terça-feira, 6 de abril de 2021

Afinal, somos livres?

No dia da Abolição da Escravatura, me parece adequada uma reflexão sobre o livre-arbítrio, que pode ser definido como a possibilidade de uma pessoa agir sem ser completamente controlada por necessidades diversas ou pelas mãos invisíveis do destino. Ser livre, essencialmente, é poder escolher ao que se prender. Todo mundo quer ser livre; ou, pelo menos, ser capaz de escolher na vida. Temos nossas profissões, nossa família, nossos compromissos sociais.
Por outro lado, a maioria das pessoas acredita ter liberdade de escolher o que fazer, das atividades mais simples às mais complexas: devo pôr adoçante no meu café? Devo colocar o dinheiro na poupança ou gastar tudo? Em quem voto nas próximas eleições? Devo casar com a Carmen ou virar monge no Tibete? A questão do livre-arbítrio é uma questão de agenciação, de determinar quem toma as decisões que definem o curso das nossas vidas.
Tradicionalmente, é discutida por filósofos e teólogos. Ocasionalmente, por físicos interessados na questão do determinismo. Mas, hoje, o contexto da conversa está mudando. Agora, faz parte, também, da neurociência, em pesquisas que têm investigado se temos mesmo liberdade de escolha. Muitos consideram o livre-arbítrio uma mera ilusão. O militante ateísta Sam Harris, por exemplo, escreveu um pequeno livro sobre o assunto em 2013, Free Will (Livre-arbítrio). No meu livro A ilha do conhecimento, abordo também a questão, chegando a conclusões opostas às de Harris.
A inclusão da neurociência na discussão vem de uma série de experimentos que revelaram algo surpreendente: nossos cérebros parecem decidir o que vamos fazer antes de termos consciência disso. Experimentos pioneiros de Benjamin Libet nos anos 1980, e outros recentes usando ressonância magnética funcional e implantes em neurônios que permitem monitorar a atividade cerebral, indicam que a região motora do cérebro responsável por coordenar movimentos (respondendo a uma pergunta do tipo “aperte o botão vermelho quando vir uma bola na tela”) decide o que fazer antes de a pessoa estar consciente disso.
A diferença de tempo entre a ação neuronal e a conscientização dessa ação pode ser de segundos. Os experimentos indicam que o cérebro parece decidir antes de a mente se dar conta. Extrapolando, se isso for verdade, as escolhas que achamos que estamos fazendo, expressão da nossa liberdade, estão sendo feitas subconscientemente, sem nosso controle explícito. Será que vivemos mesmo nesse estado ilusório, marionetes sob o controle de forças desconhecidas, internas ao cérebro?
Felizmente, a situação não é tão simples. Para começar, definir livre-arbítrio é complicado. Uma definição operacional é que livre-arbítrio é poder escolher mesmo quando estamos sujeitos a uma dose razoável de coerção. Obviamente, nossas vidas dependem de detalhes da nossa história pessoal além do nosso controle, como a nossa genética, o contexto familiar e social da nossa infância e adolescência, e as experiências “acidentais” que temos ao longo dos anos. Não somos uma tábula rasa, independente da nossa formação.
Será, então, que a nossa genética e o conjunto das nossas experiências pessoais são responsáveis pelas nossas escolhas, como uma espécie de piloto automático, e temos apenas a ilusão de estarmos escolhendo? “Quem”, portanto, é que escolhe nas nossas cabeças? Imagine a seguinte situação: no futuro, cientistas serão capazes de mapear e decodificar nossos estados mentais com grande precisão. Poderão, com modelos personalizados de nossos cérebros, prever como vamos escolher antes de termos consciência da nossa escolha.
Se essa situação fosse, de fato, possível – e vejo uma série de obstáculos conceituais e práticos na sua realização –, o livre-arbítrio não existiria. A mente, modelada como uma máquina, seguiria seus processos de forma determinística, sem surpresas. Como um programa de computador. O que chamamos de livre-arbítrio seria equivalente ao intervalo de tempo entre o cérebro fazer a escolha subconscientemente e o momento em que achamos que estamos escolhendo. Seria a nossa ignorância de que esse intervalo de tempo existe.
Felizmente, esse tipo de abstração é apenas uma fantasia; máquinas não podem medir nossos estados mentais seguindo a cada instante a ação de 85 bilhões de neurônios e seus trilhões de conexões mútuas. Não somos capazes ainda de definir o que é um “estado mental” em nível neuronal, muito menos de medir um. Talvez esse tipo de medida seja impossível. Em ciência, existe um risco grande de trivializar uma questão complexa de forma a transformá-la em algo mais maleável, que pode ser analisado quantitativamente.
Em muitos casos, essa técnica reducionista é muito útil. Em outros, pode criar a ilusão de que sabemos mais do que de fato sabemos sobre um determinado assunto. Isso certamente ocorre na extrapolação exagerada da aplicação da neurociência ao livre-arbítrio. Os experimentos que têm sido feitos são limitados a decisões simples, muito distintas das escolhas complexas que fazemos nas nossas vidas, que envolvem conflito, dúvida, reflexões sob várias perspectivas, conversas com outras pessoas. Isso tudo leva tempo, até que, após muita ponderação, chegamos a uma conclusão do passo a tomar.
Existe uma enorme diferença entre apertar um botão num laboratório e escolher um companheiro para dividir a vida, uma profissão, ou se vamos cometer um crime. Existe um amplo espectro de complexidade referente às decisões que tomamos, das mais simples às mais convolutas, e esse espectro é refletido na questão do livre-arbítrio. Algumas delas, as mais simples, ocorrem no nível subconsciente, e escolhas são feitas antes de nos darmos conta. Já outras, não. A questão do livre-arbítrio, dado que representa, da forma mais direta que conhecemos, toda a complexidade da nossa existência enquanto seres pensantes, cheios de paixões e dúvidas sobre como viver nossas vidas, não pode ser trivializada a uma mera polarização entre “existe e não existe”.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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