terça-feira, 20 de abril de 2021

Flertando com o desconhecido

Muita gente acha que a ciência é uma atividade sem emoções, destituída de drama, fria e racional. Na verdade, é justamente o oposto. A premissa da ciência é a nossa ignorância, nossa vulnerabilidade em relação ao desconhecido, ao que não sabemos. A ciência é um flerte com o não saber, com o desconhecido que nos cerca. Na pesquisa, existe sempre uma sensação de insegurança, de não termos certeza se estamos indo na direção certa. Muitas vezes, quando experimentos revelam novos aspectos da Natureza que não haviam sequer sido conjecturados, a enorme surpresa, a sensação de tatearmos no escuro, pode levar ao desespero. E agora? Se nossas teorias não podem explicar o que estamos observando, como ir adiante?
Nenhum exemplo na história da ciência ilustra melhor esse drama do que o nascimento da física quântica, que descreve o comportamento dos átomos e das partículas subatômicas, e que está por trás de toda a revolução digital que rege a sociedade moderna. Ao final do século XIX, a física estava com muito prestígio. A mecânica de Newton, a teoria eletromagnética de Faraday e Maxwell, a compreensão dos fenômenos térmicos, tudo levava a crer que a ciência estava perto de chegar ao seu objetivo final, a compreensão de toda a Natureza.
Ao menos assim pensavam vários físicos eminentes. Grande engano. Para surpresa de muitos, experimentos revelaram fenômenos que não podiam ser explicados pelas teorias da chamada era clássica. Não se entendia por que corpos aquecidos acima de certas temperaturas brilhavam com aquela luz avermelhada que vemos nas brasas de uma fogueira. Não se entendia por que a luz violeta podia tornar uma placa metálica eletricamente carregada, enquanto a luz amarela nada fazia, deixando a placa eletricamente neutra. Não se sabia se átomos eram ou não entidades reais, já que a física clássica previa que seriam instáveis, com os elétrons espiralando em direção ao núcleo atômico.
Gradualmente, ficou claro que uma nova física era necessária para lidar com o mundo do muito pequeno. Mas que física seria essa? Ninguém queria mudanças muito radicais. Ou quase ninguém. A primeira ideia da nova era veio de Max Planck. Em 1900, ele propôs que átomos recebem e emitem energia em pequenos pacotes, que chamou de “quanta”. Antes disso, todos achavam que qualquer sistema emitia e recebia energia continuamente, feito quando aquecemos um bule de água. Eis como Planck relatou seu estado emocional ao propor a ideia do quantum: “Resumidamente, posso descrever minha atitude como um ato de desespero, já que por natureza sou uma pessoa pacífica e contrária a aventuras irresponsáveis [...] quaisquer que fossem as circunstâncias, qualquer que fosse o preço a ser pago, eu tinha que obter um resultado positivo.”
O uso da palavra “desespero” é revelador. Planck viu-se forçado a propor algo fundamentalmente novo, que ia contra tudo o que havia aprendido até então e que acreditava ser correto sobre a Natureza. Abandonar o velho e propor o novo requer muita coragem intelectual. E muita humildade, algo que faltava aos que achavam que a física estava quase completa. Planck sabia que a física tem como missão explicar o mundo natural, mesmo que a explicação contrarie nossas ideias preconcebidas. Os experimentos não deixavam dúvida de que algo radicalmente novo era necessário. Planck, modelo de integridade intelectual de um cientista, sabia que seu compromisso com a Natureza era o único que importava.
Nunca devemos arrogar que nossas ideias tenham precedência sobre o que a Natureza nos diz. A ciência é um jogo de pega-pega, e a Natureza está sempre na frente. Como Planck, existem muitos cientistas que, deparando-se com resultados misteriosos e surpreendentes, lutam para propor e aceitar ideias que vão contra o que acreditam ser correto. Isto pode ser doloroso, mas é essencial. Caso contrário, a insistência numa ideia se transforma em cegueira. Talvez essa seja a lição mais importante da ciência: que a Natureza nem sempre corresponde aos nossos anseios, e que precisamos encará-la com a humildade de quem sabe muito pouco.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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