Pois não é que ela fora uma das colegas
escolhidas! A classe do ginásio misturava mocinhas e rapazes. Quando
depois lembrava-se deles, era como num instantâneo fotográfico
batido e depois imediatamente imobilizado. E esse instantâneo,
apesar de nele todos estarem rígidos e bem-comportados, parecia-lhe
a súbita imobilidade de uma briga física, onde se enovelavam perna
de menino com braço de mocinha, formando um vívido monstro
masculino e feminino que ela digeria em devaneios durante as aulas da
guerra do Paraguai. Guerra da qual possivelmente nunca se refizera,
pois quando pensava no ginásio vinham-lhe de imediato trombetas do
Paraguai.
Pois não é que ela fora uma das colegas
escolhidas pelo escritor anônimo? E onde é que este escolhera
escrever? Nas pranchetas da sala de desenho. Nessa escola, onde a
desorganização imperava, havia entretanto o privilégio de sala
especial para desenho e sala especial para química. Na de desenho
geométrico cada um dos alunos tinha diante da cadeira uma larga
prancheta móvel.
Houve evidentemente a primeira vez.
Ao sentar-se em frente à prancheta,
descobriu-a, logo ao primeiro olhar, coberta dos mais miúdos
hieróglifos: desenhos e palavras, tudo em tipo apertado e nítido,
tudo com ar organizado. Antes mesmo de entender, soubera com um
choque: eram insultos de amor. Antes mesmo de entender os desenhos e
as minúcias simbólicas, já empalidecera. Empalidecera de
curiosidade, de surpresa? Quanto aos escritos, ela quase não
compreendia, tanto a terminologia era técnica e especializada, quase
técnica de outro país, compilação laboriosa de um espírito
analítico.
Depois, sem intervalo de espanto, só com
intervalo de dois dias, houve a segunda vez. A terceira. A quarta.
A mais velha das meninas foi quem abriu o
jogo e revelou a todas que tinha uma prancheta especial. Então
a segunda atingida brandiu a sua prancheta. A terceira menina não se
lembra mais do que disse e como disse. Só se sabia que alguém, ou
uma máfia de alguns, as visava. Duas visadas eram morenas; a
terceira era loura, com o desalento de ser loura, o que lhe parecia
significar, como material de capacidades, ser nula nessas
capacidades. Loura, pensava, era uma coisa infelizmente para o
divino, tanto que as fadas e os anjos eram louros. Que lhe reservava
o destino senão suas indecisões? Sua alma bem lhe parecia morena,
mas quem descobriria sob aquela aparência o dourado violento? No
entanto um menino ou uma máfia de meninos...
Teve vergonha de, já no terceiro ano de
ginásio, não entender a tecnocracia de uma vida que – ei-la de
súbito mecanizada na prancheta. Adivinhar ela adivinhava, mas era
só, e isso não bastava. Se ao menos fosse angelical. Mas só o que
lhe faltava mesmo era essa coisa lenta e progressiva, a cultura
especializada em sexo.
Mentiu para as outras dizendo que
entendera tudo. Inútil dizer a verdade. Ninguém acreditaria que
ela, já tão construída e alta, não entendesse. Não entendia,
embora suprisse a ignorância com sólidos sonhos confusos que eram o
seu esteio secreto.
A indignação das três meninas foi
ardente. “Como é que tinham tido coragem!” Era só isso que
repetiam, sem nenhum outro argumento. A loura, quem sabe se por ser
mais sonsa, não sugeriu medida prática nenhuma, enquanto as outras
duas, embora sem plano formado, se preparavam para agir. As três
pareciam três escoteiras ou bandeirantes que tivessem sido
interrompidas no Caminho do Bem, e agora se tivessem transformado em
três detetives tontas: qual dos meninos ou rapazes teria sido o
acusado? Perscrutavam cada um deles, mas esses olhares insistentes
não eram provocantes porque elas estavam imbuídas do direito de...
de que mesmo? Pois não é que não se lembravam mais de que direito
estavam imbuídas?
Mas a cara dos colegas era inescrutável.
E pelo contrário: assim examinados, nunca se viu tanta cara inocente
chupando bala ou fumando escondido.
A aula de desenho geométrico era duas
vezes por semana. Como tardava o dia de entrar na sala e poder olhar
a prancheta onde os caracteres anteriores sempre tinham sido apagados
para dar lugar aos novos, que não passavam de variantes dos
primeiros. Tratava-se de um verdadeiro jornal impresso, editorial que
dava às três mocinhas as mais terríveis e emocionantes notícias
sobre o que as três eram. Eram? Liam avidamente sem escândalo – o
escândalo só vinha depois de garantida a leitura toda. Pena mesmo é
que de fato nem tudo entendiam, isso humilhava: mas o sentido geral,
sim. O sentido geral lhes dava de chofre o mundo nas mãos trêmulas.
Mas o bom não dura. As duas morenas,
levadas pela necessidade de dignificação ou por uma tentativa de
publicidade maior, tomaram a medida prática, à qual a terceira se
juntou muda: foram as três à Secretaria dar queixa. As três graças
orgulhosamente desmoralizadas, representantes de um mundo feminil tão
amado e vilipendiado. Das três, só duas falaram. A mais velha, mais
que namorado, já prometia até noivar tão cedo – “bem que
merecia a prancheta” – meditava a loura – bem que já merecia
os horrores que circundam o amor, quase noiva que era.
Pois bem. Bem feito, quem mandou. Não se
sabe o que a Secretaria fez. Mas as pranchetas – nunca mais.
No entanto, embora a coisa tivesse sido
abafada pela Secretaria, vieram a saber quem era o escritor das
pranchetas. Ele!? A quem seus pais haviam dado um nome grego. Decerto
espartano: pois para ele a mocinha que espartanamente sobrevivesse à
severidade e crueza de tal amor, esta seria a única a merecer
vivê-lo, ao amor. Nenhuma das três atenienses sobrevivera à prova.
As pranchetas limpas. Mas nunca, nunca
mais? Pois é. O de nome grego tinha uma cara que, por Deus, era
bonita. Primeiro, tratava-se de um repetente, bem mais velho do que
os outros, e sabia das coisas: ser repetente dava-lhe um ar de
indiferença e insolência no modo de andar. Via-se que desprezava
todos nós: parecia um homem entre tolos e tolas. Esse não chupava
bala. Tinha rosto escanhoado, de olhos finos à flor da pele, olhar
curto, cabelos cortados à militar. Como não adorá-lo com horror? A
menina loura não o olhava sequer. Para quê? se já o sabia de cor e
com náusea. O espartano, depois de proibido pela Secretaria, tomou
um desdenhoso ar de eLivros: fizera o que pudera, mas se nós não
passávamos do que éramos, pior para nós, ele lavava as mãos.
Grande futuro o esperava, ao general.
E foi assim que daí em diante nas
pranchetas só esquadros e compassos, só desenho geométrico, nunca
mais desenho de finesse. Também quem mandou reclamar.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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