sexta-feira, 12 de março de 2021

O Estranho Caso de Benjamin Button / 1

          No longínquo ano de 1860 a maneira correta de nascer era em casa. Presentemente, segundo me dizem, os sumo-sacerdotes da medicina decretaram que os primeiros vagidos dos recém-nascidos devem ser soltos no ar antiestético de um hospital, de preferência de um hospital em voga. Por isso, Mr. e Mrs. Roger Button estavam cinquenta anos à frente do estilo da época quando, num dia do Verão de 1860, decidiram que o seu primeiro bebê nasceria num hospital. Jamais se saberá se este anacronismo teve alguma influência na espantosa história que estou prestes a contar.
Contarei o que aconteceu e deixarei que julguem por si mesmos.
Os Roger Button ocupavam uma posição invejável, tanto social como financeiramente, na Baltimore de antes da guerra. Eram aparentados com Esta Família e com Aquela Família, o que, como todos os habitantes do Sul sabiam, lhes conferia o direito de pertencerem àquele enorme pariato que povoava largamente a Confederação. Esta era a sua primeira experiência relacionada com o fascinante velho costume de ter bebês. Mr. Button sentia-se, naturalmente, nervoso. Esperava que fosse um menino para poder enviá-lo para o Yale College, no Connecticut, em cuja instituição ele próprio fora conhecido durante quatro anos pela alcunha um tanto quanto óbvia de “Bainha”.
Na manhã de Setembro consagrada ao enorme evento levantou-se nervosamente às seis horas da manhã, vestiu-se, ajustou um impecável plastrão e correu apressadamente pelas ruas de Baltimore a caminho do hospital, a fim de averiguar se a escuridão da noite trouxera nova vida no seu seio.
Quando se encontrava a cerca de cem metros do Hospital Particular de Maryland para Damas e Cavalheiros viu o Dr. Keene, o médico da família, descendo os degraus da frente, esfregando as mãos uma na outra como se estivesse a lavá-las — tal como é exigido a todos os médicos pela ética consuetudinária da sua profissão.
Mr. Roger Button, presidente da Roger Button & Co., Grossista de Ferragens, começou a correr na direção do Dr. Keene com muito menos dignidade do que a esperada de um cavalheiro sulista daquele pitoresco período.
Dr. Keene! — chamou. — Ó Dr. Keene!
O médico ouviu-o, deu meia volta e parou à espera, com uma expressão curiosa a fixar-se no rosto severo e clínico à medida que Mr. Button se aproximava.
O que aconteceu? — perguntou Mr. Button, ao chegar, numa agitação ofegante. — O que foi? Como está ela? Um menino? Quem é? O que.
Fale com lógica! — ordenou o Dr. Keene, asperamente. Parecia um bocado agastado.
A criança nasceu? — perguntou, suplicante, Mr. Button.
O Dr. Keene franziu a testa.
Bem, sim, suponho... é como quem diz.
E lançou outro olhar curioso a Mr. Button.
A minha mulher está bem?
Está.
É menino ou menina?
Essa agora! — explodiu o Dr. Keene, extremamente irritado. — Peço-lhe que vá e veja com os seus olhos. Escandaloso! — Soltou a última palavra como se tivesse apenas uma sílaba. Depois virou-se, a resmungar: — Imagina que um caso como este beneficia a minha reputação profissional? Outro igual me arruinaria. Arruinaria qualquer um.
Mas, afinal, o que se passa? — perguntou Mr. Button, em pânico. — Trigêmeos?
Não, não se trata de trigêmeos! — respondeu o médico, cortante. — Sabe que mais? Vá e veja com os seus olhos. E arranje outro médico. Trouxe-o a este mundo, meu rapaz, e há quarenta anos que sou médico da sua família, mas agora acabou-se! Estou farto. Não quero voltar a vê-lo, nunca mais, nem ao Sr., nem a qualquer dos seus familiares! Passe bem!
