O sol se deitou, o mar amansou um pouco e
as nuvens se dispersaram. A estrela da noite brilhou. Olhei o mar, o
céu, e pus-me a pensar... Amar assim alguma coisa, a ponto de tomar
a machadinha, cortar-se e sentir a dor... Mas guardei minha emoção.
— Mau sistema esse, Zorba! — disse eu
sorrindo. — faz-me lembrar uma história que consta da Lenda
Dourada. Um dia, um ermitão viu uma mulher a quem desejou. Então,
apanhou um machado...
— Imbecil! — interrompeu-me Zorba,
adivinhando o que eu ia dizer. — cortar logo isso! Que idiota! Isso
nunca foi obstáculo!
— Como não! — disse eu. — um
grande obstáculo, até!
— Obstáculo para quê?
— Obstáculo à sua entrada no reino
dos céus.
Zorba me olhou de lado, com um ar
brincalhão.
— Mas, que tolice — disse ele, —
isso é justamente a chave do paraíso!
Ergueu a cabeça e olhou-me com atenção,
querendo adivinhar minhas ideias sobre vida futura, reino dos céus,
mulheres e padres.
Mas pareceu não ter podido adivinhar
muito, pois balançou com circunspecção sua grande cabeça
grisalha.
— Os aleijados não entram no paraíso!
— disse ele, e se calou.
Fui deitar-me em minha cabina e peguei um
livro: Buda governava ainda meus pensamentos. Li o Diálogo de
Buda e o Pastor, que nos últimos tempos me enchia de paz e
segurança.
O Pastor — Minha refeição está
pronta, minhas ovelhas cuidadas. À porta de minha cabana está
passando o ferrolho, e meu fogo está aceso. E tu, céu, podes chover
quando quiseres!
Buda — não preciso mais nem de comida
nem de leite. Os ventos são meu teto, meu fogo se apagou. E tu céu,
podes chover quando quiseres!
O Pastor — tenho bois, tenho vacas,
tenho os pastos de meu pai, e um touro para cobrir minhas vacas. Eu
tu, céu, podes chover quanto quiseres!
Buda — não tenho bois nem vacas. Não
tenho pastos. Não tenho nada. Não tenho medo de nada. E tu, céu,
podes chover quanto quiseres!
O Pastor — tenho uma pastora dócil e
fiel. Há alguns anos ela é minha mulher, e sinto-me feliz em
brincar com ela à noite. E tu, céu, podes chover quando quiseres.
Buda — tenho uma alma dócil e livre.
Há alguns anos eu a exercito e ensino-lhe a brincar comigo. E tu,
céu, podes chover quando quiseres.
Essas duas vozes falavam ainda quando
veio o sono. O vento se tinha levantado de novo, e as ondas quebravam
sobre a escotilha de vidro grosso. Eu vagava como fumaça entre a
vigília e o sono. Uma violenta tempestade caiu, os prados
escureceram, os bois, as vacas e o touro foram tragados. O vento
arrancou o telhado da cabana e o fogo apagou-se. A mulher deu um
grito e caiu morta na lama. E o pastor começou a lamentar-se; ele
gritava, eu não entendia o que dizia, mas ele gritava; e eu
mergulhava cada vez mais no sono, deslizando como um peixe no mar.
Quando acordei, ao nascer do dia, a
grande ilha senhorial estendia-se à nossa direita, altiva e
selvagem. As montanhas, de uma rosa pálida, sorriam por trás da
bruma sob um sol de outono. Em torno de nós o mar, de um azul
brilhante, se agitava ainda inquieto.
Zorba, enrolado num coberto marrom,
olhava para Creta insaciavelmente. Seu olhar vagava da montanha para
a planície, depois costeava a praia, explorando-a como se todas
essas terras e mares lhe fossem familiares, e como se lhe fosse
agradável acariciá-los de novo em pensamento.
Aproximei-me dele e toquei seu ombro:
— Positivamente, não é esta a
primeira vez que você vem a Creta, Zorba! — disse-lhe. — você
olha para ela como se fosse uma velha amiga.
Zorba bocejou como quem se aborrece.
Senti que ele não estava disposto a iniciar uma conversa.
Sorri.
— Não quer conversa, Zorba?
— Não é que não queira, patrão —
disse ele. — mas me custa...
— Custa? Por quê?
Não respondeu logo. De novo passeou seu
olhar lentamente pelas praias. Ele havia dormido no tombadilho, e
seus cabelos grisalhos e crespos estavam úmidos de orvalho. Todas as
rugas profundas de suas faces, as do queixo e do pescoço, estavam
iluminadas até o fundo pelo sol que se erguia.
Enfim, os grossos lábios pendentes como
os de um bode se mexeram.
— De manhã demoro a abrir boca.
Custa-me muito, desculpe.
Ele se calou e, de novo, fixou seus
pequenos olhos redondos sobre Creta.
O sino soou, chamando para o café.
Rostos amassados, de um amarelo esverdeado, começaram a surgir das
cabinas. Mulheres de coques desfeitos se arrastavam, titubeantes, de
mesa em mesa.
Cheiravam a vômito e água-de-colônia,
e tinham o olhar vago, aterrorizado e imbecil.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego
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