Bentinho custou a se habituar à vida que
lhe impuseram os acontecimentos. Desde o dia do massacre de romeiros
que se operou na sua alma um transtorno completo. Fechava os olhos e
na mente corriam-lhe os fatos um a um, e nos seus ouvidos batiam os
tiros, os gemidos, as ladainhas. Os dias da viagem, a fome, a miséria
não tinham podido vencer na sua cabeça os pensamentos voltados para
a desgraça do povo. Só por um milagre puderam escapar. Lembrava-se
de sua mãe inteiramente alheia aos perigos, e, se não fosse ele,
obrigando-a a deitar-se na areia quente, teria a velha morrido. Na
manhã, após o tiroteio, o fogo das latadas pegara nas caatingas
como numa gigantesca queimada para roçado. Ainda de longe,
escondidos nos lajedos, podiam ver a fumaça que subia para os céus,
confundindo-se com as nuvens bem altas. Arrastaram-se como cobras até
chegar no meio da caatinga, e debaixo de um pé de umbu viu a mãe
abrir-se num pranto que lhe cortou o coração. Foi-lhe aquilo um
sofrimento maior que o das desgraças do tiroteio. Ali estava a sua
família inteira, o resto do seu povo, na velha magra, de boca
murcha, de olhos como uma mina de lágrimas que lhe banhavam as faces
enrugadas. E mesmo com o sol queimando, naquele dia desgraçado de
dezembro, dormiram ao abrigo do umbuzeiro. De muito longe ouvia-se
ainda um tiro ou outro, a encher de terror o sertão. Seria Aparício?
Seria Domício? Conseguiu Bentinho ligar os fatos e em sua cabeça a
realidade foi-se acentuando para que ele pudesse avaliar a situação.
Era um homem feito, era agora chefe de família. Teria que conduzir a
mãe ao destino indicado pelo irmão mais velho. Mas o que o espantou
foi ver Domício de rifle e de cartucheira no meio dos cabras de
Aparício, forte e desembaraçado, de olhos esfogueados de raiva,
igual ao irmão, uma fera como Aparício. O Domício dos cantos, das
tremuras de medo, das noites de suores frios, dos amores com mistério
da cabocla da furna, virava naquele homem que matava, num Aparício
com as fúrias do avô de Araticum. Da viagem com a mãe até chegar
à Roqueira, nem era bom lembrar-se mais. Terríveis dias de susto,
esfarrapados, sujos, com a fome que a caridade do povo matava com um
punhado de farinha e um taco de carne. Mas havia os que corriam
deles, os que os sacudiam para fora de suas terras, temendo os
castigos do céu porque os sabiam fugitivos, romeiros da Pedra
Bonita. A história do Santo corria o sertão e por toda a parte
aterrava. Os que nele acreditavam pediam notícia do acontecido. E
muitos choravam e tremiam só em ouvir a narrativa que ele fazia do
tiroteio. E diziam para Bentinho como se fossem eles que de lá
tivessem vindo: “Menino, tu não sabe de nada. Tu fugiste com medo
e não viste o que aconteceu. O Santo não morreu não. A tropa
gastou toda a bala, mas ele saiu com Aparício e foi para outro canto
juntar mais romeiros para o milagre. As balas do governo não puderam
com ele. Gente que está vindo do Ceará já vai dando notícia dele
para as bandas da Serra das Russas.”
Lembrava-se bem daquela conversa de uma
velha com a sua mãe numa estrada. Tinham parado, até que o sol
quebrasse por debaixo de um umbuzeiro. Foi quando apareceu uma velha
de cacete na mão e logo que os avistou saiu-se com pergunta:
— Mulher, tu não vem vindo da Pedra
Bonita?
E como a mãe lhe dissesse que sim, ela
os olhou com olhos de fúria para dizer:
— Resto de gente que não tiveste
coragem de morrer com o Santo. Eu te esconjuro.
Sinhá Josefina não se alterou e com voz
branda respondeu:
— Minha senhora, aqui estamos porque
Deus deixou. Carrego esta sina como castigo. E andando vou por este
mundo pela vontade do Alto.
E como não tivesse dado valor à raiva
da velha, esta abrandou-se e entrou a falar do Santo e dos seus
milagres. Ela sabia, com toda a certeza, que a terra do sertão se
cobriria de verde, que os riachos jamais secariam, que o leite das
vacas e das cabras sobrariam nas panelas dos pobres, que o povo nunca
mais passaria fome, quando o Santo enviado do mártir são Sebastião
desencantasse os mistérios, na Pedra lavada com o sangue dos
inocentes. Ela sabia que todos que vissem o Santo ressuscitariam para
o louvor final, para a festa maior de todos os tempos.
