segunda-feira, 1 de março de 2021

Terras do Sem Fim (trecho)

          Uma voz assim tão cheia e sonora espanta todos os outros ruídos da noite. Lá do forte velho que ela vem e se espalha sobre o mar e a cidade. Não é bem o que ela diz que bole com o coração dos homens. É a melo dia doce e melancólica que faz as conversas serem em surdina, baixinho. No entanto, a letra desta velha canção diz que “desgraçada é a mulher que vai com um homem do mar. Sorte boa ela não terá, infeliz destino é o seu. Seus olhos não pararão jamais de chorar, e cedo murcharão de tanto se alongarem para o mar, esperando a chegada de uma vela”. A voz do negro cobre a noite.
O velho Francisco conhece essa música e esse mundão de estrelas que se refle te no mar. Senão, de que valeriam quarenta anos passados em cima de um saveiro. E não é só as estrelas que ele conhece. Conhece também todas as coroas, as curvas, os canais da baía e do rio Paraguaçu, todos os portos daquelas bandas, todas as músicas que por ali são cantadas. Os moradores daquele pedaço de rio e do cais são seus amigos, e há até quem diga que uma vez, na noite, em que salvou toda a tripulação de um barco de pesca, viu o vulto de Iemanjá, que se mostrou a ele como prêmio. Quando se fala nisso (e todo jovem mestre de saveiro pergunta ao velho Francisco se é verdade), ele somente sorri e diz: — Se fala muita coisa neste mundo, menino.. Assim, ninguém sabe se é verdade ou não. Bem que poderia ser. Iemanjá tem caprichos e se havia alguém que merecesse vê-la e amá-la era o velho Francisco, que estava na beira do cais desde ninguém sabe quando. Ainda melhor, porém, que todas as coroas, os viajantes, os canais, ele conhece as histórias daquelas águas, daquelas festas de Janaína, daqueles naufrágios e temporais. Haverá história que o velho Francisco não conheça?
Quando a noite chega, ele deixa a sua casa pequena e vem para a beira do cais. Atravessa a lama que cobre o cimento, entra pela água, e pula para a proa de um saveiro. Então pedem que ele conte histórias, conte casos. Não há quem saiba de casos como ele.
Hoje vive de remendar vela e do que lhe dá Guma, seu sobrinho. Tempo houve, porém, em que teve três saveiros que os ventos da tempestade levaram. Não puderam foi com o velho Francisco. Sempre voltou para o seu porto e o nome dos seus três saveiros estão tatuados no seu braço direito junto com o nome de seu irmão que ficou numa tempestade também. Talvez um dia escreva ali o nome de Guma, se der um dia na cabeça de Iemanjá amar o seu sobrinho. A verdade é que o velho Francisco ri disso tudo. Destino deles é esse: virar no mar. Se ele não ficou também, é que Janaína não o quis, preferiu que ele a visse vivo e que ficasse para conversar com os rapazes, ensinar remédios, contar histórias. E de que vale ter ficado assim, remendando velas, olhando pelo sobrinho, feito uma coisa inútil, sem poder mais viajar porque seus braços já cansaram, seus olhos não distinguem mais na escuridão? Melhor teria sido se houvesse ficado no fundo da água com o Estrela da Manhã, seu saveiro mais rápido, e que virou na noite de São João. Agora ele vê os outros partirem e não vai com eles. Fica olhando para Lívia, igual a uma mulher, tremendo nas tempestades, ajudando a enterrar os que morrem. Faz muito tempo que cruzou pela última vez a baía, a mão no leme, os olhos atravessando a escuridão, sentindo o vento no rosto, correndo com seu saveiro ao som da música distante.
Hoje um negro canta também. Diz que destino ruim é o das mulheres dos marítimos. 0 velho Francisco sorri. Sua mulher ele enterrou, o médico disse que fora do coração. Morreu de repente numa noite em que ele chegava da tempestade. Ela se atirou nos seus braços e quando ele reparou ela não se bulia mais, estava morta. Morreu de alegria de ele voltar, o médico disse que foi do coração. Quem ficou naquela noite foi Frederico, o pai de Guma. Corpo que ninguém encontrou porque ele morrera para salvar Francisco e por isso fora com Iemanjá para outras terras muito lindas. Foi o seu irmão e a sua mulher numa só noite. Então ele criou Guma dentro do seu saveiro, dentro do mar, para que ele não tivesse medo. A mãe de Guma, que ninguém sabia quem era, apareceu um dia e pediu o menino: — O senhor que é seu Francisco?
Sou eu mesmo, dona, pra lhe servir...
O senhor não me conhece...
Não ‘tou lhe reconhecendo, não... — Botou a mão na testa, lembrando velhos conhecidos: — Não conheço não, me adisculpe.
Mas Frederico me conhecia muito.
É bem de ver porque ele andou viajando nesses paquetes da Baiana. De que bandas ele conhece vosmecê?
