I
Sempre destacavam novatos pra limpar a
sujeira dos pombos, e enquanto a gente ficava limpando os desgraçados
voltavam e cagavam de novo no cabelo, na cara e na roupa da gente.
Não se ganhava sabão – apenas água e escovão, e tinha-se que
fazer muita força pra tirar toda aquela porcaria. Mais tarde
mudava-se pra oficina mecânica, onde pagavam 3 cents por hora, mas
quando se era novato a primeira coisa que se fazia era limpar merda
de pombo.
Eu estava junto quando Blaine teve a
ideia. Viu, parado no canto, um pombo que não podia mais voar.
– Escuta – disse ele –, eu sei que
esses bichos falam uns com os outros. Vamos fornecer assunto pra
aquele ali. A gente dá um jeito nele e joga lá pra cima no telhado,
pra contar pros outros o que tá acontecendo aqui embaixo.
– Tá legal – concordei.
Blaine se aproximou e levantou o pombo do
chão. Tinha uma pequena gilete enferrujada na mão. Olhou em torno.
Estávamos no canto mais escuro do pátio de exercício. Fazia muito
calor e havia uma porção de presos por perto.
– Algum dos cavalheiros presentes não
gostaria de me auxiliar nesta operação?
Não houve resposta.
Blaine começou a cortar a pata do pombo.
Homens fortes viraram as costas. Vi um ou dois, que estavam mais
perto, cobrindo a fronte com a mão para não enxergar.
– Porra, caras, o que é que há com
vocês? – gritei. – A gente já tá farto de ficar com o cabelo e
os olhos cheios de merda de pombo! Vamos dar um jeito neste aqui pra,
quando chegar lá em cima no telhado, poder contar pros outros: “Tem
uns sacanas desgraçados lá embaixo! Não cheguem perto deles!”
Este pombo vai fazer com que os outros parem de cagar na cabeça da
gente!
Blaine jogou o pombo pro alto. Não me
lembro mais se a coisa deu certo ou não. Só sei que, enquanto
esfregava, minha escova bateu naquelas duas patas. Pareciam
estranhíssimas, assim soltas, sem estarem ligadas a pombo nenhum.
Continuei esfregando e misturei tudo na merda.
II
Na maioria, as celas viviam cheias
demais, e ocorreram vários distúrbios raciais. Mas os guardas eram
sádicos. Transferiram Blaine da minha pra outra, repleta de negros.
Mal ele entra, ouve um deles dizer:
– Taí o meu veado! É isso aí,
pessoal, esse cara vai ser meu veado! Aliás, bem que se podia
dividir ele entre nós! Você vai tirar a roupa, filhinho, ou quer
que a gente te ajude?
Blaine tira toda a roupa e se deita de
bruços no chão.
Fica ouvindo passos ao redor.
– Credo! Nunca vi olho de cu mais feio
que este!
– Nem dá pra ficar de pau duro, Boyer,
palavra, brochei!
– Nossa, parece rosca mofada!
Todos se afastam, Blaine levanta e se
veste de novo. Depois me conta no pátio de exercício:
– Tive sorte. Iam me esquartejar!
– Nada como ter cu horrendo – digo
eu.
III
Depois teve Sears. Puseram Sears numa
cela cheia de negros. Sears olhou em torno e se atracou no maior de
todos. O cara caiu no chão. Sears deu um salto e se jogou, com os
dois joelhos, em cima do peito do outro. A luta continuou. Sears fez
picadinho do negro. O resto se limitou a assistir.
Sears simplesmente nem se abalava. Lá
fora, no pátio, se agachava nos calcanhares, fazendo seu baseado,
fumando bagana. Olhava pro crioulo. Sorria. Expelia a fumaça.
– Sabe de onde é que eu sou? –
perguntava pro preto.
O cara não respondia.
– De Two Rivers, Mississippi.
Tragava, retinha a fumaça, expelia,
sorria e rebolava as cadeiras.
– Tu ia gostar daquilo lá.