Virou as costas, bruscamente. E, sem dizer mais uma palavra, entrou na carruagem que o esperava na beira do passeio e partiu com ar severo.
Mr. Button ficou parado no passeio, estupefato e a tremer da cabeça aos pés. Que horrível tragédia acontecera? Perdera de súbito toda a vontade de ir ao Hospital Particular de Maryland para Damas e Cavalheiros, e foi com extrema dificuldade que, um momento depois, impôs a si mesmo subir a escada e transpor a porta principal.
Uma enfermeira estava sentada à secretária, na obscuridade opaca do átrio. Engolindo a vergonha que o atormentava, Mr. Button dirigiu-se a ela.
Bom dia — ela o saudou, a olhá-lo agradavelmente.
Bom dia. Eu sou.. eu sou Mr. Button.
Perante tais palavras, uma expressão de absoluto terror alastrou-se pelo rosto da jovem. Levantou-se como se fosse fugir do átrio, contendo-se apenas com aparente e grande dificuldade.
Quero ver o meu filho — disse Mr. Button. A enfermeira soltou um gritinho.
Oh.. com certeza! — exclamou, esganiçadamente. — É lá em cima. Lá bem em cima. Suba! Apontou-lhe a direção e Mr. Button, alagado por uma transpiração fria, virou-se, cambaleante, e começou a subir para o segundo andar. No átrio superior dirigiu-se a outra enfermeira que se aproximou dele com uma bacia na mão.
Sou Mr. Button — articulou ele, a custo. — Desejo ver a minha...
Catrapus! A bacia caiu ruidosamente e rolou na direção da escada. Catrapus! Catrapus! Iniciou uma descida metódica, como se partilhasse o terror geral que aquele cavalheiro provocava.
Quero ver o meu filho! — insistiu Mr.
Button, à beira do colapso.
Catrapus! A bacia chegara ao andar de baixo.
A enfermeira dominou-se e lançou a Mr. Button um olhar de profundo desprezo.
Pois não, Mr. Button — concordou, em voz abafada.
Pois não! Mas se soubesse em que estado pôs a todos nós, esta manhã! Absolutamente escandaloso! O hospital jamais terá uma sombra de reputação depois.
Apresse-se! — gritou ele, roucamente. — Não posso suportar isto!
Nesse caso, venha por aqui, Mr. Button.
Ele arrastou-se atrás dela. Ao fundo de um comprido corredor chegaram a um quarto de onde saía uma variedade de gritos — um quarto que, na verdade, viria a ser conhecido como o “quarto da gritaria”. Entraram. Ao longo das paredes encontrava-se meia dúzia de berços de balanço, de esmalte branco, cada um com uma etiqueta atada à cabeceira.
Bem — perguntou Mr. Button, ofegante —, qual é o meu?
Está ali — respondeu a enfermeira.
Os olhos de Mr. Button seguiram o dedo estendido, e eis o que viu: embrulhado num volumoso cobertor branco, e parcialmente entalado num dos berços, estava um velho que aparentava cerca de setenta anos de idade. Tinha o cabelo ralo quase branco e pingava-lhe do queixo uma comprida barba cor de fumo que se agitava absurdamente, para trás e para diante, ao sabor da brisa que entrava pela janela. Olhou para cima, para Mr. Button, com uns olhos turvos e sem vida dos quais espreitava uma pergunta intrigada.
Estarei doido? — berrou Mr. Button, cujo terror se transformara em fúria. — Isto é alguma horrível brincadeira de hospital?
A nós não parece brincadeira nenhuma — respondeu, em tom grave, a enfermeira. — E não sei se o senhor é louco ou não... mas este é, sem sombra de dúvida, o seu filho.
O suor frio duplicou na testa de Mr. Button. Fechou os olhos e depois abriu-os e voltou a olhar.
