Uma voz assim tão cheia e sonora espanta
todos os outros ruídos da noite. Lá do forte velho que ela vem e se
espalha sobre o mar e a cidade. Não é bem o que ela diz que bole
com o coração dos homens. É a melo dia doce e melancólica que faz
as conversas serem em surdina, baixinho. No entanto, a letra desta
velha canção diz que “desgraçada é a mulher que vai com um
homem do mar. Sorte boa ela não terá, infeliz destino é o seu.
Seus olhos não pararão jamais de chorar, e cedo murcharão de tanto
se alongarem para o mar, esperando a chegada de uma vela”. A voz do
negro cobre a noite.
O velho Francisco conhece essa música e
esse mundão de estrelas que se refle te no mar. Senão, de que
valeriam quarenta anos passados em cima de um saveiro. E não é só
as estrelas que ele conhece. Conhece também todas as coroas, as
curvas, os canais da baía e do rio Paraguaçu, todos os portos
daquelas bandas, todas as músicas que por ali são cantadas. Os
moradores daquele pedaço de rio e do cais são seus amigos, e há
até quem diga que uma vez, na noite, em que salvou toda a tripulação
de um barco de pesca, viu o vulto de Iemanjá, que se mostrou a ele
como prêmio. Quando se fala nisso (e todo jovem mestre de saveiro
pergunta ao velho Francisco se é verdade), ele somente sorri e diz:
— Se fala muita coisa neste mundo, menino.. Assim, ninguém sabe se
é verdade ou não. Bem que poderia ser. Iemanjá tem caprichos e se
havia alguém que merecesse vê-la e amá-la era o velho Francisco,
que estava na beira do cais desde ninguém sabe quando. Ainda melhor,
porém, que todas as coroas, os viajantes, os canais, ele conhece as
histórias daquelas águas, daquelas festas de Janaína, daqueles
naufrágios e temporais. Haverá história que o velho Francisco não
conheça?
Quando a noite chega, ele deixa a sua
casa pequena e vem para a beira do cais. Atravessa a lama que cobre o
cimento, entra pela água, e pula para a proa de um saveiro. Então
pedem que ele conte histórias, conte casos. Não há quem saiba de
casos como ele.
Hoje vive de remendar vela e do que lhe
dá Guma, seu sobrinho. Tempo houve, porém, em que teve três
saveiros que os ventos da tempestade levaram. Não puderam foi com o
velho Francisco. Sempre voltou para o seu porto e o nome dos seus
três saveiros estão tatuados no seu braço direito junto com o nome
de seu irmão que ficou numa tempestade também. Talvez um dia
escreva ali o nome de Guma, se der um dia na cabeça de Iemanjá amar
o seu sobrinho. A verdade é que o velho Francisco ri disso tudo.
Destino deles é esse: virar no mar. Se ele não ficou também, é
que Janaína não o quis, preferiu que ele a visse vivo e que ficasse
para conversar com os rapazes, ensinar remédios, contar histórias.
E de que vale ter ficado assim, remendando velas, olhando pelo
sobrinho, feito uma coisa inútil, sem poder mais viajar porque seus
braços já cansaram, seus olhos não distinguem mais na escuridão?
Melhor teria sido se houvesse ficado no fundo da água com o Estrela
da Manhã, seu saveiro mais rápido, e que virou na noite de São
João. Agora ele vê os outros partirem e não vai com eles. Fica
olhando para Lívia, igual a uma mulher, tremendo nas tempestades,
ajudando a enterrar os que morrem. Faz muito tempo que cruzou pela
última vez a baía, a mão no leme, os olhos atravessando a
escuridão, sentindo o vento no rosto, correndo com seu saveiro ao
som da música distante.
Hoje um negro canta também. Diz que
destino ruim é o das mulheres dos marítimos. 0 velho Francisco
sorri. Sua mulher ele enterrou, o médico disse que fora do coração.
Morreu de repente numa noite em que ele chegava da tempestade. Ela se
atirou nos seus braços e quando ele reparou ela não se bulia mais,
estava morta. Morreu de alegria de ele voltar, o médico disse que
foi do coração. Quem ficou naquela noite foi Frederico, o pai de
Guma. Corpo que ninguém encontrou porque ele morrera para salvar
Francisco e por isso fora com Iemanjá para outras terras muito
lindas. Foi o seu irmão e a sua mulher numa só noite. Então ele
criou Guma dentro do seu saveiro, dentro do mar, para que ele não
tivesse medo. A mãe de Guma, que ninguém sabia quem era, apareceu
um dia e pediu o menino: — O senhor que é seu Francisco?
— Sou eu mesmo, dona, pra lhe servir...
— O senhor não me conhece...
— Não ‘tou lhe reconhecendo, não...
— Botou a mão na testa, lembrando velhos conhecidos: — Não
conheço não, me adisculpe.
— Mas Frederico me conhecia muito.
— É bem de ver porque ele andou
viajando nesses paquetes da Baiana. De que bandas ele conhece
vosmecê?