— O meu filho Anacleto, depois que foi
se perder em Jatobá, caiu no cangaço e anda no bando de Aparício,
e me disseram que Aparício carregou o Santo para o Ceará. Este
cabra tem desgraçado o sertão e botado a perder os filhos da gente.
Anacleto era um bom rapaz. Fez só aquela besteira em Jatobá. Podia
ter ido para o júri e lá o coronel Cazuza livrava ele. Mas não.
Foi para o desgraçado Aparício. Que mãe desnaturada teve de parir
este desinfeliz?
A velha Josefina permaneceu calada.
Bentinho quis adiantar alguma coisa, mas o olhar da mãe silenciou-o.
Mais tarde, quando ficaram a sós, saíram-lhe da boca palavras
amargas:
— Ouviste o que ela disse? A mãe de
Aparício só pode ser mesmo um ente infeliz. É, meu filho, a sina é
esta mesma. O teu pai sabia de tudo. O mal que Aparício vem fazendo
é mal de sangue venenoso. Todos nós temos que sofrer até o fim os
traçados do Alto.
Bentinho não lhe respondeu porque sabia
que o melhor era calar e deixar que o tempo pudesse curar as mágoas
e as queixas da mãe. Ele mesmo vacilava. Também, às vezes, se
punha a acreditar no peso daquele destino. Reagia, as lições do
padre Amâncio ajudavam-no. Outra vez, quase ao pôr do sol, bateram
à porta de uma casa, à beira da estrada. Pediram pousada para a
noite. Apareceu-lhes uma moça bonita, de cara triste. E mandou que
entrassem e lhes deu de comer. Vivia sozinha, e tanto olhou para
Bentinho que este não se conteve:
— Está me achando parecido com alguma
pessoa?
— É verdade. Nunca vi cara tão
parecida. Só sendo da mesma família.
E voltando-se para o outro lado perguntou
à velha:
— Estão chegando da Pedra Bonita?
— Sim, senhora. Estamos de rota batida
para as bandas de Tacaratu. Vamos à procura da fazenda do capitão
Custódio.
— Ah, eu conheço este homem. Mataram
um filho dele em Jatobá. E este rapaz é seu filho?
— Sim, senhora, é o meu filho mais
moço.
— Pois minha senhora, nunca vi homem se
parecer tanto com Aparício.
Bentinho estremeceu e a velha Josefina
não se alterou:
— Já me tinham falado isto.
A moça, porém, continuou:
— Conheci Aparício e isso já faz
cinco anos, numa festa daqui a duas léguas, na fazenda do major José
Soares. É bom fechar a porta.
E a moça correu para a porta da frente,
olhou para a estrada como se estivesse com medo que aparecesse alguém
e voltou:
— Aparício apareceu na fazenda com dez
cabras e foi uma desgraça. Havia moças donzelas e os homens que
estavam lá não tiveram tempo de se fazer nas armas. Aparício
entrou na sala e perguntou pela filha do dono da casa. A mocinha
correu para o quarto. Não queria vir e chorava alto, como menina
apanhando. Depois se chegou. E tremia como vara verde. O homem mandou
que o harmônico tocasse um xote e saiu com a menina se arrastando na
sala. Foi aí que se deu a desgraça. Juca Novais pulou do meio da
rapaziada e nem teve tempo de chegar perto dos dois. Um cabra deu-lhe
um tiro. O rapaz estendeu-se no chão. Parou a festa. O major José
Soares dirigiu-se para o cangaceiro pedindo misericórdia. Aparício
falou então e disse que não tinha vindo ali para acabar a festa. Os
seus cabras só queriam era uma dança e aquele cachorro
atravessou-se para morder. Agora ia tocar a dança para a frente.
Deixaram o morto no lugar onde tinha caído e arrastaram a gente para
o baile até de madrugada. Mas não fizeram mal a moça nenhuma. Ele
disse mesmo: “Major Soares, Aparício Vieira não chegou em sua
casa para fazer o papel de ‘mata-cachorro’.” Mas minha senhora,
ainda hoje tenho na cabeça a cara daquele homem. E era a cara deste
rapaz. Aqui eu moro com meu pai. Ele não tarda a chegar.
Um pouco mais apareceu o dono da casa, e
a filha contou que havia dado pousada àqueles dois retirantes. Era
gente que ia para a fazenda do capitão Custódio. O homem não disse
nada. Apenas foi conduzindo os retirantes para a casa de farinha. E
lá chegando foi lhes dizendo:
— A minha filha não regula bem. Desde
o dia do ataque de Aparício à fazenda do meu compadre Soares que
ela só fala no miserável do bandido. É o que sobra para sertanejo.
Quando não é a seca é o cangaceiro, é o soldado.
