segunda-feira, 8 de março de 2021

O delicado

          Arrependi-me de ter aconselhado aquele rapaz a inscrever-se no concurso para cobrador de pedágio da ponte Rio-Niterói. Ele ontem me apareceu murcho, de pescoço vencido:
Não deu pé.
Já sei. Exigiram de você análise estrutural de Camões ou de Guimarães Rosa.
Não. Mas a concorrência foi de endoidar. Quase quatro mil candidatos pra setenta e cinco vagas, por aí o senhor avalia.
E daí?
Daí que tinha até professora querendo trabalhar na ponte, e o coitado de mim, sem diploma, como havia de me defender?
Mas, Ermelino, o concurso não foi para dar aula de como atravessar a ponte. Foi para cobrar pedágio dos que atravessarem.
Eu sei, e por isso meti os peitos. Mas se até as professoras preferem largar de dar aula nas escolas pra cobrar pedágio na ponte, debaixo daquele solão, por aí se conclui que a situação não está pra quem nem ao menos é professor, porque não estudou e mal pôde solancar o bê-á-bá da vida.
Às vezes, né? com jeito, você podia cobrar pedágio muito melhor do que qualquer um atochado de títulos universitários.
Também acho, tanto mais que já trabalhei de guardador, no estacionamento do meu tio, que foi operado de tracoma, e dei sorte. Nem tinha cogitado do problema.
Que problema?
Em festa de jacaré…
Não entendi.
Inhambu não entra, o senhor não sabia? Os caras que têm ensino tiram de letra nas provas. Ou não tiram? Na prática, sim, é outro samba, mas a tal de teoria é de doer. Mesmo assim eu não estava ligando muito, e me preparei com o meu mobralzinho. A questão é que aqui dentro bate uma coisa chamada coração.
Continuo não entendendo. Que tem coração com pedágio?
Eu ia lá tirar o pão da boca de uma professora, se foi outra professora que me ensinou a ler? Diga, eu ia? O azar foi que sentei junto da moça, lá na Escola Técnica, ela simpatizou comido, a gente levou um papo, fiquei sabendo de sua vida…
E?
Não sou de soluçar ouvindo LP de Orlando Silva, mas que droga, também não sou de pedra. Ela tinha estudado tantos anos, aprendeu um mundo de troços complicados e queria, pra melhorar de vida, cobrar pedágio na ponte. De dia. Me falou que se fosse aprovada ia pedir pra trabalhar na escala de dia.
Descansar à noite, é lógico.
Não. De noite era pra estudar, tirar mais diploma. Eu perguntei a ela se não bastava o diploma de professora, ela riu e disse que o dela não tinha bastado, quem sabe se outros, né? Eu então perguntei se queria ser só cobradora, se não achava preferível cavar um lugar de chefe ou subchefe dos cobradores. Ela disse que achava muito difícil nomear mulher chefe ou subchefe, são só cinco lugares de chefe e dez de subchefe, ao passo que os cobradores são sessenta, ela ficava satisfeita se pegasse um de cobrador, cobrador já é bem bom, o que que eu achava? Eu não tive coragem de responder, fiquei com uma bruta vontade de oferecer meu lugar pra ela, mas que lugar eu tinha, se eu nem fiz direito a prova, devo ter feito tanta besteira… Acho que até advogado estava inscrito no concurso, não sei se médico também, quem sabe? E a moça era joia.
Bonita?
Sabe que nem reparei? Era doce, tinha um jeito de fruta macia, meio machucada porque colheram ela de mau jeito, e a casca sofria um pouco. Mas ria pra mim com uns dentes tão certinhos, nem estava chateada porque disputava um lugar daqueles, no meio de gente humilde.
Resultado?
O senhor ainda pergunta? Saí de lá com o rabo entre as pernas e nunca mais entro em concurso nenhum neste Rio de Janeiro. Volto logo pra Estrela Dalva, que é minha terra, onde ninguém tira lugar de ninguém!

Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica

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