homens nas alças pelas quais o caixão era carregado. Passada a igreja, os homens voltaram às alças e as virgens voltaram aos seus lugares. Fiquei intrigado. Depois de muito pensar, concluí que assim se fazia para evitar que Deus, que mora na igreja e de lá observa as coisas, vendo a virgem sendo carregada por homens, chegasse a conclusões indevidas que maculassem o estado virginal da defunta. A virgem nem depois de morta podia ter qualquer relação com os homens. É preciso evitar as aparências enganosas. Até mesmo Deus pode se enganar... Voltando à loja do meu pai: o freguês chegava, expunha o seu caso, e o meu pai lhe mostrava os tecidos mais cheios de dor, geralmente roxos com beiradas douradas. Aí pregava-se o tecido sobre o esqueleto de madeira com tachinhas, e estava pronto o caixão de defunto e o freguês o levava, ou no ombro ou debaixo do braço, conforme o tamanho. Acho que eram mais ecológicos que os de hoje.
Como eu dizia, meu pai ganhou a vida de muitas maneiras, mas sua vocação era a de alquimista. Eu exerci a arte da psicanálise. Um dos meus clientes foi o artista Geraldo Jürgensen. Certo dia ele chegou para a sessão com cara de moleque. Perguntei logo: “Que arte você andou fazendo?”. Aí ele me contou. Fora contratado por uma loja do shopping center para fazer uma decoração. Estava sem ideias. Resolveu ir caminhar por um pasto para ver se a inspiração vinha. Veio da forma mais inesperada. Pisou num bolo de bosta de vaca mole. Ficou muito bravo. Agachou-se para limpar a gosma. Aí olhou ao redor. O que ele viu o encheu de alegria: dezenas de montes de bosta de vaca seca, redondos, esculpidos. Viu imediatamente o que devia fazer. Foi para casa, pegou uma cesta, voltou ao mesmo lugar, catou um certo número de bostas secas, levou-as para o seu ateliê, limpou-as com um pincel, pintou-as com um spray de tinta dourada e com elas fez um móbile que, naquele momento, estava pendurado no shopping, e todo mundo queria saber a técnica que usara para produzir aqueles objetos mágicos, tão delicados, tão leves. E começou a rir. Aí eu tive satori. Compreendi que isso é a arte da psicanálise: transformar bosta em ouro. Pois essa era a verdadeira vocação do meu pai: alquimista. Só que ele não usava tinta dourada para transubstanciar bosta em ouro. Ele usava as palavras. Usava as palavras com tal magia que ele mesmo acabava por se convencer. Não queria ver ninguém triste. Ele fantasiava e pronto: estava inventado. O problema é que a bosta dourada não dura muito. Esfarela-se. Volta a ser bosta... Era um homem bonito, assim me disseram. As mulheres o achavam parecido com Rodolpho Valentino. Queria ver todo mundo feliz. Queria ver todo mundo feliz porque ele mesmo queria sentir-se feliz. Falava felicidades. No seu mundo não havia lugar para dor. Se a dor aparecia ele a transformava magicamente por meio das palavras. Por isso eu me senti sempre órfão. Não tinha com quem falar sobre as minhas dores. Se eu trouxesse a ele minhas dores, meu pai não saberia acolhê-las. Seria doloroso demais. Para ele. Ele era fraco. Empunhava sua vara de condão e minhas dores se transformavam em risos. Para ele. Mas em mim elas continuavam a doer. Fui sempre sozinho.
Ele era um ator que acreditava no seu script. Sei mesmo que chegou a fazer algumas experiências no palco, em Boa Esperança. Não deu certo, mas representou seu papel a vida inteira. Eu disse “representou”. Mas está errado. Um bom ator não representa. Ele vive o seu papel. Shakespeare se assombrava com o que acontecia com os atores. “Não é incrível que um ator, por uma simples ficção, um sonho apaixonado, amolde tanto sua alma à imaginação, que todo se lhe transfigure o semblante, por completo o rosto lhe empalideça, lágrimas vertam dos seus olhos, suas palavras tremam e, inteiro seu organismo se acomode à mera ficção? E tudo por nada!” Meu pai vivia as suas ficções. Especializou-se em papéis alegres. Seu público era qualquer grupo de pessoas. Onde ele estava tudo era alegria.
Tinha tristeza de não ter estudado. Tratou de compensar. Por conta própria estudou francês, que usava nos restaurantes do Rio que imitavam Paris. “Poisson sans boisson, c’est poison...”, ele repetia num tom de brincadeira. Comprou um atlas enorme, em francês. Uma enciclopédia de capa preta. Eu ficava olhando as lombadas dos volumes escritas em dourado onde estavam as primeiras e as últimas palavras de cada volume. Volume I: A-ARAVEÇA. Volume II: ARAVEL-BEGH. Volume III: BEGONIA-CAFÉ. Até aí eu sabia de cor. O restante não consegui aprender. Meu irmão Ismael foi atrás da dita, que está depositada num canto de um museu onde ninguém a olha, e completou: IV: CAFEATO-CHLORASTROLITE. VI: CROCIDURA-DRAMA. VII: DRAMADEIRA-ESTRELA DO SUL. VIII: ESTRELLAMIN-GALEOS. IX: GALEOTA-HIPPODROMIA. X: HIPPODROMO-JYNGIPICO. XI: K-MACCHABEU S. XII: MACCHIA-MINHO. XIII: MINHOCA-OBVOLVIDO. XIV: OC-PELIBRANDO. XV: PELI CANA-POUCHYA. XVI: POUCO-RIO DO FARO. XVII: RIO DE JANEIRO-SCHWARZWASSER. XVIII: SCHWATKA-SURURUS Diccionario Internacional, Lisboa, Rio de Janeiro, São Paulo, Londres, Paris, Nova York, W. W. Jackson, editor, sem data de publicação). E a coleção Biblioteca Internacional de Obras Célebres. Meu pai a abria na página do poema de Guerra Junqueiro e o lia. Ao final do poema eu estava chorando. E me mostrava a ilustração de Robinson Crusoé: ele espantado diante das pegadas na areia que não eram suas. A Encyclopaedia foi-se. O atlas francês desapareceu. Restaram-me quatro volumes da Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
Pagou caro por sua vocação artística. Arthur Miller, sem o conhecer, escreveu a sua estória: A morte do caixeiro-viajante. Quando vi essa peça pela primeira vez, num teatro em São Paulo, o impacto foi tão grande que me senti fisicamente mal. Era a estória da vida do meu pai. O script da vida não é igual ao script da peça. A fotografia dele de que mais gosto é uma em que ele, já velho (mais moço do que eu agora), está assentado numa poltrona, fumando o seu cachimbo, com olhar perdido. A fumaça, em suas espirais azuis, vai dissolvendo os contornos nítidos das coisas. Ela tem um poder de “desrealização” das coisas sólidas. Os pintores chineses sabiam disto e, para misturar realidade com irrealidade, enchiam suas telas com neblinas. O cachimbo é um objeto “nefelegênio” (não procure no dicionário. Acabei de inventar essa palavra. Quer dizer “gerador de nuvens”). As últimas palavras que ouvi dele foram: “Ainda há esperança?”. Bela pergunta para quem nasceu em Boa Esperança. De toda a riqueza, o que dele herdei foi um peso de papel de vidro verde, cheio de bolhas de ar. Olhando para aquela infinidade de bolhas de ar, de tamanhos variados, iluminadas pela luz, imagino que dentro do peso de papel há galáxias e estrelas…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Nenhum comentário:

Postar um comentário