Aí atirava fora a bagana, levantava,
virava as costas e atravessava o pátio...
IV
Sears atiçava também os brancos. O
cabelo dele era gozado. Parecia grudado no crânio, todo eriçado,
cor de fogo e sujo. Tinha uma cicatriz de faca no rosto e olho
redondo, mas bem redondo mesmo.
Ned Lincoln aparentava 19, mas tinha 22
anos – sempre de boca aberta, corcunda, com uma pelezinha branca
encobrindo a ponta da vista esquerda. No primeiro dia do garoto no
presídio, Sears deu com ele no pátio.
– EI, CARA! – berrou.
O garoto se virou.
Sears apontou pra ele.
– É TU MESMO! VOU ACABAR COM O TEU
COURO, CARA! ACHO BOM FICAR PREPARADO, AMANHÃ EU TE PEGO! VOU ACABAR
COM O TEU COURO, CARA!
Ned Lincoln ficou simplesmente parado,
sem entender patavina. Sears começou a papear com outro preso, como
se nada tivesse acontecido. Mas a gente sabia como ele era. Bastava
fazer aquela declaração e pronto.
Um dos companheiros de cela do rapaz
falou com ele naquela noite.
– Acho bom você se preparar, meu
filho, aquele cara não é de brincadeira. É melhor tu arranjar
alguma coisa.
– O quê, por exemplo?
– Ué, você pode fazer uma faquinha
tirando a ponta da torneira da pia e depois afiando no cimento do
chão. Mas também posso te vender uma faca boa de verdade, por dois
paus.
O rapaz comprou a faca, mas no dia
seguinte não arredou pé da cela nem apareceu no pátio.
– Aquele merdinha tá com medo –
falou Sears.
– Eu também estaria – retruquei.
– Que nada, você aparecia – disse
ele.
– Aparecia coisa nenhuma.
– Aparecia, sim – insistiu.
– Tá, então eu aparecia.
Sears, no dia seguinte, acabou com a vida
de Ned no chuveiro. Ninguém viu nada. Só o sangue vermelho
escorrendo no ralo, misturado com água e sabão.
V
Tem cara que não entrega a rapadura. Nem
na solitária. Joe Statz era um. Parecia que nunca mais ia sair de
lá. Era o alvo favorito do diretor. Se conseguisse dobrar Joe, teria
melhor controle sobre o resto dos presos.
Um dia foi até lá com dois guardas,
mandou levantar a tampa da grade, se pôs de joelhos e gritou pra Joe
lá embaixo:
– JOE! JOE, COMO É? JÁ CHEGA? QUER
SAIR DAÍ, JOE? NÃO QUER APROVEITAR ESTA CHANCE? OLHA QUE TÃO CEDO
EU NÃO APAREÇO DE NOVO POR AQUI!
Não houve a menor resposta.
– JOE! JOE! TÁ ME OUVINDO?
– Tô, sim.
– ENTÃO, QUAL É A RESPOSTA, JOE?
Joe pegou o balde, cheio de mijo e merda,
e jogou na cara do diretor. Os guardas repuseram a tampa no lugar. Ao
que consta, Joe continua ainda lá, mais morto do que vivo. Todo
mundo ficou sabendo do que ele fez com o diretor. A gente de vez em
quando se lembrava dele. Sobretudo quando as luzes apagavam.
VI
Quando eu sair, pensei, vou esperar um
pouco e depois vou voltar pra cá. Vou ficar parado lá fora, sabendo
exatamente o que está se passando aqui dentro. E vou olhar bem firme
pra estas paredes e tomar a decisão de nunca mais ser preso.
Mas depois que saí, nunca mais voltei.
Nem pra ficar olhando as paredes lá fora. É que nem mulher que não
presta. Não adianta voltar. Não dá nem pra olhar pra ela. Mas
falar, a gente pode. Fica mais fácil. E foi o que fiz hoje, um
pouco. Boa sorte, companheiro, aí dentro ou aqui fora da prisão.
Charles Bukowski, in A mulher mais linda da cidade
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