sexta-feira, 16 de abril de 2021

Cenas da penitenciária

 I

Sempre destacavam novatos pra limpar a sujeira dos pombos, e enquanto a gente ficava limpando os desgraçados voltavam e cagavam de novo no cabelo, na cara e na roupa da gente. Não se ganhava sabão – apenas água e escovão, e tinha-se que fazer muita força pra tirar toda aquela porcaria. Mais tarde mudava-se pra oficina mecânica, onde pagavam 3 cents por hora, mas quando se era novato a primeira coisa que se fazia era limpar merda de pombo.
Eu estava junto quando Blaine teve a ideia. Viu, parado no canto, um pombo que não podia mais voar.
Escuta – disse ele –, eu sei que esses bichos falam uns com os outros. Vamos fornecer assunto pra aquele ali. A gente dá um jeito nele e joga lá pra cima no telhado, pra contar pros outros o que tá acontecendo aqui embaixo.
Tá legal – concordei.
Blaine se aproximou e levantou o pombo do chão. Tinha uma pequena gilete enferrujada na mão. Olhou em torno. Estávamos no canto mais escuro do pátio de exercício. Fazia muito calor e havia uma porção de presos por perto.
Algum dos cavalheiros presentes não gostaria de me auxiliar nesta operação?
Não houve resposta.
Blaine começou a cortar a pata do pombo. Homens fortes viraram as costas. Vi um ou dois, que estavam mais perto, cobrindo a fronte com a mão para não enxergar.
Porra, caras, o que é que há com vocês? – gritei. – A gente já tá farto de ficar com o cabelo e os olhos cheios de merda de pombo! Vamos dar um jeito neste aqui pra, quando chegar lá em cima no telhado, poder contar pros outros: “Tem uns sacanas desgraçados lá embaixo! Não cheguem perto deles!” Este pombo vai fazer com que os outros parem de cagar na cabeça da gente!
Blaine jogou o pombo pro alto. Não me lembro mais se a coisa deu certo ou não. Só sei que, enquanto esfregava, minha escova bateu naquelas duas patas. Pareciam estranhíssimas, assim soltas, sem estarem ligadas a pombo nenhum. Continuei esfregando e misturei tudo na merda.

II
Na maioria, as celas viviam cheias demais, e ocorreram vários distúrbios raciais. Mas os guardas eram sádicos. Transferiram Blaine da minha pra outra, repleta de negros. Mal ele entra, ouve um deles dizer:
Taí o meu veado! É isso aí, pessoal, esse cara vai ser meu veado! Aliás, bem que se podia dividir ele entre nós! Você vai tirar a roupa, filhinho, ou quer que a gente te ajude?
Blaine tira toda a roupa e se deita de bruços no chão.
Fica ouvindo passos ao redor.
Credo! Nunca vi olho de cu mais feio que este!
Nem dá pra ficar de pau duro, Boyer, palavra, brochei!
Nossa, parece rosca mofada!
Todos se afastam, Blaine levanta e se veste de novo. Depois me conta no pátio de exercício:
Tive sorte. Iam me esquartejar!
Nada como ter cu horrendo – digo eu.

III
Depois teve Sears. Puseram Sears numa cela cheia de negros. Sears olhou em torno e se atracou no maior de todos. O cara caiu no chão. Sears deu um salto e se jogou, com os dois joelhos, em cima do peito do outro. A luta continuou. Sears fez picadinho do negro. O resto se limitou a assistir.
Sears simplesmente nem se abalava. Lá fora, no pátio, se agachava nos calcanhares, fazendo seu baseado, fumando bagana. Olhava pro crioulo. Sorria. Expelia a fumaça.
Sabe de onde é que eu sou? – perguntava pro preto.
O cara não respondia.
De Two Rivers, Mississippi.
Tragava, retinha a fumaça, expelia, sorria e rebolava as cadeiras.
Tu ia gostar daquilo lá.
Aí atirava fora a bagana, levantava, virava as costas e atravessava o pátio...