— Lá por Aracaju, seu Francisco. Um
dia arribou por lá, o navio 'tava com um rombo do tamanho do mundo
no costado. Só chegou lá por milagre...
— Já me alembro, foi o Marari... Foi
uma viagem braba, Frederico me contou. Foi lá que lhe conheceu?
— O barco passou um mês. Ele se
enfeitou para meu lado...
— Era um cabra mulherengo que nem
macaco... Ela sorriu, mostrando os dentes quebrados: — Contou muita
história, que me trazia, botava casa pra mim, me dava vestido e de
comê. 0 senhor sabe como é...
O velho Francisco fez um gesto. Estavam
na beira do cais e no mercado vizinho vendiam laranjas e abacaxis.
Sentaram, nuns caixões. A mulher continuou: — Me fez a desgraça
só dizendo que nem voltava com o navio. Mas quando o bicho sarou do
buraco, ele não ouviu conversa, se trepou no barco e foi só dar
adeus...
— Não digo que foi bem feito não,
dona. Ele era meu sangue, mas...
Ela o interrompeu:
— Não ‘tou dizendo que ele era ruim.
Era minha sina e eu ia com ele, mesmo que tivesse sabido que ele
fazia ingratidão. Eu ‘tava enrabichada por ele direitinho.
Ficou olhando o velho Francisco. Ele
pensava porque viria ela tantos anos depois. Talvez buscar dinheiro e
agora ele estava ruim, não tinha o que dar, Frederico sempre fora
mulherengo...
— Disse que m e mandava buscar. Mandou
buscar o senhor? — sorria. — Assim fez comigo. Quando a barriga
subiu, eu dei de lançar, minha mãe se danou. Meu pai era um homem
direito, quando soube veio em cima de mim com um facão. Só queria
era saber quem tinha sido para acabar com ele. Mas ficou esse talho
aqui em cima do joelho. 0 facão pegou de mau jeito.
Porque ela mostrava assim as coxas?
Francisco não andaria com uma mulher de seu irmão, que isso era
ruim e podia trazer castigo.
— Fiquei foi no meio do mundo. Uma
família, que era meu padrinho, me deu emprego. Um dia, ‘tava
servindo a mesa, me atacou as dores…
Aí seu Francisco compreendeu:
— Guma?
— Era Gumercindo, sim. Foi meu padrinho
que botou o nome. 0 mesmo nome dele. Arranjei um dinheiro, trouxe ele
para Frederico. Ele já ‘tava com outra, ficou com o menino, mas
não quis saber mais de mim.
Fez-se o silêncio de novo. Francisco só
estava era espiando par a saber o que ela queria. Dinheiro ele não
tinha, logo naquele dia. Dormir com a mulher de seu irmão era coisa
que ele não fazia.
— Aí fiquei por aqui mesmo, com
vergonha de voltar. A gente é pobre, mas tem vergonha, não é? Não
queria cair na vida na minha terra... Meu pai era homem conceituado,
formou até um meu irmão em doutor médico. Depois andei por esse
mundo afora. Faz tanto tempo...
Estendeu a mão, ficou olhando os
saveiros. De trás, do mercado, vinha um barulho de conversa, de
discussões, de gargalhadas.
— Faz só três dias que cheguei do
Recife. Já ‘tava mesmo pra vim ver o meninu, foi um conhecido que
me disse que Frederico morreu, faz dois anos. Agora vim buscar meu
filho... Vou com ele...
Francisco não ouvia mais o barulho que
vinha do mercado. Ouvia som ente aquela mulher que dizia ser mãe de
Guma e o vinha buscar. E le não gostava de brigar com mulher.
Discussão com mulher não acaba mais e ele tinha que discutir porque
não queria entregar Guma, que já ia tão bem no leme do saveiro e
já suspendia um saco de farinha nos braços de menino. Francisco
estava acostumado a discutir com homens rudes do cais, mestres de
saveiro, fortes a quem podia ofender porque eles sabiam se defender,
um nome feio que escapasse não fazia mal. A gora com uma mulher, e
com um a mulher como a mãe de Guma, cheirando, vestida de ~ com uma
sombrinha no braço e um dente de ouro, ele não sabia brigar. Se uma
má palavra lhe escapasse, ela era capaz de começar a chorar, e ele
não gostava de ver mulher chorar. Demais, seu irmão não tinha
andado direito com ela. Mas marinheiros podem lá viver pensando nas
mulheres que deixam nos portos? E não é pior quando se casam e
deixam viúvas ou então elas morrem de coração quando os vêem
chegar salvos da tempestade? Era bem pior. Guma não casará. Será
sempre livre no seu saveiro. Irá com Iemanjá quando bem quiser. Não
terá âncoras que o prendam à terra. 0 homem que vive no mar deve
ser livre. Mas se aquela mulher levasse Guma, que seria do menino?
Seria marceneiro, pedreiro, talvez doutor ou até padre vestido de
mulher, quem sabe! E as faces do velho Francisco s e cobririam de
vergonha pelo fim de seu sobrinho, e nada lhe restava senão ir ele
próprio ao encontro de Janaína numa noite do mar. Não, por nada
ele deixaria que aquela mulher levasse Guma.
