Era assim: o que quiser que tenha, tinha.
Tinha arrebol? Tinha. Rouxinol? Tinha. Luar do sertão, palmeira
imperial, girassol, tinha. Também tinha temporal, barranco, às
vezes lamaçal, o diabo. Depois bananeira, até cachoeira, mutuca,
boto, urubu, horizonte, pedra, pau, trigo, joio, cactus, raios,
estrela cadente, incandescências. Enfim.
Bois, vacas, bezerros andavam misturados
(cerca não tinha) pelos alqueires. Ao todo éramos doze mil cabeças,
ou cento e vinte, ou doze milhões, não sei, éramos muitas cabeças
mas ninguém sabia o resultado do último censo. Um touro vivia
copulando à vista de todos, ao ar livre. Algumas leis havia sim. Não
podia apontar estrela, por exemplo, que dava verruga na ponta do
dedo. Se brincasse de vesgo, batia uma brisa e ficava vesgo para
sempre. Nem podia olhar mulher nua que nascia terçol. Mas essas leis
não eram muito temidas e andava cheio de gente estrábica com terçol
e verruga. As estações não se entendiam e a primavera jamais
floriu. O mato crescia irregular, aqui aos tufos, lá nenhum. Lá um
bezerrote mal podia nascer que já se-lhe coagulava de moscas o
umbigo. Então o rebanho partia, unguento no umbigo, procurando a
água mais próxima a muitas léguas. Marcha arrastada e áspera,
marcada a chocalho e queixada, marcha de rachar casco nos cascalhos.
Só chegavam no verão, que também chamam inverno porque chove
muito. Daí o açude transbordava, carregando todo mundo de volta
para casa ou para o outro lado. No inverno seguinte, ou verão, a
gente reconstruía a vida, aqueles tufos. Bois, vacas, um touro
copulando e a nova cria, que desta vez tudo correria bem melhor.
Solstício, equinócio, estiagem e toca a boiada a caminho das águas
logo ali longe.
Nesse vaivém sem chapéu, o sol alterava
o roteiro de muitas vidas. Gente ficava pela estrada, outros se
perdiam. Como raros andavam ferrados com seus sobrenomes, ninguém
mais sabia quem era de quem. Fazia sucesso a canção:
Ninguém é de ninguém
Na vida tudo passa
Ninguém é de ninguém
Até quem nos abraça
Nego aproveitava o embalo para roubar
mulher de nego. Era uma alegria. Uma irresponsabilidade. E como não
dava jeito de descornar toda a manada, saía briga com chifrada e
muita sangueira. Saía muita briga porque cada cabeça queria pensar
duma maneira diferente e assim não é possível. Para um único
assunto havia cento e vinte, doze mil, um milhão e duzentos
palpites, não poderia mesmo nunca dar certo.
Mas como ia dizendo, naquela transumância
se desfaziam famílias e se constituíam outras. Se inventavam
famílias como os bezerros Abá e Aurora que se apresentaram numa
enxurrada dessas. E com prazer se deixaram arrebatar pela corrente,
romperam comportas, dançaram o beguine, trocaram begônias e foram
pousar na pradaria onde se amaram sem pensar. Ao rebento chamaram
Boaventura, sem pensar tanto nas agruras da terra. Quando no seco,
cantavam pastorelas. Dançavam barcarolas nos aluviões. E todo ano
novo o colonião verdinho dava um otimismo de fazer mais filho:
Cáspite, Deodora, Eldorado e abecedário em frente, se possível até
o zênite das incelências. Nas entressafras, porém, Abá e Aurora
lastimavam-se um bocado. Junto ruminavam coisas como justiça,
abundância, mundo melhor, um mundo fundado no nada feito, mundo às
avessas do já mal feito, feitio de mundo que ninguém viu, essas
sandices que a gente só imagina quando não tem que furar poço e
cavucar atrás de raiz, toca boiada.
Pastorelas e barcarolas à parte, é
inútil fazer romance do que acontecia na fazenda. Não há poesia
com carrapatos. Sarna, piolhos, gusanos, piroplasmosis e toda espécie
de parasitas. O diabo é que aquela variedade de bactérias,
teoricamente mortais, habitava o organismo das reses em harmônica
simbiose. Não sei. Sei que no crucial do matadouro a bezerrada
berrava tanto, esperneava tanto, que daí se deduz que aquela vida,
tudo somado, era uma vida boa.
Podia ser boa e bonita. Mas dava
prejuízo. E tem mais: a indisciplina reinava, imperava o mal.
Campeavam as libertinagens. Elogiava-se a loucura. As hierarquias
eram revertidas, a higiene, o recato. Um quadro nada modelar.
Portanto já era tempo de impor a ordem à comunidade vacum.
Chico Buarque de Holanda, in Fazenda Modelo
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