quinta-feira, 25 de março de 2021

O mosquete

Durante os impactos mais violentos do Tufão, o homem à cana da mandíbula que formava o leme do Pequod havia sido várias vezes arremessado ao convés aos rodopios por seus movimentos espasmódicos, apesar das talhas preventivas acopladas a ele – e que, no entanto, estavam folgadas –, pois deixar um certo jogo ao leme é indispensável.
Num vendaval implacável como aquele, quando o navio é apenas uma peteca em meio às rajadas, não é raro ver as agulhas das bússolas, às vezes, girando sem parar. Assim sucedeu no Pequod; em quase todos os impactos não passou despercebida ao timoneiro a velocidade vertiginosa com a qual elas giravam nas rosas-dos-ventos; é uma cena a que dificilmente alguém pode assistir sem algum tipo de emoção inusitada.
Algumas horas depois da meia-noite, o Tufão amainara o suficiente para que, com os esforços enérgicos de Starbuck e Stubb – um à frente e o outro à popa –, os vestígios destroçados da bujarrona e das velas do mastro de proa e do traquete fossem cortados das vergas à matroca e ficassem rodopiando a sotavento, como as penas de um albatroz que às vezes se soltam ao vento quando esse pássaro, lançado à tempestade, passa voando.
As três novas velas correspondentes foram então envergadas e rizadas, e uma vela feita de capas para tempestade foi estendida à ré; de modo que o navio logo atravessou as águas mais uma vez com alguma precisão; e a rota – naquele momento, leste-sudeste –, que, se possível, devia governar a proa, foi mais uma vez informada ao timoneiro. Pois, durante a violência da borrasca, ele pilotara apenas ao sabor da intempérie. No entanto, uma vez que agora ele conduzia o navio tanto mais próximo de sua rota, nesse meio-tempo observando a bússola, oh!, que bom sinal!, o vento pareceu voltar-se à popa; sim, o vento contrário fez-se favorável!
No mesmo instante as vergas foram presas, ao som da alegre canção Oh! O vento bom! oh-hey-yo, alegria, marinheiros!, que a tripulação cantava feliz, pois um tal acontecimento, tão promissor, logo anularia os maus augúrios que o haviam precedido.
Em obediência à ordem permanente do comandante – de reportar imediatamente, e a qualquer das vinte e quatro horas do dia, qualquer mudança decisiva nos assuntos do convés –, Starbuck não mareara com as vergas à brisa – embora relutante e lôbrego – mas, mecanicamente, descera para notificar o Capitão Ahab do fato.
Antes de bater à porta do aposento parou sem querer diante dela por um momento. A lamparina da cabine – pendulando longamente numa e noutra direção – intermitente ardia e deitava sombras intermitentes sobre a porta trancada do velho, – uma porta fina com venezianas fixas em lugar de telas superiores. O isolamento subterrâneo da cabine fazia com que uma espécie de silêncio com zunido ali reinasse, embora cingida por todo o rugir dos elementos. Os mosquetes carregados no cabide de armas revelavam-se em seu lustro, erguidos contra o anteparo dianteiro. Starbuck era um homem honesto e correto; mas, em seu coração, no instante em que viu os mosquetes, elaborou-se estranhamente um pensamento molesto; mas tão mesclado a neutras e boas intenções que, naquele instante, ele mal reconheceu por si mesmo.