A mulher já estava estranhando o
silêncio. Vozes vinham do mercado:
— ‘tá caro que faz medo...
E uma conversa ao longe:
— Aí pipocou dois tiros e eu só vi
cabra correr. Mas como homem é homem, fiz das tripas coração e me
atirei...
O velho Francisco riu:
— Sabe, dona? Vosmecê não leva o
menino, não. Que é que vosmecê ia fazer com ele?
Ficou olhando para a mulher, esperando
resposta. Mas seu rosto dizia que não havia força que o fizesse
entregar Guma. A mulher estendeu a mão naquele gesto vago e
respondeu: — Eu mesmo nem sei... Quero levar ele porque é meu
filho e não tem pai... Vida de mulher-dama, vosmecê sabe como é...
Hoje aqui, amanhã acolá — Se ele ficar, vai ser como o pai, morre
um dia afogado ...
— E se velejar com vosmecê, dona?
— Boto ele num colégio, vai aprender a
ler, talvez vire doutor como o tio dele, meu irmão... Não vai
morrer afogado...
— Sei lá dona, destino é coisa feita
lá em cima. Se ele tem de ser de Janaína não há saber que livre
ele. Se ele ficar aqui, vira homem de verdade. Se for com a senhora,
acaba um mofino que nem esses homens de cabaré...
— Isso diz vosmecê...
— Donde vai vosmecê arranjar dinheiro
para fazer ele estudar? Mulher-dama eu bem conheço: um dia tem,
outro não tem... Vosmecê falou que é hoje aqui, amanhã acolá...
E filho de mulher-dama é pior que cachorro, vosmecê sabe disso...
Ela baixou a cabeça, porque sabia que
era verdade. Levar seu filho era criar para ele a suprema humilhação
de todos saberem que sua mãe era da v ida. Onde quer que andasse,
nas ruas, nos colégios, em qualquer parte, nada poderia dizer porque
havia contra ele o insulto maior. Do mercado vinha a voz do homem que
contava o caso: — Eu só vi a faca brilhando que nem para d
estrinchar um peixe. Levantei o cotovelo, meti o joelho pra frente.
Foi uma coisa feia... (Era bem melhor que ele ficasse ali, aprendesse
a levar um saveiro pelos portos, fizesse filhos em mulheres
desconhecidas, arrancasse facas das mãos de homens, bebesse nos
botequins, tatuasse corações no braço, atravessasse a tempestade,
fosse com Janaína quando seu dia chegasse. Ali ninguém perguntaria
quem era sua mãe.) — Mas posso ver ele de vez em quando?
— Sempre que o coração lhe pedir... —
Agora Francisco tinha pena. Não há mãe, por pior que seja, que não
ame os filhos. Mesmo a baleia, que é um bicho e não tem pensar,
defende os seus filhos dos peixes e até morre por eles.
— Hoje mesmo vosmecê pode ver ele. De
noite ele vem com o saveiro de Itaparica. Nós vai então..
Ela fez uma cara de medo:
— Ele já anda sozinho com o saveiro?
— Só de Itaparica pra cá. Pra ir
aprendendo. E já ‘tá mesmo que um homem.
O rosto dela agora estava cheio de
orgulho. Seu filho, que só tinha 11 anos, já sabia viajar com um
saveiro, já cruzava as águas, podia passar por um homem. Perguntou
com uma voz de criança que vinha do mais profundo do seu coração:
— Ele se parece comigo?
O velho Francisco olhou a mulher. Apesar
dos dentes cariados, era bonita. Tinha um dente de ouro para
compensar. Vinha dela um perfume extravagante para aquela beira de
cais cheirando a peixe. A boca pintada era cor de sangue como se
houvesse sido mordida. Seus braços roliços estavam caldos ao longo
do corpo. Maltratada pela vida, era ainda nova, nem parecia a mãe de
Guma. No entanto, há onze anos que ela estava na vida, conhecendo
homens, dormindo com eles, apanhando de muitos. Apesar disso, ainda
tentava um. Se ela não tivesse dormido com Frederico...
— Se parece, sim. Tem os olhos
igualzinho os de vosmecê. E o nariz assim também…
Ela sorria e aquele era mesmo seu momento
mais feliz. Um dia, quando sua beleza terminasse de todo, quando os
homens a houvessem gasto totalmente, então ela teria uma velhice
garantida, viria para seu filho, faria a comida dele, o esperaria de
volta das tempestades. Não precisaria se desculpar perante ele. Os
filhos tudo sabem perdoar às velhas mães cansadas que aparecem de
repente. E a mulher se deixou embalar por essa felicidade e sorria
pela boca, pelos olhos, seus gestos eram alegres e até aquele
perfume esquisito que lembrava cabarés desapareceu e ficou somente o
cheiro de maresia, de peixe salgado.
Jorge Amado, in Mar Morto
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