Deixou-os na casa de farinha, ao abrigo
da friagem da noite. Sinhá Josefina não abriu a boca para o menor
comentário. Foi Bentinho quem lhe falou:
— Mãe, ouviu a história da moça? Ela
me achou parecido com Aparício.
Mal terminou, apareceu a moça, trazendo
uma lamparina, duas esteiras e dois lençóis de algodãozinho.
Queria, porém, era falar de Aparício:
— Eles ficaram até de madrugada. O
defunto no meio da sala, numa poça de sangue. Foi quando a dona
Sinhá, mulher do major, mandou que parasse o harmônico e disse:
“Capitão Aparício, o senhor deve ter mãe viva?” O cangaceiro
olhou para ela e lhe respondeu: “Tenho, sim senhora, com a graça
de Deus.” “Pois pelo amor que tem à sua mãe, deixe que a gente
leve este cristão dali, morto como se fosse um cachorro, sem uma
vela, sem uma luz, para iluminar os seus passos no outro mundo.” E
quis se ajoelhar aos pés do cangaceiro. Aparício não deixou. Não
deu mais uma palavra. Não falou mais com ninguém. No pátio da casa
já havia o clarão do dia. Chorava todo mundo na casa do major. Vi
os cangaceiros, para mais de dez, e na frente deles Aparício. A
senhora pode ficar certa, é um homem bonito. Tem uns olhos grandes.
É um homem robusto, de cabelo preto, mais para alto. É a cara deste
rapaz. Homem bonito, minha senhora, homem bonito como nunca vi outro
na minha vida. Dancei com ele e não tive medo. Medo de quê?
Cangaceiro não é bicho. Homem bonito, minha senhora, de porte de
gente branca. Não olhei para os outros cabras.
Da casa partiu um grito:
— Vem para casa, Ester.
— É o meu pai. Fica danado quando eu
falo de Aparício, porque ele malda da minha falação.
E saiu. Sinhá Josefina e Bentinho
guardaram silêncio. Depois a mãe foi quem abriu a boca para mais um
desabafo:
— É isto mesmo. Aparício anda por aí
como se fosse mandado pelo demônio. Quando não mata, aleija. Deus
quer e Deus pode. Domício era outro homem, sabia eu que aquele
menino não se perderia assim. Mas que pode uma vontade de mãe? Pode
mais é a sina de cada um. Eu não quero te dizer nada, não quero
estar bulindo nos mandos do Alto. Sempre eu senti que Aparício tinha
vindo para pagar uma dívida. O teu pai não sentia as coisas. O teu
pai era como uma pedra de lajedo; no lugar que estava, ia ficando. Eu
sabia. Bentinho, eu sabia que o filho que vivia nas minhas entranhas
carregava as penas do teu povo. Nas noites de agonia, as dores do meu
ventre não me enganavam. Eram as dores da sina triste. Eu não quero
dizer nada, nada mais.
Bentinho escutava-a somente. Nisto
ouviram gritos na casa de perto. O homem levantava a voz para a
filha. Chegou até eles o choro da moça.
— Vem de Aparício — continuou sinhá
Josefina. — Vem tudo de Aparício.
No outro dia, levantaram-se com o clarear
das barras. O céu estava com nuvens escuras, carregado de chuva para
as bandas do norte. E ventava frio. Apareceu-lhes o homem chamando-os
para tomar café. E na mesa não apareceu a moça. O velho sentado no
batente da casa não dava uma palavra. Tinham que sair depressa. A
estrada para Roqueira marginava o Moxotó e já se avistavam os
contornos da serra que iriam subir. Retiraram-se depois dos
agradecimentos e tiveram receio de perguntar pela moça. Já iam na
estrada, e num grande bosque de oiticica viram uma pessoa correndo
para eles. Era a moça. Era a moça bonita. Estava de pés no chão e
trazia os cabelos soltos:
— Não falem, não gritem. O meu pai
não quis que eu aparecesse mais. Em toda a parte ele só vê gente
de Aparício. Mas eu queria ver outra vez a cara deste rapaz. Minha
senhora, ele é todo Aparício.
Os olhos da moça cintilavam. Eram olhos
negros na cara branca que nem parecia cara de sertaneja daquele sol.
Até fazia medo. Sinhá Josefina teve calma para lhe agradecer:
— Deus do céu vos proteja, minha
filha. Muito temos que andar.
A moça calou-se e os olhos pretos
fixaram-se em Bentinho, arregalaram-se na procura de qualquer coisa
perdida. Os cabelos vinham-lhe à cintura e no aconchego das árvores
frondosas ela foi se aproximando cada vez mais dos dois para lhes
dizer baixinho, em tom de segredo:
— Vou parir de Aparício.
E correu de estrada afora, como se fosse
fugindo de um bicho do mato.
José Lins do Rego, in Cangaceiros
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