Ele teria atirado em mim naquela ocasião”, murmurou, “sim, este é o mesmo mosquete que ele apontou para mim; – esse com a coronha cravejada; deixa-me tocá-lo – erguê-lo. Estranho que eu, que manejei tantas lanças mortais, estranho que trema tanto agora. Carregado? Vamos ver. Sim, sim; pólvora na caçoleta; – isso não é bom. Melhor descarregar? – Espera. Quero curar-me disso. Segurarei, corajoso, este mosquete enquanto penso. – Vim para informá-lo sobre o vento favorável. Mas quão favorável? Favorável à morte e à destruição – isso é favorável para Moby Dick. É um vento favorável que somente é favorável para aquela coisa – somente para aquele peixe maldito. – Apontou-me este mesmo cano! – este aqui – que agora tenho em mãos; ele teria me matado com essa mesma coisa que agora tenho em mãos. – Sim, e estaria disposto a matar toda a tripulação. Não disse ele que jamais arriaria as vergas a uma tempestade? Não destroçou seu quadrante celeste? E não tateia em busca do caminho nesses mesmos mares perigosos baseando-se nos cálculos obsoletos de uma barquilha obtusa? E, durante o Tufão, não jurou que não queria pára-raios? Mas esse velho insensato seria capaz de arrastar tranquilamente à destruição toda a tripulação do navio junto com ele? – Sim, isso faria dele o assassino premeditado de trinta ou mais homens, se este navio sofrer algum dano fatal; e um dano fatal, isso a minha alma jura que este navio sofrerá, caso Ahab faça o que pretende. Então, se ele fosse nesse momento posto de lado, tal crime não seria seu. Ah! Está balbuciando enquanto dorme? Sim, ali – lá dentro, ele dorme. Dorme? Sim, mas ainda vivo e logo mais acordado de novo. Não posso resistir a ti, velho. Nem à razão; nem aos protestos; nem às súplicas tu dás ouvidos; desprezas tudo. Obediência cega às tuas ordens cegas, é tudo o que dizes. Sim, e dizes que os homens juraram teu juramento; dizes que nós todos somos Ahabs. Deus me livre! – Mas não haverá outro meio? Um meio lícito? – Fazê-lo prisioneiro para levá-lo para casa? O quê! Ter esperança de arrancar o vigoroso poder desse velho de suas próprias mãos vigorosas? Só um louco se atreveria. Supondo que estivesse atado; todo amarrado com cabos e cordas; acorrentado e preso a argolas no chão desta cabine; ele seria mais abominável do que um tigre enjaulado. Eu não suportaria tal cena; não poderia fugir aos seus gritos; toda a tranquilidade, o próprio sono e a inestimável razão me abandonariam na longa e intolerável viagem. Que resta, pois? A terra está a centenas de léguas e o inacessível Japão é a terra mais próxima. Estou só, aqui, em pleno mar, com dois oceanos e um continente inteiro entre mim e a lei. – Sim, sim, é bem isso. – Será o céu um assassino quando um raio seu fulmina um provável assassino no leito, reduzindo ao mesmo tempo lençóis e pele a cinzas? Seria eu um assassino, então, se” – e devagar, furtivamente, olhando para os lados, encostou à porta o cano do mosquete carregado.
Nesta altura, a rede de Ahab balança lá dentro; sua cabeça está desse lado. Um toque e Starbuck talvez sobreviva para abraçar a esposa e o filho novamente – Ah, Mary! Mary! – Filho! Filho! Filho! –, mas se te desperto, e não para a morte, velho, quem poderá dizer em que insondáveis profundezas afundará o corpo de Starbuck em menos de uma semana junto com toda a tripulação! Grande Deus, onde estás? Devo? – Devo? – O vento acalmou e mudou de direção, senhor; as gáveas do mastro de proa e do mastro grande estão rizadas e postas; estamos na rota.”
Tudo à ré! Oh, Moby Dick, finalmente vou agarrar teu coração!”
Estes eram os sons que roncavam com violência do sono atormentado do velho, como se a voz de Starbuck houvesse posto o longo sono mudo para falar.
O mosquete ainda erguido tremia como o braço de um bêbado contra a tela da porta; Starbuck parecia lutar com um anjo; mas, afastando-se da porta, devolveu o cano da morte no cabide de armas e saiu.
Ele dorme profundamente, senhor Stubb; vai lá embaixo acordá-lo e conta a ele. Eu devo cuidar do convés. Tu sabes o que dizer.”

Herman Melville, in Moby Dick

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