Estudei em escolas públicas — públicas
mesmo. Todo mundo estudou: os tagarelas, os tímidos, os atarracados,
os varapaus, o futuro cientista eletrônico, o futuro policial que
certa noite viria a chutar um diabético até a morte ao confundi-lo
com um bêbado que precisava se acalmar um pouquinho; os pobres,
cheirando a lã suja, ao bebê urinoso que tinha ficado em casa e à
geleia geral; os mais ricos, com suas golas de pele puídas, anéis
de opala e papais que tinham carro (“Quê que o seu pai faz?”,
“Ele num trabaia, ele é motorista de ônibus.” Todos dão
risada). Lá estava ela — a Educação —, oferecida sem custo a
todos nós, uma grossa fatia da população americana em plena
depressão. Nós não estávamos deprimidos, é claro. Deixávamos
essa parte para os nossos pais, que se desdobravam para criar um
filho ou dois e caíam pelos cantos depois do trabalho e de jantares
frugais, sempre ao lado do rádio, para ouvir as notícias da “terra
natal” e de um homem de bigode preto chamado Hitler.
Acima de tudo, nós de fato nos sentíamos
americanos na agitada cidadezinha litorânea onde peguei, como se
fosse piolho, o ritmo dos meus primeiros dez anos de escola — um
grande e ruidoso balaio de gato de católicos irlandeses, judeus
alemães, suecos, negros, italianos e aquele raro e puro cocô do
navio Mayflower: alguém que fosse inglês. A essa
pobre tripulação de cidadãos mirins, as doutrinas da Liberdade e
Igualdade deveriam ser transmitidas por meio das escolas comunitárias
e gratuitas. Embora quase nos considerássemos bostonianos (o
aeroporto da cidade, com seus aviões e dirigíveis prateados que
pairavam tão belos, rosnava e reluzia do outro lado da baía), eram
os arranha-céus de Nova York os ícones colados nas paredes das
salas de aula; Nova York e a grande rainha verde que estendia uma
luminária como símbolo da liberdade.
Toda manhã, levando a mão ao coração,
prometíamos lealdade às Estrelas e Listras, uma espécie de toalha
de altar que ficava no alto da mesa do professor. E cantávamos as
letras carregadas de fumaça de pólvora e patriotismo que
acompanhavam melodias impensáveis, vacilantes, agudas. Uma nobre e
bela canção, “pelas grandezas das montanhas roxas acima da
planície fértil”, sempre levou às lágrimas a poeta em miniatura
que havia em mim. Naquela época eu não sabia dizer o que era a
planície fértil e o que era a grandeza da montanha, e confundia
Deus com George Washington (cuja expressão de vovozinha meiga também
nos iluminava do alto da parede da sala, entre persianas impecáveis
de caracóis brancos), mas mesmo assim gorjeava, ao lado dos meus
pequenos e catarrentos compatriotas: “América, América! Deus
derramou Sua graça sobre ti, e coroou teu povo com a fraternidade
que se estende pelo mar brilhante”.
Do mar sabíamos uma coisa ou outra.
Término de quase todas as ruas, contorcia, sacudia e arremessava de
seu cinza amorfo pratos de porcelana, macaquinhos de madeira,
delicadas conchas e sapatos de homens que tinham morrido. Ventos
salgados e úmidos varriam sem parar nossos parquinhos — aquelas
composições góticas de cascalho, macadame, granito e terra
remexida, maliciosamente projetadas para esfolar e polir os joelhos
mais tenros. Lá trocávamos cartas de baralho (só pelos desenhos no
verso) e histórias indecentes, pulávamos corda, brincávamos de
bola de gude e encenávamos as emoções do rádio e dos quadrinhos
da nossa época (“Quem conhece o mal que espreita no coração do
homem? O Sombra conhece… Ha ha ha!” ou “Olhem lá no céu! É
um pássaro? É um avião? Não, é o Super-Homem!”). Se estávamos
destinados a algum fim especial — marcados, condenados, limitados,
fadados —, não sabíamos. Sorríamos e saltávamos de nossas
carteiras para jogar queimada, tão abertos e tão confiantes quanto
o próprio mar.
Afinal, podíamos ser qualquer coisa. Se
trabalhássemos. Se nos dedicássemos aos estudos. Nosso sotaque,
nosso dinheiro e nossos pais não faziam diferença. Não havia
advogados que saíam da família do carroceiro de carvão e médicos
da lata do lixeiro? A educação era a resposta, e só Deus sabe como
ela havia chegado a nós. Invisível, suponho, no início — um
místico brilho infravermelho que saía das tabuadas, poemas
pavorosos que exaltavam o céu azul do mês de outubro, um mundo de
histórias que parecia começar e terminar com a Festa do Chá de
Boston, em que os peregrinos e os índios eram, como o eohippus,
pré-históricos.
Depois a obsessão da universidade
chegaria para nos dominar feito um vírus sutil e aterrorizante. Todo
mundo tinha que ir
a alguma universidade. Fosse um curso de administração, um
curso técnico, uma faculdade estadual, um curso de secretariado, uma
universidade da Ivy League, um curso de agronomia. Primeiro os
estudos, depois o trabalho. Quando nós (tanto o futuro policial
quanto o futuro gênio da tecnologia) chegamos como uma explosão ao
próspero segundo grau pós-guerra, orientadores vocacionais
trabalhavam em período integral para nos estimular, com frequência
cada vez maior, a discutir motivações, objetivos, assuntos
escolares, empregos — e universidades. Professores excelentes caíam
do céu como meteoros: professores de biologia exibiam cérebros
humanos, professores de inglês nos inspiravam com seu apego
ideológico por Tolstói e Platão, professores de arte nos conduziam
pelos guetos de Boston e depois nos devolviam ao cavalete para que
espalhássemos na tela a tinta guache da escola pública com
consciência social e raiva. A excentricidade, o risco que se corre
por ser especial demais, era negociada e afastada de nós como
o polegar que uma criança deixa de chupar.
