Naquele tempo, minha mãe já havia
assumido em definitivo o ofício de parteira. Meu pai, que era o
parteiro até então, transferiu a responsabilidade para Salu. A
formalidade do homem simples e cavalheiro se refletia na vergonha que
sentia diante das mulheres de seus compadres e filhos de santo. Tudo
isso o fizera designar minha mãe para a lida com os nascimentos.
Enquanto Donana vivia e tinha saúde, assumiu a missão com toda
deferência que o nascimento de um novo ser poderia ter. Minha avó
dizia que não fazia parto, quem o fazia era a mãe, apenas ajudava.
Ajudava desde as moças, que se uniam muito cedo ou engravidavam de
viajantes e trabalhadores, até as vacas, éguas e cadelas. Tinha
mãos pequenas, capazes de virar a criança no ventre de um lado a
outro. Era no que acreditavam, caso não houvesse o movimento certo
para o nascimento, ou a criança não estivesse bem encaixada.
Durante esse período em que Donana
cuidava dos partos em Água Negra e propriedades vizinhas, minha mãe
foi sua ajudante. Observava os movimentos do corpo, rezas e
interditos; o que poderia e não poderia ser comido, bebido, feito.
Aprendia sobre o tempo certo para o banho da criança e da mãe, ou a
tesoura nova que ficava guardada esperando o nascimento. Atentava
para as provações do resguardo. Quando minha avó já não podia
ajudar mais, Salu passou a acompanhar meu pai que, como curador,
prestava a assistência de que as mulheres necessitavam. Nunca vi meu
pai nessas missões, mas minha mãe relatava para as comadres todo o
constrangimento que ele transparecia ao tocar no corpo de uma mulher
prestes a dar à luz. Por vezes as colocava no chão, enquanto
estavam amparadas por uma mulher da família ou vizinha, e as tocava
com o pé direito na barriga, para capturar mensagens dos movimentos
da criança, se havia ou não chegado a hora do parto.
Mas não era meu pai quem estava ali,
constrangido, envergonhado de estar com uma mulher em uma delicada
posição, com dores lancinantes, se contorcendo em gestos bruscos
que faziam despontar um seio desnudo ou sua genitália. Muitas vezes
a roupa mal cobria o corpo. Era um encantado, o Velho Nagô, antigo
conhecido do povo de Água Negra. Era o senhor do corpo e do espírito
de meu pai, das bênçãos e curas que chegavam aos necessitados e à
terra. Foi também o Velho, segundo meu pai, que designou Salustiana
Nicolau como parteira. Eram as forças do seu encanto que guiavam as
mãos e os saberes de comadre Salu na condução do parto. Pelo menos
era isso que dizia quando era indagado por alguém que não tinha
vivência em nossas paragens.
Fusco latia de forma incessante no
terreiro de casa. Belonísia conduziu o mensageiro pela porta e o fez
aguardar por minha mãe na sala. Uma das gêmeas de Saturnino estava
em trabalho de parto, se contorcia de dor na casa de barro em que
vivia, nas margens do rio Santo Antônio. No afã da notícia, não
soube dizer qual das filhas estava prestes a parir, mas pelas contas
de minha mãe deveria ser Crispiniana, a que havia se hospedado em
nossa casa com Crispina – que eu recordava com a situação extrema
de desencanto desencadeada, em parte, pela própria irmã.
Era coisa urgente, pelo rosto desesperado
do mensageiro. O pai estava em tempo de amarrá-la, por não
conseguir deixar coisa alguma em pé dentro de casa. Parecia estar
abrigando algum espírito perverso. Seus olhos ardiam feito brasas e
os gritos podiam ser escutados a algumas léguas de distância. Os
sons que percorriam o vale eram ecos assustadores, gritos de fúria,
que nos chegavam com o vento morno da tarde.
A casa ficou sob a responsabilidade de
Belonísia, e, diante da urgência, minha mãe me levou como
companhia, e seguiu o caminho um tanto aflita com as notícias
trazidas sobre o estado da gêmea. Ainda recordo como sua tensão se
avolumou ao sermos alcançadas por um dos bramidos, atirado em nossos
rostos como um bafo quente e colérico. “Misericórdia!”, teria
clamado ao Velho Nagô em sua prece não tão íntima, quebrando a
concentração que se infligia naqueles momentos em que precisava dar
sentido à expressão de outros seres para sua tarefa, assim como meu
pai fazia.
