Meu pai fez construir um cinema. O cinema
deu nova vida à cidade. As noites que anteriormente eram animadas
por visitas passaram a ter novo fascínio. A felicidade começava
durante o dia, quando um bando de meninos saía pelas ruas carregando
cartazes anunciando em altos brados o filme que seria visto. Esse seu
serviço lhes valia assistir ao filme sem ter de pagar o ingresso.
Depois era o suspense da chegada do filme, vindo de Três Pontas, na
jardineira. E como a jardineira chegava poucos minutos antes do
início da sessão, ficava uma pessoa de guarda na rua Direita,
defronte ao cinema, olhando para o alto da cidade, que era onde a
jardineira aparecia. Era só ela aparecer para que se anunciasse ao
público: “Está chegando, está chegando...” . Os filmes vinham
em rolos de celuloide, à semelhança daqueles do filme Cine
Paradiso. Com uma diferença: o cinema era mudo, viam-se as
imagens, mas não havia som. O que os atores estavam dizendo aparecia
em quadros que se intercalavam com as cenas. Se, por acaso, uma
personalidade importante chegasse após o início do filme, como era
o caso do capitão Nenê, interrompia-se a exibição, enrolava-se o
filme, e tudo começava do início. Relata-se que houve o caso de um
valente que, assistindo a um filme pela primeira vez, angustiou-se
com uma cena em que a mocinha estava em perigo. Ele não teve
dúvidas. Avançou sobre a tela para salvá-la, o que lhe valeu um
galo na cabeça e muita caçoada. Isso não é de se estranhar.
Quando fui assistir a um filme pela primeira vez, em Varginha,
terminado o espetáculo fiquei olhando para as portas que havia ao
lado da tela, esperando que os artistas aparecessem. O filme O
piano mostra uma cena semelhante. Não se tratava de cinema, mas
de um teatrinho de lençol, velas e sombras. Um espectador ficou
horrorizado quando viu a sombra de um malfeitor atravessar a sombra
do peito de uma pessoa com uma espada — o que, no teatro de
sombras, se faz de maneira simples, fazendo-se passar a espada pelo
sovaco da pessoa a ser assassinada. Pois ele avançou sobre o lençol,
pondo fim ao teatrinho... O filme mais amado, que mais emoção
provocava, era a Vida de Cristo, que se exibia na Semana
Santa, para a edificação dos fiéis. Os filmes, sendo mudos, tinham
de ser explicados em alta voz por alguém que já conhecia o enredo.
Era o caso do italiano que, no cinema do meu pai, explicava o filme
da paixão. “Aquele caricuta é San Pietro”, ele gritava. Mas o
furor romântico era provocado por Rodolpho Valentino, paixão de
todas as mulheres. Os beijos nos filmes mudos, na década de 1920,
eram mais emocionantes. Notem, eu disse emocionantes, não disse
excitantes. E isso porque o beijo requeria dos dois parceiros um
conhecimento de artes marciais, em especial do judô. Era assim: o
homem e a mulher estão juntos, de pé, um diante do outro. Aí o
homem avança a sua perna direita pelo lado direito da mulher, até
ultrapassá-la. Em seguida, usando seus quadris como ponto de apoio
de uma alavanca interfixa, aplica-os firmemente à parte exterior do
quadril direito da mulher. Ato contínuo, usando o braço direito,
abraça a costela esquerda da mulher, exercendo pressão sobre ela,
ao mesmo tempo que executa um movimento rotativo de tronco no sentido
da sua esquerda, provocando o desequilíbrio da mulher num movimento
de gangorra, sobre o apoio do quadril. Desequilibrada, a mulher
começa um movimento de queda para a sua direita, movimento esse que
tem de ser interrompido pelo braço esquerdo do homem. Esse movimento
provoca um desvio do centro de gravidade do sistema de forças que,
se não for compensado, irá provocar a queda dos dois. Sabendo
disso, o homem faz avançar rapidamente a sua perna esquerda,
restabelecendo-se assim, o equilíbrio do sistema. Nesse momento a
mulher está na horizontal, apoiada na coxa esquerda do homem que
segura sua cabeça também com a mão esquerda. Foram assim
executados os movimentos marciais preliminares necessários para se
atingir a posição do beijo. O homem, de cabelo empastado com
brilhantina, dá um beijo rápido, sem língua, na boca da mulher
que, a seguir, desfalece de emoção. Disse que os beijos eram mais
emocionantes. E isso porque a atenção dos espectadores ficava toda
concentrada no espetáculo de judô, alavancas, pontos de apoio,
equilíbrios, desequilíbrios, centro de gravidade, aflitos ante a
possibilidade de que os dois caíssem no chão. Mas se isso
acontecesse o beijo deixaria de ser emocionante e passaria a ser
excitante. Porque beijar no chão é outra coisa... Imagino que os
homens românticos de Boa Esperança, ao chegar em casa, tentassem
repetir com as suas esposas os beijos do Rodolpho Valentino. Mas
duvido que tenham tido sucesso. O mais provável é que os casais
terminassem no chão.
Posteriormente veio o progresso e os
filmes mudos passaram a ser acompanhados por um disco no gramofone
com as falas e ruídos adequados. Mas, como era um o que rodava a
manivela do projetor dando assim a velocidade do filme e outro o que
dava corda no gramofone, frequentemente aconteciam descompassos. As
falas aconteciam depois de o artista ter falado…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
Nenhum comentário:
Postar um comentário