terça-feira, 13 de abril de 2021

A boia de salvamento

Rumando agora para sudeste, de acordo com o aço aplainado de Ahab, e com sua rota determinada apenas pela barquilha e pela linha de Ahab; o Pequod seguiu seu caminho em direção ao Equador. Realizando uma travessia tão longa por mares tão pouco frequentados, sem anunciar navios e, antes, impelido por imutáveis alísios sobre ondas monotonamente gentis; tudo isso se parecia com a estranha calmaria que serve de prelúdio para uma cena tumultuosa e desesperada.
Por fim, quando o navio se aproximava da periferia, digamos assim, da região de pesca Equatorial e, nas profundas trevas que precedem a aurora, navegava nas imediações de um grupo de ilhotas rochosas; os homens da vigília – então encabeçados por Flask – foram surpreendidos por um grito tão plangentemente selvagem e sobrenatural – como os gemidos semi-articulados dos fantasmas dos Inocentes assassinados por Herodes – que todos a um só tempo despertaram de seus devaneios e em instantes se puseram de pé, sentados ou reclinados, todos pasmos escutando, como o escravo Romano da escultura, tanto quanto aquele grito selvagem durou. A parcela Cristã ou civilizada da tripulação disse que eram sereias, e estremeceu; mas os arpoadores pagãos permaneceram impassíveis. No entanto, o homem grisalho de Man – o marinheiro mais velho de todos – afirmava que aqueles arrebatadores sons selvagens que ouvíramos eram vozes de homens recém-lançados ao mar.
Embaixo, na rede, Ahab não soube disso até que chegasse o amanhecer cinzento, quando veio ao convés; o caso lhe foi então transmitido por Flask, não sem o acompanhamento de insinuações de sentido sombrio. Ahab lançou um riso amarelo e assim deu por explicado o prodígio.
Aquelas ilhas rochosas por onde o navio passara eram a pousada de um grande número de focas, e alguns filhotes que tinham perdido a mãe, ou mesmo mães que tinham perdido suas crias, deviam ter emergido perto do navio e seguiram em sua companhia, chorando e soluçando com uma espécie de gemido humano. Mas isso só abalou ainda mais alguns dos homens, pois a maioria dos marinheiros compartilha de um sentimento deveras supersticioso em relação às focas, originado não apenas por suas vozes características quando em apuros, mas também devido ao olhar humano de suas cabeças redondas e rostos quase inteligentes, vistas a emergir furtivamente da água ao lado do navio. No mar, em certas ocasiões, focas foram mais de uma vez confundidas com homens. Mas os pressentimentos da tripulação estavam destinados a receber naquela manhã a mais plausível confirmação na sorte de um de seus membros. Ao nascer do sol, esse homem saiu de sua rede para o topo do mastro da proa; e, fosse porque ele ainda não estivesse bem acordado do sono (pois os marinheiros às vezes sobem aos mastros em um estado de transição), e que assim fosse, pois nada se soube; todavia, fosse qual fosse o motivo, ele não estava há muito tempo em seu poleiro, quando se ouviu um grito – um grito e uma agitação – e, olhando para cima, viram um fantasma cadente no ar; e, olhando para baixo, uma pequena confusão de bolhas brancas em meio ao mar azul. A boia de salvamento – um barril estreito e comprido – foi jogada da popa, onde sempre esteve pendurada em obediência a uma mola engenhosa; contudo, sem marinheiros que se prontificassem a tratá-la, e tendo o sol durante muito tempo castigado o barril, este encolhera de tal modo que foi se enchendo aos poucos e a madeira ressequida absorveu água por todos os poros; e o rígido barril guarnecido de tachas foi com o marinheiro ao fundo, como que para servir-lhe de travesseiro, se bem que, de fato, um bem duro. E assim, foi o primeiro homem do Pequod a subir no mastro para procurar a Baleia Branca, nas águas particulares da Baleia Branca; tal homem foi engolido pelas profundezas. Mas poucos, talvez, pensaram desse modo naquela ocasião. Contudo, não ficaram aflitos com o acontecimento, pelo menos não como presságio; pois não o consideraram um anúncio da desgraça futura, mas a consumação de uma fatalidade já antecipada. Declararam conhecer agora a razão dos gritos selvagens ouvidos na noite anterior. No entanto, mais uma vez, o velho de Man discordou.
