segunda-feira, 5 de abril de 2021

A perseguida feliz

Pois não é que ela fora uma das colegas escolhidas! A classe do ginásio misturava mocinhas e rapazes. Quando depois lembrava-se deles, era como num instantâneo fotográfico batido e depois imediatamente imobilizado. E esse instantâneo, apesar de nele todos estarem rígidos e bem-comportados, parecia-lhe a súbita imobilidade de uma briga física, onde se enovelavam perna de menino com braço de mocinha, formando um vívido monstro masculino e feminino que ela digeria em devaneios durante as aulas da guerra do Paraguai. Guerra da qual possivelmente nunca se refizera, pois quando pensava no ginásio vinham-lhe de imediato trombetas do Paraguai.
Pois não é que ela fora uma das colegas escolhidas pelo escritor anônimo? E onde é que este escolhera escrever? Nas pranchetas da sala de desenho. Nessa escola, onde a desorganização imperava, havia entretanto o privilégio de sala especial para desenho e sala especial para química. Na de desenho geométrico cada um dos alunos tinha diante da cadeira uma larga prancheta móvel.
Houve evidentemente a primeira vez.
Ao sentar-se em frente à prancheta, descobriu-a, logo ao primeiro olhar, coberta dos mais miúdos hieróglifos: desenhos e palavras, tudo em tipo apertado e nítido, tudo com ar organizado. Antes mesmo de entender, soubera com um choque: eram insultos de amor. Antes mesmo de entender os desenhos e as minúcias simbólicas, já empalidecera. Empalidecera de curiosidade, de surpresa? Quanto aos escritos, ela quase não compreendia, tanto a terminologia era técnica e especializada, quase técnica de outro país, compilação laboriosa de um espírito analítico.
Depois, sem intervalo de espanto, só com intervalo de dois dias, houve a segunda vez. A terceira. A quarta.
A mais velha das meninas foi quem abriu o jogo e revelou a todas que tinha uma prancheta especial. Então a segunda atingida brandiu a sua prancheta. A terceira menina não se lembra mais do que disse e como disse. Só se sabia que alguém, ou uma máfia de alguns, as visava. Duas visadas eram morenas; a terceira era loura, com o desalento de ser loura, o que lhe parecia significar, como material de capacidades, ser nula nessas capacidades. Loura, pensava, era uma coisa infelizmente para o divino, tanto que as fadas e os anjos eram louros. Que lhe reservava o destino senão suas indecisões? Sua alma bem lhe parecia morena, mas quem descobriria sob aquela aparência o dourado violento? No entanto um menino ou uma máfia de meninos...
Teve vergonha de, já no terceiro ano de ginásio, não entender a tecnocracia de uma vida que – ei-la de súbito mecanizada na prancheta. Adivinhar ela adivinhava, mas era só, e isso não bastava. Se ao menos fosse angelical. Mas só o que lhe faltava mesmo era essa coisa lenta e progressiva, a cultura especializada em sexo.
Mentiu para as outras dizendo que entendera tudo. Inútil dizer a verdade. Ninguém acreditaria que ela, já tão construída e alta, não entendesse. Não entendia, embora suprisse a ignorância com sólidos sonhos confusos que eram o seu esteio secreto.
A indignação das três meninas foi ardente. “Como é que tinham tido coragem!” Era só isso que repetiam, sem nenhum outro argumento. A loura, quem sabe se por ser mais sonsa, não sugeriu medida prática nenhuma, enquanto as outras duas, embora sem plano formado, se preparavam para agir. As três pareciam três escoteiras ou bandeirantes que tivessem sido interrompidas no Caminho do Bem, e agora se tivessem transformado em três detetives tontas: qual dos meninos ou rapazes teria sido o acusado? Perscrutavam cada um deles, mas esses olhares insistentes não eram provocantes porque elas estavam imbuídas do direito de... de que mesmo? Pois não é que não se lembravam mais de que direito estavam imbuídas?
Mas a cara dos colegas era inescrutável. E pelo contrário: assim examinados, nunca se viu tanta cara inocente chupando bala ou fumando escondido.
A aula de desenho geométrico era duas vezes por semana. Como tardava o dia de entrar na sala e poder olhar a prancheta onde os caracteres anteriores sempre tinham sido apagados para dar lugar aos novos, que não passavam de variantes dos primeiros. Tratava-se de um verdadeiro jornal impresso, editorial que dava às três mocinhas as mais terríveis e emocionantes notícias sobre o que as três eram. Eram? Liam avidamente sem escândalo – o escândalo só vinha depois de garantida a leitura toda. Pena mesmo é que de fato nem tudo entendiam, isso humilhava: mas o sentido geral, sim. O sentido geral lhes dava de chofre o mundo nas mãos trêmulas.
Mas o bom não dura. As duas morenas, levadas pela necessidade de dignificação ou por uma tentativa de publicidade maior, tomaram a medida prática, à qual a terceira se juntou muda: foram as três à Secretaria dar queixa. As três graças orgulhosamente desmoralizadas, representantes de um mundo feminil tão amado e vilipendiado. Das três, só duas falaram. A mais velha, mais que namorado, já prometia até noivar tão cedo – “bem que merecia a prancheta” – meditava a loura – bem que já merecia os horrores que circundam o amor, quase noiva que era.
Pois bem. Bem feito, quem mandou. Não se sabe o que a Secretaria fez. Mas as pranchetas – nunca mais.
No entanto, embora a coisa tivesse sido abafada pela Secretaria, vieram a saber quem era o escritor das pranchetas. Ele!? A quem seus pais haviam dado um nome grego. Decerto espartano: pois para ele a mocinha que espartanamente sobrevivesse à severidade e crueza de tal amor, esta seria a única a merecer vivê-lo, ao amor. Nenhuma das três atenienses sobrevivera à prova.
As pranchetas limpas. Mas nunca, nunca mais? Pois é. O de nome grego tinha uma cara que, por Deus, era bonita. Primeiro, tratava-se de um repetente, bem mais velho do que os outros, e sabia das coisas: ser repetente dava-lhe um ar de indiferença e insolência no modo de andar. Via-se que desprezava todos nós: parecia um homem entre tolos e tolas. Esse não chupava bala. Tinha rosto escanhoado, de olhos finos à flor da pele, olhar curto, cabelos cortados à militar. Como não adorá-lo com horror? A menina loura não o olhava sequer. Para quê? se já o sabia de cor e com náusea. O espartano, depois de proibido pela Secretaria, tomou um desdenhoso ar de eLivros: fizera o que pudera, mas se nós não passávamos do que éramos, pior para nós, ele lavava as mãos. Grande futuro o esperava, ao general.
E foi assim que daí em diante nas pranchetas só esquadros e compassos, só desenho geométrico, nunca mais desenho de finesse. Também quem mandou reclamar.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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