(Fundindo os vidros e os metais da minha
córnea, e atirando um punhado de areia pra cegar a atmosfera,
incursiono às vezes num sono já dormido, enxergando através
daquele filtro fosco um pó rudimentar, uma pedra de moenda, um
pilão, um socador provecto, e uns varais extensos, e umas gamelas
ulceradas, carcomidas, de tanto esforço em suas lidas, e uma caneca
amassada, e uma moringa sempre à sombra machucada na sua bica, e um
torrador de café, cilíndrico, fumacento, enegrecido, lamentoso,
pachorrento, girando ainda à manivela na memória; e vou extraindo
deste poço as panelas de barro, e uma cumbuca no parapeito fazendo
de saleiro, e um latão de leite sempre assíduo na soleira, e um
ferro de passar saindo ao vento pra recuperar a sua febre, e um bule
de ágata, e um fogão a lenha, e um tacho imenso, e uma chaleira de
ferro, soturna, chocando dia e noite sobre a chapa; e poderia retirar
do mesmo saco um couro de cabrito ao pé da cama, e uma louça
ingênua adornando a sala, e uma Santa Ceia na parede, e as capas
brancas escondendo o encosto das cadeiras de palhinha, e um cabide de
chapéu feito de curvas, e um antigo porta-retrato, e uma fotografia
castanha, nupcial, trazendo como fundo um cenário irreal, e puxaria
ainda muitos outros fragmentos, miúdos, poderosos, que conservo no
mesmo fosso como guardião zeloso das coisas da família.)
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica
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