Lá por Aracaju, seu Francisco. Um dia arribou por lá, o navio 'tava com um rombo do tamanho do mundo no costado. Só chegou lá por milagre...
Já me alembro, foi o Marari... Foi uma viagem braba, Frederico me contou. Foi lá que lhe conheceu?
O barco passou um mês. Ele se enfeitou para meu lado...
Era um cabra mulherengo que nem macaco... Ela sorriu, mostrando os dentes quebrados: — Contou muita história, que me trazia, botava casa pra mim, me dava vestido e de comê. 0 senhor sabe como é...
O velho Francisco fez um gesto. Estavam na beira do cais e no mercado vizinho vendiam laranjas e abacaxis. Sentaram, nuns caixões. A mulher continuou: — Me fez a desgraça só dizendo que nem voltava com o navio. Mas quando o bicho sarou do buraco, ele não ouviu conversa, se trepou no barco e foi só dar adeus...
Não digo que foi bem feito não, dona. Ele era meu sangue, mas...
Ela o interrompeu:
Não ‘tou dizendo que ele era ruim. Era minha sina e eu ia com ele, mesmo que tivesse sabido que ele fazia ingratidão. Eu ‘tava enrabichada por ele direitinho.
Ficou olhando o velho Francisco. Ele pensava porque viria ela tantos anos depois. Talvez buscar dinheiro e agora ele estava ruim, não tinha o que dar, Frederico sempre fora mulherengo...
Disse que m e mandava buscar. Mandou buscar o senhor? — sorria. — Assim fez comigo. Quando a barriga subiu, eu dei de lançar, minha mãe se danou. Meu pai era um homem direito, quando soube veio em cima de mim com um facão. Só queria era saber quem tinha sido para acabar com ele. Mas ficou esse talho aqui em cima do joelho. 0 facão pegou de mau jeito.
Porque ela mostrava assim as coxas? Francisco não andaria com uma mulher de seu irmão, que isso era ruim e podia trazer castigo.
Fiquei foi no meio do mundo. Uma família, que era meu padrinho, me deu emprego. Um dia, ‘tava servindo a mesa, me atacou as dores…
Aí seu Francisco compreendeu:
Guma?
Era Gumercindo, sim. Foi meu padrinho que botou o nome. 0 mesmo nome dele. Arranjei um dinheiro, trouxe ele para Frederico. Ele já ‘tava com outra, ficou com o menino, mas não quis saber mais de mim.
Fez-se o silêncio de novo. Francisco só estava era espiando par a saber o que ela queria. Dinheiro ele não tinha, logo naquele dia. Dormir com a mulher de seu irmão era coisa que ele não fazia.
Aí fiquei por aqui mesmo, com vergonha de voltar. A gente é pobre, mas tem vergonha, não é? Não queria cair na vida na minha terra... Meu pai era homem conceituado, formou até um meu irmão em doutor médico. Depois andei por esse mundo afora. Faz tanto tempo...
Estendeu a mão, ficou olhando os saveiros. De trás, do mercado, vinha um barulho de conversa, de discussões, de gargalhadas.
Faz só três dias que cheguei do Recife. Já ‘tava mesmo pra vim ver o meninu, foi um conhecido que me disse que Frederico morreu, faz dois anos. Agora vim buscar meu filho... Vou com ele...
Francisco não ouvia mais o barulho que vinha do mercado. Ouvia som ente aquela mulher que dizia ser mãe de Guma e o vinha buscar. E le não gostava de brigar com mulher. Discussão com mulher não acaba mais e ele tinha que discutir porque não queria entregar Guma, que já ia tão bem no leme do saveiro e já suspendia um saco de farinha nos braços de menino. Francisco estava acostumado a discutir com homens rudes do cais, mestres de saveiro, fortes a quem podia ofender porque eles sabiam se defender, um nome feio que escapasse não fazia mal. A gora com uma mulher, e com um a mulher como a mãe de Guma, cheirando, vestida de ~ com uma sombrinha no braço e um dente de ouro, ele não sabia brigar. Se uma má palavra lhe escapasse, ela era capaz de começar a chorar, e ele não gostava de ver mulher chorar. Demais, seu irmão não tinha andado direito com ela. Mas marinheiros podem lá viver pensando nas mulheres que deixam nos portos? E não é pior quando se casam e deixam viúvas ou então elas morrem de coração quando os vêem chegar salvos da tempestade? Era bem pior. Guma não casará. Será sempre livre no seu saveiro. Irá com Iemanjá quando bem quiser. Não terá âncoras que o prendam à terra. 0 homem que vive no mar deve ser livre. Mas se aquela mulher levasse Guma, que seria do menino? Seria marceneiro, pedreiro, talvez doutor ou até padre vestido de mulher, quem sabe! E as faces do velho Francisco s e cobririam de vergonha pelo fim de seu sobrinho, e nada lhe restava senão ir ele próprio ao encontro de Janaína numa noite do mar. Não, por nada ele deixaria que aquela mulher levasse Guma.