A boia de salvamento perdida tinha de ser substituída; Starbuck foi destacado para cuidar do assunto; mas, como não se conseguia encontrar nenhum barril suficientemente leve, e como, na ânsia febril do que parecia ser o desenlace próximo da viagem, todos se impacientavam com qualquer trabalho que não se relacionasse com esse objetivo final, qualquer que este fosse; por isso tudo, iriam deixar a popa do navio sem salva-vidas, quando Queequeg, com sinais e insinuações estranhas, sugeriu qualquer coisa a respeito do seu caixão.
Um caixão como bóia de salvamento!”, exclamou Starbuck, sobressaltado.
Muito estranho, na minha opinião”, disse Stubb.
Vai ficar muito bom”, disse Flask, “o carpinteiro aqui pode arrumá-lo com facilidade”.
Trazei-o; já que não há outra coisa”, disse Starbuck depois de uma pausa melancólica. “Prepara-o, carpinteiro; não olhes assim para mim – o caixão, eu disse. Ouviste? Prepara-o!”
E devo pregar a tampa, senhor?”, gesticulando como se tivesse um martelo na mão.
Sim.”
E devo calafetar as fendas, senhor?”, gesticulando como se tivesse um calafetador.
Sim.”
E devo cobrir as mesmas com piche, senhor?”, gesticulando como se tivesse um balde de piche.
Basta! Que te leva a isso? Faze do caixão uma boia de salvamento e nada mais. Senhor Stubb, senhor Flask – vinde comigo.”
Vai-se embora zangado. Tudo junto, ele pode suportar; nas partes, empaca. Não gosto disso. Faço uma perna para o capitão Ahab, e ele a usa como um cavalheiro; mas faço uma chapeleira para Queequeg, e ele não quer pôr a cabeça dentro dela. Todo o trabalho que tive com o caixão foi inútil? E agora dão ordens de fazer dele uma boia de salvamento. É como virar um casaco velho; virar a carne do outro lado. Não gosto deste trabalho de remendos – não gosto nada disso; é indigno; não é para mim. Que os moleques funileiros façam aquelas emendas porcas; nós somos melhores do que eles. Gosto de fazer apenas trabalhos limpos, virgens, bem pensados, matemáticos, uma coisa que corretamente começa no começo, que a metade está no meio e que acaba na conclusão; não o trabalho de um remendão, que no meio já está acabando e começa pelo fim. É um hábito de velhas senhoras pedir trabalhos de remendão. Senhor! Que afeição sentem as velhas senhoras por esses funileiros! Conheço uma senhora de sessenta e cinco anos que fugiu certa vez com um jovem funileiro careca. Esse é o motivo pelo qual eu nunca trabalhei para as velhas viúvas solitárias em terra, quando tinha a minha oficina em Vineyard; poderia ter passado pelas suas solitárias cabeças de velhas a ideia de fugir comigo. Mas, puxa vida! No entanto, não há no mar outra crista que a crista da onda. Deixa-me ver. Pregar a tampa; calafetar as fendas; cobrir com piche; reforçar direito e pendurar com a mola na popa do navio. Alguma vez já fizeram essas coisas com um caixão? Há velhos carpinteiros supersticiosos que prefeririam ser amarrados ao cordame a fazer um serviço desses. Mas eu sou feito do abeto nodoso de Aroostook; não arredo pé. Com um caixão na garupa! Navegar com uma padiola de cemitério! Mas não importa. Nós, que trabalhamos com a madeira, fazemos estrados de camas nupciais e mesas de jogos, assim como caixões e ataúdes. Trabalhamos por mês, por serviço, ou por proveito; não nos cabe perguntar o porquê ou o para quê de nosso trabalho, a menos que seja algo parecido com remendão, e aí tentamos se possível escapar. Humpf! Farei o serviço agora, com calma. Vou colocar – vejamos – quantos são na tripulação, contando todos? Esqueci. De qualquer modo, vou colocar trinta cordas de salvamento separadas, cada uma com três pés de comprimento, penduradas em volta do caixão. Então, se o casco for a pique, haverá trinta sujeitos vivos lutando por um caixão, um espetáculo que não se vê com muita frequência debaixo do sol! Vamos, martelo, calafetador, balde de piche e espicha! Vamos lá!”

Herman Melville, in Moby Dick

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