Não havia engano algum: estava olhando para um homem de setenta anos... um bebê de setenta anos cujos pés pendiam dos lados do berço em que repousava.
O velho olhou placidamente de um para o outro, durante um momento, e, de súbito, perguntou numa voz esganiçada e senil:
É o meu pai?
Mr. Button e a enfermeira estremeceram violentamente.
Porque, se é — continuou o velho, ranzinza —, quero que me tire deste lugar. Ou, pelo menos, que lhes diga para pôr uma cadeira de balanço confortável aqui.
De onde demônio você veio? Quem é? — explodiu Mr. Button, exasperado.
Não sei lhe dizer exatamente quem sou — respondeu a voz esganiçada e rabugenta — porque nasci há poucas horas apenas... mas o meu sobrenome é, sem dúvida, Button.
Está mentindo! É um impostor!
O velho voltou-se, fatigado, para a enfermeira. — Bonita maneira de dar as boas-vindas a um recém-nascido — queixou-se, em voz fraca. — Por que não lhe diz que está enganado?
Está enganado, Mr. Button — afirmou a enfermeira, com firmeza. — Este é o seu filho e terá de se resignar com isso. Vamos pedir-lhe que o leve consigo para casa o mais brevemente possível, ainda hoje.
Para casa? — repetiu Mr. Button, incrédulo.
Sim, nós não podemos ficar com ele aqui. Não podemos mesmo, compreende?
O que muito me agrada — guinchou o velho. — É um belo lugar para um jovem de gostos tranquilos. Com toda esta gritaria e todos estes berros não tenho conseguido pregar os olhos. Pedi qualquer coisa para comer — a sua voz adquiriu um tom esganiçado de protesto — e trouxeram-me uma mamadeira de leite!
Mr. Button deixou-se cair numa cadeira ao lado do filho e ocultou o rosto com as mãos.
Valha-me Deus! — murmurou, horrorizado. — O que dirão as pessoas? O que devo fazer?
Tem de levá-lo para casa — insistiu a enfermeira. — Imediatamente!
Uma imagem grotesca surgiu, com terrível clareza, diante dos olhos do homem torturado, uma imagem de si mesmo a caminhar pelas ruas cheias de gente da cidade com aquela pavorosa aparição a andar silenciosamente ao seu lado. “Não posso. Não posso”, gemeu. O que diria às pessoas que parassem para lhe falar? Teria de apresentar aquele septuagenário: “Este é o meu filho, nasceu esta manhã, cedo.”
Depois o velho apertaria o cobertor em volta do corpo e seguiriam o seu caminho, passando pelas lojas movimentadas, pelo mercado de escravos — durante um sombrio momento, Mr. Button desejou veementemente que o filho fosse preto —, passando pelas casas luxuosas do bairro residencial, passando pelo lar dos velhos...
Então! Controle-se! — ordenou a enfermeira.
Ouça — avisou, de súbito, o velho —, se pensa que vou a pé para casa embrulhado neste cobertor, está redondamente enganada.
Os bebês sempre usam cobertores.
Com uma risadinha maliciosa, o velho levantou um pequeno cueiro branco.
Olhem! — exclamou a voz de cana rachada. — Isto é o que tinham para mim.
Os bebês sempre usam isso — sentenciou a enfermeira, presumidamente.
Pois bem — respondeu o velho —, este bebê não vai usar nada dentro de cerca de dois minutos. O cobertor dá comichão. Podiam ter me dado, ao menos, um lençol.
Não o tire! Não o tire! — apressou-se Mr. Button a dizer. Depois voltou-se para a enfermeira e perguntou: — O que é que eu faço?
Vá à baixada e compre algumas roupas para o seu filho.
A voz do rebento de Mr. Button seguiu-o pelo corredor afora:
E uma bengala, pai. Preciso de uma bengala.
Mr. Button bateu brutalmente com a porta de saída.

F. Scott Fitzgerald, in O Estranho Caso de Benjamin Button

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