Onde eu tinha a cabeça? que feno era
esse que fazia a cama, mais macio, mais cheiroso, mais tranquilo, me
deitando no dorso profundo dos estábulos e dos currais? que feno era
esse que me guardava em repouso, entorpecido pela língua larga de
uma vaca extremosa, me ruminando carícias na pele adormecida? que
feno era esse que me esvaía em calmos sonhos, sobrevoando a
queimadura das urtigas e me embalando com o vento no lençol imenso
da floração dos pastos? que sono era esse tão frugal, tão
imberbe, só sugando nos mamilos o caldo mais fino dos pomares? que
frutos tão conclusos assim moles resistentes quando mordidos e
repuxados no sono dos meus dentes? que grãos mais brancos e
seráficos, debulhando sorrisos plácidos, se a varejeira do meu
sonho verde me saía pelos lábios? que semente mais escondida, mais
paciente! que hibernação mais demorada! que sol mais esquecido, que
rês mais adolescente, que sono mais abandonado entre mourões, entre
mugidos! onde eu tinha a cabeça? não tenho outra pergunta nessas
madrugadas inteiras em claro em que abro a janela e tenho ímpetos de
acender círios em fileiras sobre as asas úmidas e silenciosas de
uma brisa azul que feito um cachecol alado corre sempre na mesma hora
a atmosfera; não era o meu sono, como um antigo pomo, todo feito de
horas maduras? que resinas se dissolviam na danação do espaço, me
fustigando sorrateiras a relva delicada das narinas? que sopro súbito
e quente me ergueu os cílios de repente? que salto, que potro
inopinado e sem sossego correu com meu corpo em galope levitado?
essas as perguntas que vou perguntando em ordem e sem saber a quem
pergunto, escavando a terra sob a luz precoce da minha janela, feito
um madrugador enlouquecido que na temperatura mais caída da manhã
se desfaz das cobertas do leito uterino e se põe descalço e em
jejum a arrumar blocos de pedra numa prateleira; não era de feno,
era numa cama bem curtida de composto, era de estrume meu
travesseiro, ali onde germina a planta mais improvável, certo
cogumelo, certa flor venenosa, que brota com virulência rompendo o
musgo dos textos dos mais velhos; este pó primevo, a gema nuclear,
engendrado nos canais subterrâneos e irrompendo numa terra fofa e
imaginosa: “que tormento, mas que tormento, mas que tormento!”
fui confessando e recolhendo nas palavras o licor inútil que eu
filtrava, mas que doce amargura dizer as coisas, traçando num quadro
de silêncio a simetria dos canteiros, a sinuosidade dos caminhos de
pedra no meio da relva, fincando as estacas de eucalipto dos
viveiros, abrindo com mãos cavas a boca das olarias, erguendo em
prumo as paredes úmidas das esterqueiras, e nesse silêncio
esquadrinhado em harmonia, cheirando a vinho, cheirando a estrume,
compor aí o tempo, pacientemente.
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica
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