A orientadora vocacional das meninas
diagnosticou meu problema logo de cara. Eu era perigosamente
intelectual, só isso. Sem a combinação adequada de atividades
extracurriculares, minha elevada e pura sucessão de notas dez
perigava me levar direto para o abismo. Cada vez mais as
universidades procuravam alunos versáteis. Àquela altura eu já
tinha estudado Maquiavel nas aulas de história moderna. Peguei a
deixa.
Mas, sem que eu soubesse, essa
orientadora vocacional tinha uma irmã gêmea idêntica de cabelos
brancos que eu sempre encontrava nos supermercados e no dentista. Com
essa gêmea eu me abria sobre meu leque de atividades que crescia sem
parar — coisas como comer gomos de laranja no alojamento dos jogos
de basquete femininos (eu havia sido selecionada para o time), pintar
Ferdinandos e Violetas gigantescos para os bailes da turma, fazer a
diagramação dos bonecos do jornalzinho da escola à meia-noite,
enquanto minha coeditora exausta lia as piadas no fim das colunas da
New Yorker. A expressão vazia e estranhamente emudecida da
gêmea da minha orientadora vocacional não me desencorajou, nem a
aparente amnésia de sua sósia pálida e eficiente que ficava na
sala da escola. Me tornei uma adepta adolescente e enfurecida do
pragmatismo.
“O uso é a verdade, e a verdade é o
uso”, devo ter resmungado, dobrando as meias soquete para ficar
igual às minhas colegas de escola. Não havia uniforme, mas havia
uniforme, sim — o corte de cabelo tigela, todo certinho, a saia com
blusa de malha, os loafers, cópias pioradas dos mocassins dos
indígenas. Chegamos até a fomentar, em nossa estrutura democrática,
duas relíquias milenares do esnobismo — duas irmandades:
Debutantes e Açúcar com Pimenta. No início de cada ano letivo, as
veteranas mandavam convites para as novas alunas — as bonitas, as
populares, as rivais em potencial. Uma semana de iniciação precedia
nossa adequação arrogante à famigerada Norma. Os professores eram
contra a semana de iniciação e os meninos tiravam sarro, mas
ninguém podia nos impedir.
Como acontecia com toda iniciada, me
atribuíram uma Irmã Mais Velha que transformou em rotina a missão
de destruir meu ego. Por uma semana inteira fui proibida de usar
maquiagem, tomar banho, pentear os cabelos, trocar de roupa ou falar
com os meninos. Quando amanhecia, eu ia a pé até a casa da minha
Irmã Mais Velha para fazer seu café da manhã e arrumar sua cama.
Depois, arrastando seus livros insuportavelmente pesados, além dos
meus próprios, eu a seguia feito um cachorro até a escola. No
caminho ela podia me mandar subir numa árvore e ficar pendurada num
galho até cair, ou fazer perguntas grosseiras aos passantes, ou sair
pelo comércio pedindo uvas podres e arroz mofado. Se eu sorrisse —
isto é, se mostrasse qualquer traço de ironia ante à minha
escravidão —, tinha de me ajoelhar na calçada e arrancar o
sorriso do rosto. No instante em que o sinal do fim das aulas tocava,
a Irmã Mais Velha assumia o controle. Quando anoitecia eu sentia dor
e cheirava mal; a tarefa de casa zunia dentro de um cérebro embotado
e zonzo. Estavam me moldando para ser Normal.
Sabe-se lá como, não funcionou — essa
iniciação ao nihil do pertencimento. Talvez eu fosse
estranha demais. O que essas representantes da feminilidade americana
escolhidas a dedo faziam em suas reuniões da irmandade? Comiam bolo;
comiam bolo e fofocavam sobre o encontro do sábado à noite. O
privilégio de ser alguém começava a mostrar a outra face — a
pressão de ser todo mundo; logo, ninguém.
Há pouco tempo espiei uma escola
primária americana pelo vidro lateral da fachada: carteiras de
tamanho infantil e mesas de madeira clara; fogões de brinquedo e
bebedouros minúsculos. Luz do sol por todo lado. Em um quarto de
século, a anarquia, o desconforto e a sujeira de que eu me lembrava
com tanta ternura tinham sido amansados. Uma das turmas havia passado
a manhã dentro de um ônibus para que os alunos aprendessem a pagar
a passagem e perguntar sobre as paradas. Ler (na minha época se
aprendia aos quatro anos com as caixas de sabão) se tornou uma arte
tão traumática e imprevisível que o indivíduo tem sorte se
conseguir dominá-la aos dez. Mas as crianças sorriam em seu pequeno
círculo. Será que cheguei a ver, no armário de primeiros socorros,
o reluzir dos frascos — calmantes e sedativos para o rebelde mirim,
o artista, o diferente?
Sylvia Plath, in Johnny Panic e a Bíblia de Sonhos e outros textos em prosa
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