A mulher já estava estranhando o silêncio. Vozes vinham do mercado:
— ‘tá caro que faz medo...
E uma conversa ao longe:
Aí pipocou dois tiros e eu só vi cabra correr. Mas como homem é homem, fiz das tripas coração e me atirei...
O velho Francisco riu:
Sabe, dona? Vosmecê não leva o menino, não. Que é que vosmecê ia fazer com ele?
Ficou olhando para a mulher, esperando resposta. Mas seu rosto dizia que não havia força que o fizesse entregar Guma. A mulher estendeu a mão naquele gesto vago e respondeu: — Eu mesmo nem sei... Quero levar ele porque é meu filho e não tem pai... Vida de mulher-dama, vosmecê sabe como é... Hoje aqui, amanhã acolá — Se ele ficar, vai ser como o pai, morre um dia afogado ...
E se velejar com vosmecê, dona?
Boto ele num colégio, vai aprender a ler, talvez vire doutor como o tio dele, meu irmão... Não vai morrer afogado...
Sei lá dona, destino é coisa feita lá em cima. Se ele tem de ser de Janaína não há saber que livre ele. Se ele ficar aqui, vira homem de verdade. Se for com a senhora, acaba um mofino que nem esses homens de cabaré...
Isso diz vosmecê...
Donde vai vosmecê arranjar dinheiro para fazer ele estudar? Mulher-dama eu bem conheço: um dia tem, outro não tem... Vosmecê falou que é hoje aqui, amanhã acolá... E filho de mulher-dama é pior que cachorro, vosmecê sabe disso...
Ela baixou a cabeça, porque sabia que era verdade. Levar seu filho era criar para ele a suprema humilhação de todos saberem que sua mãe era da v ida. Onde quer que andasse, nas ruas, nos colégios, em qualquer parte, nada poderia dizer porque havia contra ele o insulto maior. Do mercado vinha a voz do homem que contava o caso: — Eu só vi a faca brilhando que nem para d estrinchar um peixe. Levantei o cotovelo, meti o joelho pra frente. Foi uma coisa feia... (Era bem melhor que ele ficasse ali, aprendesse a levar um saveiro pelos portos, fizesse filhos em mulheres desconhecidas, arrancasse facas das mãos de homens, bebesse nos botequins, tatuasse corações no braço, atravessasse a tempestade, fosse com Janaína quando seu dia chegasse. Ali ninguém perguntaria quem era sua mãe.) — Mas posso ver ele de vez em quando?
Sempre que o coração lhe pedir... — Agora Francisco tinha pena. Não há mãe, por pior que seja, que não ame os filhos. Mesmo a baleia, que é um bicho e não tem pensar, defende os seus filhos dos peixes e até morre por eles.
Hoje mesmo vosmecê pode ver ele. De noite ele vem com o saveiro de Itaparica. Nós vai então..
Ela fez uma cara de medo:
Ele já anda sozinho com o saveiro?
Só de Itaparica pra cá. Pra ir aprendendo. E já ‘tá mesmo que um homem.
O rosto dela agora estava cheio de orgulho. Seu filho, que só tinha 11 anos, já sabia viajar com um saveiro, já cruzava as águas, podia passar por um homem. Perguntou com uma voz de criança que vinha do mais profundo do seu coração: — Ele se parece comigo?
O velho Francisco olhou a mulher. Apesar dos dentes cariados, era bonita. Tinha um dente de ouro para compensar. Vinha dela um perfume extravagante para aquela beira de cais cheirando a peixe. A boca pintada era cor de sangue como se houvesse sido mordida. Seus braços roliços estavam caldos ao longo do corpo. Maltratada pela vida, era ainda nova, nem parecia a mãe de Guma. No entanto, há onze anos que ela estava na vida, conhecendo homens, dormindo com eles, apanhando de muitos. Apesar disso, ainda tentava um. Se ela não tivesse dormido com Frederico...
Se parece, sim. Tem os olhos igualzinho os de vosmecê. E o nariz assim também…
Ela sorria e aquele era mesmo seu momento mais feliz. Um dia, quando sua beleza terminasse de todo, quando os homens a houvessem gasto totalmente, então ela teria uma velhice garantida, viria para seu filho, faria a comida dele, o esperaria de volta das tempestades. Não precisaria se desculpar perante ele. Os filhos tudo sabem perdoar às velhas mães cansadas que aparecem de repente. E a mulher se deixou embalar por essa felicidade e sorria pela boca, pelos olhos, seus gestos eram alegres e até aquele perfume esquisito que lembrava cabarés desapareceu e ficou somente o cheiro de maresia, de peixe salgado.

Jorge Amado, in Mar Morto

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