Naquele dia, os objetos que compunham a
paisagem daquela casa se comportavam como se estivessem vivos. Havia
uma árvore derrubada e retalhada em achas, certamente para abastecer
o fogão da casa de Saturnino e de todos os outros filhos, que
germinaram suas moradas ao redor. Havia um pequeno monte de jacas
moles que atraía grande quantidade de moscas e até abelhas. Havia
restos de forquilha e barro, outro tanto de terra acondicionado em
poucas latas. Certamente mais uma casa para a colmeia que a família
de Saturnino estava formando em Água Negra. Havia objetos lançados
pela porta: pente, frasco vazio de perfume, canecas e pratos de
esmalte, uma grande bacia amassada, mas que preservava certo brilho
diante da sua presumível antiguidade.
Minha mãe não tinha a mesma força que
a sogra diante desses eventos. Era como se Salu fosse mais humana e
falível que Donana. Minha avó transitava como uma entidade viva,
quase sobre-humana. Mesmo assim, Salu adentrou a casa com a altivez e
a autoridade que emanava da sua posição de mulher do curador Zeca
Chapéu Grande. De imediato, pude entrever o transtorno na fisionomia
da mulher em trabalho de parto. Incontrolável, avançou para agredir
Salu. Naquele momento, pude antever a beleza do que nos aguardava.
Cresci em meio às crenças de meu pai, de minha avó, e mais
recentemente de minha mãe. Os objetos, os xaropes de raízes, as
rezas, as brincadeiras, os encantados que domavam seus corpos, tudo
era parte da paisagem do mundo em que crescíamos. Mas a
transformação da mulher hesitante, que vinha na estrada em preces
por misericórdia e bem-aventurança, na força que se antepunha à
perturbação de uma grávida transtornada pelas dores, e talvez por
espíritos que desconhecíamos, era um milagre de energia. De tão
habituada à assertividade de Zeca, eu nunca havia sido capaz de
contemplar com a atenção que agora tinha. Diante de meus olhos, vi
minha mãe erguer sua mão direita e segurar com força o braço que
avançava rompendo o ar para lhe atingir. Bastou esse gesto para que
cessassem os urros e a cólera da mulher, e um fluxo de serenidade se
instaurasse entre os presentes.
Era Crispiniana quem estava em trabalho
de parto. Que, talvez afligida pelo abandono e pela solidão de amar
o homem de sua irmã, havia se deixado levar por uma torrente de
mágoas tão semelhantes às mágoas da outra que tempos atrás a
fizeram chegar amarrada à nossa casa. Minha mãe a levou para a
cama, com a ajuda de tia Hermelina, que nos encontrou no meio do
caminho, e fez com que repousasse. Dali a algum tempo nasceria um
menino, e seu vagido anunciando a vida preencheria o espaço onde
poucas horas antes havíamos escutado os urros de dor e delírio de
sua mãe. Exausta, Crispiniana adormeceu com a criança em seu peito.
Já não chorava de agonia por seu futuro nem pelo dele. Assim como a
mão do Velho Nagô pacificou seu corpo em cólera, seu filho
confortou naqueles dias seu coração dos maus tratos de que tínhamos
conhecimento.
O perdão brotou no rosto de Saturnino
quando sorriu, meio bobo, ao encontrar o rosto do menino.
Crispina observava tudo de sua janela, do
outro lado do terreiro, sem saber expressar a remissão que seu pai e
mesmo sua irmã esperavam. Isidoro, talvez envergonhado, tinha
preferido seguir para a roça, incapaz de encarar as gêmeas diante
do mal que julgava ter feito.
Passaram-se vinte e oito luas quando
minha mãe foi chamada de novo para ajudar no parto, dessa vez de
Crispina. Seria de novo dia de lua cheia. Quem a acompanhou foi
Belonísia, mas, pouco tempo depois de terem partido, minha irmã
voltou sozinha e aflita para levar meu pai. Algo adverso acontecia a
Crispina e minha mãe achou por bem buscar Zeca. Com o pé direito na
barriga da mulher, meu pai viu que não havia movimento da criança.
“É um anjo”, minha mãe disse. A
sentença que ninguém queria ouvir naquelas horas.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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