Em minutos espalhara-se a notícia: uma
baleia no Leme e outra no Leblon haviam surgido na arrebentação de
onde tinham tentado sair sem no entanto poder voltar. Eram
descomunais apesar de apenas filhotes. Todos foram ver. Eu não fui:
corria o boato de que ela agonizava já há oito horas e que até
atirar nela haviam atirado mas ela continuava agonizando e sem
morrer.
Senti um horror diante do que contavam e
que talvez não fossem estritamente os fatos reais, mas a lenda já
estava formada em torno do extraordinário que enfim, enfim!
acontecia, pois por pura sede de vida melhor estamos sempre à espera
do extraordinário que talvez nos salve de uma vida contida. Se fosse
um homem que estivesse agonizando na praia durante oito horas nós o
santificaríamos, tanto precisamos de crer no que é impossível.
Não, não fui vê-la: detesto a morte.
Deus, o que nos prometeis em troca de morrer? Pois o céu e o inferno
nós já os conhecemos – cada um de nós em segredo quase de sonho
já viveu um pouco do próprio apocalipse. E a própria morte.
Fora das vezes em que quase morri para
sempre, quantas vezes num silêncio humano – que é o mais grave de
todos do reino animal –, quantas vezes num silêncio humano minha
alma agonizando esperava por uma morte que não vinha. E como
escárnio, por ser o contrário do martírio em que minha alma
sangrava, era quando o corpo mais florescia. Como se meu corpo
precisasse dar ao mundo uma prova contrária de minha morte interna
para esta ser mais secreta ainda. Morri de muitas mortes e
mantê-las-ei em segredo até que a morte do corpo venha, e alguém,
adivinhando, diga: esta, esta viveu.
Porque aquele que mais experimenta o
martírio é dele que se poderá dizer: este, sim, este viveu.
O mais estranho é que todas as vezes em
que era só o corpo que estava à morte, a alma o desconhecia: da
última vez em que meu corpo quase morreu, ignorando o que sucedia,
tinha uma espécie de rara alegria como se ela estivesse enfim
liberta enquanto o corpo doía como o Inferno. Uma das vezes, só
depois que passou é que me disseram: eu havia estado três dias
entre vida e morte, e nada garantiam os médicos, senão que tudo
tentariam. E eu tão inocente do que estava acontecendo que
estranhava não permitirem visitas. Mas eu quero visitas, dizia, elas
me distraem da dor terrível. E todos os que não obedeceram à placa
“Silêncio”, todos foram recebidos por mim, gemendo de dor, como
numa festa: eu tinha-me tornado falante e minha voz era clara: minha
alma florescia como um áspero ríctus. Até que o médico, realmente
muito zangado e num tom definitivo, disse-me: mais uma só visita e
lhe darei alta no estado mesmo em que você está. “O estado em que
eu estava” eu o desconhecia, nunca nesses dias notei que estava no
limiar da morte. Parece-me que eu vagamente sentia que, enquanto
sofresse fisicamente de um modo tão insuportável, isso seria a
prova de estar vivendo ao máximo.
Lembro-me agora de uma vez que ao olhar
um pôr do sol interminável e escarlate também eu agonizei com ele
lentamente e morri, e a noite veio para mim cobrindo-me de mistério,
de insônia clarividente e, finalmente por cansaço, sucumbindo num
sono que completava a minha morte. E quando acordei, surpreendi-me
docemente. Nos primeiros ínfimos instantes de acordada pensei: então
quando se está morta se conserva a consciência? Até que o corpo
habituado a mover-se automaticamente me fez fazer um gesto muito meu:
o de passar a mão pelos cabelos. Então num susto percebi que meu
corpo e minha alma tinham sobrevivido. Tudo isto – a certeza de
estar morta e a descoberta de que eu estava viva – tudo isto não
durou, creio, mais que dois ínfimos segundos ou talvez menos ainda.
Mas que de hoje em diante todos saibam através de mim que não estou
mentindo: em menos de dois segundos podem-se viver uma vida e uma
morte e uma vida de novo. Esses dois ínfimos segundos como forma de
contar toscamente o tempo devem ser a diferença entre o ser humano e
o animal: assim como Deus talvez conte o tempo em frações de século
dos séculos: cada século um instante. Quem sabe se Deus conta a
nossa vida em termos de dois segundos: um para nascer e outro para
morrer. E o intervalo, meu Deus, talvez seja a maior criação do
Homem: a vida, uma vida. Lembro-me de um amigo que há poucos dias
citou o que um dos apóstolos disse de nós: vós sois deuses.
Sim, juro que somos deuses. Porque eu
também já morri de alegria muitas vezes na minha vida. E quando
passava essa espécie de gloriosa e suave morte, eu me surpreendia de
que o mundo continuasse ao meu redor, de que houvesse uma disciplina
para cada coisa, e de que eu mesma, a começar por mim, tinha o meu
nome e já entrara na rotina: pensara que o tempo tinha parado e os
homens subitamente se tinham imobilizado no meio do gesto que
estivessem executando – enquanto eu vivera a morte por alegria.
Não fui ver a baleia que estava a bem
dizer à porta de minha casa a morrer. Morte, eu te odeio.
Enquanto isso as notícias misturadas com
lendas corriam pela cidade do Leme. Uns diziam que a baleia do Leblon
ainda não morrera mas que sua carne retalhada em vida era vendida
por quilos pois carne de baleia era ótimo de se comer, e era barato,
era isso que corria pela cidade do Leme. E eu pensei: maldito seja
aquele que a comerá por curiosidade, só perdoarei quem tem fome,
aquela fome antiga dos pobres.
Outros, no limiar do horror, contavam que
também a baleia do Leme, embora ainda viva e arfante, tinha seus
quilos cortados para serem vendidos. Como acreditar que não se
espera nem a morte para um ser comer outro ser? Não quero acreditar
que alguém desrespeite tanto a vida e a morte, nossa criação
humana, e que coma vorazmente, só por ser uma iguaria, aquilo que
ainda agoniza, só porque é mais barato, só porque a fome humana é
grande, só porque na verdade somos tão ferozes como um animal
feroz, só porque queremos comer daquela montanha de inocência que é
uma baleia, assim como comemos a inocência cantante de um pássaro.
Eu ia dizer agora com horror: a viver desse modo, prefiro a morte.
E exatamente não é verdade. Sou uma
feroz entre os ferozes seres humanos – nós, os macacos de nós
mesmos, nós, os macacos que idealizaram tornarem-se homens, e esta é
também a nossa grandeza. Nunca atingiremos em nós o ser humano: a
busca e o esforço serão permanentes. E quem atinge o quase
impossível estágio de Ser Humano, é justo que seja santificado.
Porque desistir de nossa animalidade é
um sacrifício.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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