IV
Sears atiçava também os brancos. O cabelo dele era gozado. Parecia grudado no crânio, todo eriçado, cor de fogo e sujo. Tinha uma cicatriz de faca no rosto e olho redondo, mas bem redondo mesmo.
Ned Lincoln aparentava 19, mas tinha 22 anos – sempre de boca aberta, corcunda, com uma pelezinha branca encobrindo a ponta da vista esquerda. No primeiro dia do garoto no presídio, Sears deu com ele no pátio.
EI, CARA! – berrou.
O garoto se virou.
Sears apontou pra ele.
É TU MESMO! VOU ACABAR COM O TEU COURO, CARA! ACHO BOM FICAR PREPARADO, AMANHÃ EU TE PEGO! VOU ACABAR COM O TEU COURO, CARA!
Ned Lincoln ficou simplesmente parado, sem entender patavina. Sears começou a papear com outro preso, como se nada tivesse acontecido. Mas a gente sabia como ele era. Bastava fazer aquela declaração e pronto.
Um dos companheiros de cela do rapaz falou com ele naquela noite.
Acho bom você se preparar, meu filho, aquele cara não é de brincadeira. É melhor tu arranjar alguma coisa.
O quê, por exemplo?
Ué, você pode fazer uma faquinha tirando a ponta da torneira da pia e depois afiando no cimento do chão. Mas também posso te vender uma faca boa de verdade, por dois paus.
O rapaz comprou a faca, mas no dia seguinte não arredou pé da cela nem apareceu no pátio.
Aquele merdinha tá com medo – falou Sears.
Eu também estaria – retruquei.
Que nada, você aparecia – disse ele.
Aparecia coisa nenhuma.
Aparecia, sim – insistiu.
Tá, então eu aparecia.
Sears, no dia seguinte, acabou com a vida de Ned no chuveiro. Ninguém viu nada. Só o sangue vermelho escorrendo no ralo, misturado com água e sabão.

V
Tem cara que não entrega a rapadura. Nem na solitária. Joe Statz era um. Parecia que nunca mais ia sair de lá. Era o alvo favorito do diretor. Se conseguisse dobrar Joe, teria melhor controle sobre o resto dos presos.
Um dia foi até lá com dois guardas, mandou levantar a tampa da grade, se pôs de joelhos e gritou pra Joe lá embaixo:
JOE! JOE, COMO É? JÁ CHEGA? QUER SAIR DAÍ, JOE? NÃO QUER APROVEITAR ESTA CHANCE? OLHA QUE TÃO CEDO EU NÃO APAREÇO DE NOVO POR AQUI!
Não houve a menor resposta.
JOE! JOE! TÁ ME OUVINDO?
Tô, sim.
ENTÃO, QUAL É A RESPOSTA, JOE?
Joe pegou o balde, cheio de mijo e merda, e jogou na cara do diretor. Os guardas repuseram a tampa no lugar. Ao que consta, Joe continua ainda lá, mais morto do que vivo. Todo mundo ficou sabendo do que ele fez com o diretor. A gente de vez em quando se lembrava dele. Sobretudo quando as luzes apagavam.

VI
Quando eu sair, pensei, vou esperar um pouco e depois vou voltar pra cá. Vou ficar parado lá fora, sabendo exatamente o que está se passando aqui dentro. E vou olhar bem firme pra estas paredes e tomar a decisão de nunca mais ser preso.
Mas depois que saí, nunca mais voltei. Nem pra ficar olhando as paredes lá fora. É que nem mulher que não presta. Não adianta voltar. Não dá nem pra olhar pra ela. Mas falar, a gente pode. Fica mais fácil. E foi o que fiz hoje, um pouco. Boa sorte, companheiro, aí dentro ou aqui fora da prisão.

Charles Bukowski, in A mulher mais linda da cidade

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