No fim da tarde chegamos à nossa praia
arenosa. Uma areia branca muito fina, loureiros ainda floridos,
figueiras, outras árvores e, mais longe, à direita, uma pequena
montanha baixa e cinzenta, sem uma árvore, parecendo vagamente um
perfil feminino. E abaixo de seu queixo, sobre seu pescoço, estavam
os veios escuros da linhita.
Um vento de outono soprava, as nuvens
embrulhadas passavam lentamente e adoçavam as formas da terra
cobrindo-as de sombra. Outras subiam aos céus, ameaçadoras. O sol
cobria-se e descobria-se, e a terra iluminava-se ou escurecia-se como
uma face viva e perturbada.
Parei um instante sobre a areia e olhei.
A solidão se estendia diante de mim, triste e fascinante como o
deserto. O poema budista subiu do solo e insinuou-se dentro de meu
ser. “Quando enfim, retirar-me-ei à solidão, só, sem
companheiros, sem alegrias ou tristezas, apenas com a certeza
santificada de que tudo não é senão sonho? Quando, coberto apenas
de farrapos — sem desejos — poderei retirar-me alegremente para a
montanha? Quando, vendo que meu corpo não é senão doença e crime,
velhice e morte — livre, sem medo, cheio de alegria — poderei
retirar-me para a floresta? Quando? Quando? Quando?”
Zorba aproximou-se, santuri embaixo do
braço.
— Lá está a linhita! — disse-lhe
para esconder minha emoção. E estendi o braço em direção à
colina que parecia mulher.
Mas Zorba franziu a testa sem se voltar:
— Mais tarde, patrão; não chegou a
hora — disse ele. — Primeiro a terra precisa parar. Ele está
mexendo ainda, em nome do cão! A miserável mexe ainda, como a proa
de um barco. Vamos depressa para a aldeia.
E partiu a passos largos.
Dois moleques descalços, bronzeados como
pequenos felás, correram a pegar as malas. Um gordo guarda
alfandegário, de olhos azuis, fumava um narguilé no barracão que
fazia às vezes de alfândega. Ele nos espiou com o canto dos olhos,
escorregou um olhar madraço sobre as malas, e mexeu-se em sua
cadeira como para levantar-se. Mas, não teve coragem. Ergueu
lentamente o bocal de seu narguilé.
— Sejam bem-vindos! — disse ele num
tom sonolento.
Um dos moleques aproximou-se de mim.
Piscou os olhos negros, que mais pareciam azeitonas:
— Ele não é cretense! — disse. —
É um tolo!
— Os cretenses não são tolos, são?
— São sim... São sim... — respondeu
o pequeno cretense. — Mas, de outra maneira...
— A aldeia é longe?
— Que nada! Ao alcance de uma
espingarda! Veja, atrás dos jardins, naquela depressão do terreno.
Uma bela aldeia, patrão. Uma terra muito boa. Tem abóboras,
ervilhas, chicória, azeite e vinho. E mais além, na areia, crescem
os pepinos e melões mais precoces de Creta. É o vento da África
que os faz inchar. Deitando-se num canteiro você os poderá ouvir
estalar crr! Crr! Crescendo durante a noite.
Zorba ia à frente, andando um pouco de
lado. A cabeça ainda rodava.
— Coragem, Zorba! — gritei — nós
escaparemos desta, não tenha medo!
Andávamos depressa. O solo era uma
mistura de areia e conchas. De tempos em tempos, um tamarineiro, uma
figueira selvagem, uma moita de bambus, framboesas amargas. O tempo
ia piorando. As nuvens desciam cada vez mais, e o vento começava a
soprar.
Estávamos em frente a uma grande
figueira, com o tronco quase que partido, torturado, que demonstrava
nos espaços ocos sua idade. Um dos moleques parou. Com um movimento
do queixo apontou-me a velha árvore.
— A figueira da donzela! — disse ele.
Assustei-me. Em Creta, cada pedra, cada
árvore, tem a sua história trágica.
— Da donzela? Por quê?
— No tempo de meu avô, a filha de um
notável da aldeia apaixonou-se por um pastor. Seu pai não queria o
casamento; e a moça chorava e gritava, suplicando-lhe. Mas o velho
não mudava de ideia! E um dia os dois desapareceram, o pastor e a
moça. Saíram em busca deles, e por dias, e depois semanas, ninguém
os encontrou! Mas os cadáveres começaram e cheirar mal e então,
seguindo o mau cheiro, foram encontrá-los abraçados num buraco que
existe entre as raízes da figueira. Você entende, eles foram
descobertos pelo fedor.
O menino ria. E comecei a ouvir os
barulhos da aldeia: os cães se puseram a latir, mulheres
conversavam, os galos anunciavam a mudança do tempo. No ar flutuava
o cheiro de aguardente de uva que saía dos tachos onde se destilava
o raki.
— Lá está a aldeia! — gritavam os
moleques, tomando novo alento.
Uma vez contornada a duna de areia, a
pequena aldeia surgiu, subindo a encosta de uma suave elevação do
terreno. Casas baixas com terraços na cobertura, caiadas de branco,
coladas uma a outra; e as janelas eram como manchas pretas, fazendo
as casas parecerem crânios esbranquiçados incrustados na pedra.
Aproximei-me de Zorba.
— Presta atenção, Zorba! —
recomendei-lhe em voz baixa, porte-se bem agora, que vamos entrar na
aldeia. Eles não podem ter dúvidas sobre nós, Zorba! É preciso
que pareçamos sérios homens de negócios; eu o patrão e você o
contramestre. Os cretenses, você sabe, não perdem tempo. Desde que
eles veem alguém acham logo o ponto fraco e põe o apelido certo. E
nunca mais é possível livrar-se dele. Você fica como um
cachorrinho a quem se amarrou uma caçarola no rabo.
Zorba passou a mão no bigode e mergulho
em meditação.
— Olhe, patrão — disse enfim, — se
houver uma viúva nessas bandas, não há razão para medo. Se não
houver…
Nesse momento, à entrada da aldeia, uma
mendiga coberta de farrapos surgiu de mão estendida. Curtida pelo
sol, imunda, com um pequeno buço negro e espesso.
— Ei! Compadre! — gritou ela a Zorba.
— Ei! Compadre! Tens alma?
Zorba parou.
— Tenho sim — respondeu com
seriedade.
— Então me dá cinco dracmas!
Zorba tirou do bolso uma carteira de
couro, velha, quase desfeita.
— Tome! — disse ele.
E um sorriso abriu-se nos seus lábios
ainda amargos. Ele se virou.
— Pelo visto — disse, — não é
caro aqui: cinco dracmas por alma!
Os cães da aldeia precipitaram-se sobre
nós, as mulheres debruçaram-se dos terraços, as crianças
atrapalhavam-se a marcha num falatório sem fim. Umas gritavam,
outras imitavam a buzina de automóveis, outras nos ultrapassavam
para olhar-nos com grandes olhos extasiados.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego
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