Os juízes, doutores vindos da cidade
grande, faziam questão de demonstrar que não eram do lugar, que
estavam ali apenas de passagem, à espera de promoção. Eram
posudos, ganjentos, diziam frases latinas em seus discursos, “fero
fers tuli latum ferre”, quem com ferro fere com ferro será
ferido; o latim estava errado, mas, como ninguém sabia, não fazia
diferença. Os homens do lugar ficavam murchos diante do juiz,
gaguejavam e chegavam mesmo a perder a fala.
Açougues eram lugares de horrores. Minha
mulher, grávida pela primeira vez, desmaiou ao entrar num deles. As
moscas, as carcaças de porcos e vacas penduradas em ganchos, o
sangue pingando, os fígados sobre o balcão — um espetáculo
surrealista. Juízo semelhante sobre os açougues emitiu a Adélia
Prado. “O açougueiro e sua faca me expulsam, porque eu não
tenho santidade, eu não sou digna de pôr os pés no lugar mais
deprimente do mundo. Quando eu quero ficar humilde eu visito
açougues, entro de um em um...” (Adélia Prado, Solte os
cachorros, p. 9). De fato açougue é lugar de penitência. Se
ainda se encontram açougues assim por este Brasil, imaginem como era
antigamente. Para escapar do incômodo havia uma alternativa: comprar
carne do vendedor ambulante, quase sempre um negro, pés descalços,
calça arregaçada, equilibrando tabuleiro de madeira na cabeça,
cheio de pedaços de carne, cobertos com folhas de bananeira, seguido
por uma nuvem de moscas e cachorros, o que era normal. Empregado do
açougueiro, ele apregoava a sua mercadoria: “Lombo de porco!
Costela! Toicinho! Pernil! Fígado! Bucho!”. As donas de casa saíam
à rua, ele tirava o tabuleiro da cabeça e elas escolhiam. Mas havia
aqueles que preferiam ir aos açougues, minúsculos cômodos sem
janelas com uma porta de grades à frente, sempre cheios de moscas.
Aconteceu que um juiz novo chegou à
cidade cheio de boas intenções e se dispôs a se misturar com o
povo. Saiu a caminhar tirando respeitosamente o chapéu para todos
que encontrava. Foi indo assim até chegar ao Açougue Nossa Senhora
da Misericórdia, propriedade do Tibúrcio, que acabara de matar um
porco. A gritaria do porco, ouvida na cidade inteira, dispensava
propaganda. Gritaria de porco — carne do porco no açougue do
Tibúrcio. E lá estavam as duas metades, pendentes do teto,
penduradas em ganchos. O juiz, para puxar conversa, afirmou com a
autoridade da sua voz: “Então o senhor abate suínos!”. Tibúrcio
perdeu a fala. Ficou gelado. Não sabia o que era “abate” nem
“suíno”. Com certeza o meretríssimo o pegara em alguma infração
da lei. O jeito era negar o crime. Gaguejou. “Não senhor, não
senhor... Eu só mato porco...” .
Um outro caso de desencontro entre os
homens do lugar e os juízes efêmeros se deu quando um roceiro que
viera à cidade para comprar querosene, sal, rapadura e fumo de rolo
se sentiu premido por uma urgência fisiológica inadiável. Sem
alternativas, fez o que normalmente fazia na roça. Valendo-se de um
muro de adobes caído entrou num terreno baldio onde o mato crescera,
abaixou as calças, agachou-se e pôs-se a obrar. Vinha por aquela
mesma rua um juiz com chapéu panamá e guarda-chuva enrolado que
fazia as vezes de bengala, costume generalizado naquela época, que,
vendo o homem fazendo o que fazia, horrorizou-se com tal falta de
respeito, posto que era provável que por ali viessem a passar
excelentíssimas senhoras. “O senhor não sabe que é contra a lei
defecar em público?”, esbravejou o juiz. Sem saber o que era
“defecar”, o roceiro entendeu a mensagem, e sem sair da sua
posição deu uma lição de Filosofia do Direito ao juiz presunçoso:
“Seu dotô, há necessidades que são mais fortes do que a lei...”.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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