No dia da Abolição da Escravatura, me
parece adequada uma reflexão sobre o livre-arbítrio, que pode ser
definido como a possibilidade de uma pessoa agir sem ser
completamente controlada por necessidades diversas ou pelas mãos
invisíveis do destino. Ser livre, essencialmente, é poder escolher
ao que se prender. Todo mundo quer ser livre; ou, pelo menos, ser
capaz de escolher na vida. Temos nossas profissões, nossa família,
nossos compromissos sociais.
Por outro lado, a maioria das pessoas
acredita ter liberdade de escolher o que fazer, das atividades mais
simples às mais complexas: devo pôr adoçante no meu café? Devo
colocar o dinheiro na poupança ou gastar tudo? Em quem voto nas
próximas eleições? Devo casar com a Carmen ou virar monge no
Tibete? A questão do livre-arbítrio é uma questão de agenciação,
de determinar quem toma as decisões que definem o curso das nossas
vidas.
Tradicionalmente, é discutida por
filósofos e teólogos. Ocasionalmente, por físicos interessados na
questão do determinismo. Mas, hoje, o contexto da conversa está
mudando. Agora, faz parte, também, da neurociência, em pesquisas
que têm investigado se temos mesmo liberdade de escolha. Muitos
consideram o livre-arbítrio uma mera ilusão. O militante ateísta
Sam Harris, por exemplo, escreveu um pequeno livro sobre o assunto em
2013, Free Will (Livre-arbítrio). No meu livro A ilha do
conhecimento, abordo também a questão, chegando a conclusões
opostas às de Harris.
A inclusão da neurociência na discussão
vem de uma série de experimentos que revelaram algo surpreendente:
nossos cérebros parecem decidir o que vamos fazer antes de termos
consciência disso. Experimentos pioneiros de Benjamin Libet nos anos
1980, e outros recentes usando ressonância magnética funcional e
implantes em neurônios que permitem monitorar a atividade cerebral,
indicam que a região motora do cérebro responsável por coordenar
movimentos (respondendo a uma pergunta do tipo “aperte o botão
vermelho quando vir uma bola na tela”) decide o que fazer antes de
a pessoa estar consciente disso.
A diferença de tempo entre a ação
neuronal e a conscientização dessa ação pode ser de segundos. Os
experimentos indicam que o cérebro parece decidir antes de a mente
se dar conta. Extrapolando, se isso for verdade, as escolhas que
achamos que estamos fazendo, expressão da nossa liberdade, estão
sendo feitas subconscientemente, sem nosso controle explícito. Será
que vivemos mesmo nesse estado ilusório, marionetes sob o controle
de forças desconhecidas, internas ao cérebro?
Felizmente, a situação não é tão
simples. Para começar, definir livre-arbítrio é complicado. Uma
definição operacional é que livre-arbítrio é poder escolher
mesmo quando estamos sujeitos a uma dose razoável de coerção.
Obviamente, nossas vidas dependem de detalhes da nossa história
pessoal além do nosso controle, como a nossa genética, o contexto
familiar e social da nossa infância e adolescência, e as
experiências “acidentais” que temos ao longo dos anos. Não
somos uma tábula rasa, independente da nossa formação.
Será, então, que a nossa genética e o
conjunto das nossas experiências pessoais são responsáveis pelas
nossas escolhas, como uma espécie de piloto automático, e temos
apenas a ilusão de estarmos escolhendo? “Quem”, portanto, é que
escolhe nas nossas cabeças? Imagine a seguinte situação: no
futuro, cientistas serão capazes de mapear e decodificar nossos
estados mentais com grande precisão. Poderão, com modelos
personalizados de nossos cérebros, prever como vamos escolher antes
de termos consciência da nossa escolha.
Se essa situação fosse, de fato,
possível – e vejo uma série de obstáculos conceituais e práticos
na sua realização –, o livre-arbítrio não existiria. A mente,
modelada como uma máquina, seguiria seus processos de forma
determinística, sem surpresas. Como um programa de computador. O que
chamamos de livre-arbítrio seria equivalente ao intervalo de tempo
entre o cérebro fazer a escolha subconscientemente e o momento em
que achamos que estamos escolhendo. Seria a nossa ignorância de que
esse intervalo de tempo existe.
Felizmente, esse tipo de abstração é
apenas uma fantasia; máquinas não podem medir nossos estados
mentais seguindo a cada instante a ação de 85 bilhões de neurônios
e seus trilhões de conexões mútuas. Não somos capazes ainda de
definir o que é um “estado mental” em nível neuronal, muito
menos de medir um. Talvez esse tipo de medida seja impossível. Em
ciência, existe um risco grande de trivializar uma questão complexa
de forma a transformá-la em algo mais maleável, que pode ser
analisado quantitativamente.
Em muitos casos, essa técnica
reducionista é muito útil. Em outros, pode criar a ilusão de que
sabemos mais do que de fato sabemos sobre um determinado assunto.
Isso certamente ocorre na extrapolação exagerada da aplicação da
neurociência ao livre-arbítrio. Os experimentos que têm sido
feitos são limitados a decisões simples, muito distintas das
escolhas complexas que fazemos nas nossas vidas, que envolvem
conflito, dúvida, reflexões sob várias perspectivas, conversas com
outras pessoas. Isso tudo leva tempo, até que, após muita
ponderação, chegamos a uma conclusão do passo a tomar.
Existe uma enorme diferença entre
apertar um botão num laboratório e escolher um companheiro para
dividir a vida, uma profissão, ou se vamos cometer um crime. Existe
um amplo espectro de complexidade referente às decisões que
tomamos, das mais simples às mais convolutas, e esse espectro é
refletido na questão do livre-arbítrio. Algumas delas, as mais
simples, ocorrem no nível subconsciente, e escolhas são feitas
antes de nos darmos conta. Já outras, não. A questão do
livre-arbítrio, dado que representa, da forma mais direta que
conhecemos, toda a complexidade da nossa existência enquanto seres
pensantes, cheios de paixões e dúvidas sobre como viver nossas
vidas, não pode ser trivializada a uma mera polarização entre
“existe e não existe”.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
Nenhum comentário:
Postar um comentário