quarta-feira, 3 de março de 2021

A mãe dos cangaceiros / 3

          Bentinho custou a se habituar à vida que lhe impuseram os acontecimentos. Desde o dia do massacre de romeiros que se operou na sua alma um transtorno completo. Fechava os olhos e na mente corriam-lhe os fatos um a um, e nos seus ouvidos batiam os tiros, os gemidos, as ladainhas. Os dias da viagem, a fome, a miséria não tinham podido vencer na sua cabeça os pensamentos voltados para a desgraça do povo. Só por um milagre puderam escapar. Lembrava-se de sua mãe inteiramente alheia aos perigos, e, se não fosse ele, obrigando-a a deitar-se na areia quente, teria a velha morrido. Na manhã, após o tiroteio, o fogo das latadas pegara nas caatingas como numa gigantesca queimada para roçado. Ainda de longe, escondidos nos lajedos, podiam ver a fumaça que subia para os céus, confundindo-se com as nuvens bem altas. Arrastaram-se como cobras até chegar no meio da caatinga, e debaixo de um pé de umbu viu a mãe abrir-se num pranto que lhe cortou o coração. Foi-lhe aquilo um sofrimento maior que o das desgraças do tiroteio. Ali estava a sua família inteira, o resto do seu povo, na velha magra, de boca murcha, de olhos como uma mina de lágrimas que lhe banhavam as faces enrugadas. E mesmo com o sol queimando, naquele dia desgraçado de dezembro, dormiram ao abrigo do umbuzeiro. De muito longe ouvia-se ainda um tiro ou outro, a encher de terror o sertão. Seria Aparício? Seria Domício? Conseguiu Bentinho ligar os fatos e em sua cabeça a realidade foi-se acentuando para que ele pudesse avaliar a situação. Era um homem feito, era agora chefe de família. Teria que conduzir a mãe ao destino indicado pelo irmão mais velho. Mas o que o espantou foi ver Domício de rifle e de cartucheira no meio dos cabras de Aparício, forte e desembaraçado, de olhos esfogueados de raiva, igual ao irmão, uma fera como Aparício. O Domício dos cantos, das tremuras de medo, das noites de suores frios, dos amores com mistério da cabocla da furna, virava naquele homem que matava, num Aparício com as fúrias do avô de Araticum. Da viagem com a mãe até chegar à Roqueira, nem era bom lembrar-se mais. Terríveis dias de susto, esfarrapados, sujos, com a fome que a caridade do povo matava com um punhado de farinha e um taco de carne. Mas havia os que corriam deles, os que os sacudiam para fora de suas terras, temendo os castigos do céu porque os sabiam fugitivos, romeiros da Pedra Bonita. A história do Santo corria o sertão e por toda a parte aterrava. Os que nele acreditavam pediam notícia do acontecido. E muitos choravam e tremiam só em ouvir a narrativa que ele fazia do tiroteio. E diziam para Bentinho como se fossem eles que de lá tivessem vindo: “Menino, tu não sabe de nada. Tu fugiste com medo e não viste o que aconteceu. O Santo não morreu não. A tropa gastou toda a bala, mas ele saiu com Aparício e foi para outro canto juntar mais romeiros para o milagre. As balas do governo não puderam com ele. Gente que está vindo do Ceará já vai dando notícia dele para as bandas da Serra das Russas.”
Lembrava-se bem daquela conversa de uma velha com a sua mãe numa estrada. Tinham parado, até que o sol quebrasse por debaixo de um umbuzeiro. Foi quando apareceu uma velha de cacete na mão e logo que os avistou saiu-se com pergunta:
Mulher, tu não vem vindo da Pedra Bonita?
E como a mãe lhe dissesse que sim, ela os olhou com olhos de fúria para dizer:
Resto de gente que não tiveste coragem de morrer com o Santo. Eu te esconjuro.
Sinhá Josefina não se alterou e com voz branda respondeu:
Minha senhora, aqui estamos porque Deus deixou. Carrego esta sina como castigo. E andando vou por este mundo pela vontade do Alto.
E como não tivesse dado valor à raiva da velha, esta abrandou-se e entrou a falar do Santo e dos seus milagres. Ela sabia, com toda a certeza, que a terra do sertão se cobriria de verde, que os riachos jamais secariam, que o leite das vacas e das cabras sobrariam nas panelas dos pobres, que o povo nunca mais passaria fome, quando o Santo enviado do mártir são Sebastião desencantasse os mistérios, na Pedra lavada com o sangue dos inocentes. Ela sabia que todos que vissem o Santo ressuscitariam para o louvor final, para a festa maior de todos os tempos.
O meu filho Anacleto, depois que foi se perder em Jatobá, caiu no cangaço e anda no bando de Aparício, e me disseram que Aparício carregou o Santo para o Ceará. Este cabra tem desgraçado o sertão e botado a perder os filhos da gente. Anacleto era um bom rapaz. Fez só aquela besteira em Jatobá. Podia ter ido para o júri e lá o coronel Cazuza livrava ele. Mas não. Foi para o desgraçado Aparício. Que mãe desnaturada teve de parir este desinfeliz?
A velha Josefina permaneceu calada. Bentinho quis adiantar alguma coisa, mas o olhar da mãe silenciou-o. Mais tarde, quando ficaram a sós, saíram-lhe da boca palavras amargas:
Ouviste o que ela disse? A mãe de Aparício só pode ser mesmo um ente infeliz. É, meu filho, a sina é esta mesma. O teu pai sabia de tudo. O mal que Aparício vem fazendo é mal de sangue venenoso. Todos nós temos que sofrer até o fim os traçados do Alto.
Bentinho não lhe respondeu porque sabia que o melhor era calar e deixar que o tempo pudesse curar as mágoas e as queixas da mãe. Ele mesmo vacilava. Também, às vezes, se punha a acreditar no peso daquele destino. Reagia, as lições do padre Amâncio ajudavam-no. Outra vez, quase ao pôr do sol, bateram à porta de uma casa, à beira da estrada. Pediram pousada para a noite. Apareceu-lhes uma moça bonita, de cara triste. E mandou que entrassem e lhes deu de comer. Vivia sozinha, e tanto olhou para Bentinho que este não se conteve:
Está me achando parecido com alguma pessoa?
É verdade. Nunca vi cara tão parecida. Só sendo da mesma família.
E voltando-se para o outro lado perguntou à velha:
Estão chegando da Pedra Bonita?
Sim, senhora. Estamos de rota batida para as bandas de Tacaratu. Vamos à procura da fazenda do capitão Custódio.
Ah, eu conheço este homem. Mataram um filho dele em Jatobá. E este rapaz é seu filho?
Sim, senhora, é o meu filho mais moço.
Pois minha senhora, nunca vi homem se parecer tanto com Aparício.
Bentinho estremeceu e a velha Josefina não se alterou:
Já me tinham falado isto.
A moça, porém, continuou:
Conheci Aparício e isso já faz cinco anos, numa festa daqui a duas léguas, na fazenda do major José Soares. É bom fechar a porta.
E a moça correu para a porta da frente, olhou para a estrada como se estivesse com medo que aparecesse alguém e voltou:
Aparício apareceu na fazenda com dez cabras e foi uma desgraça. Havia moças donzelas e os homens que estavam lá não tiveram tempo de se fazer nas armas. Aparício entrou na sala e perguntou pela filha do dono da casa. A mocinha correu para o quarto. Não queria vir e chorava alto, como menina apanhando. Depois se chegou. E tremia como vara verde. O homem mandou que o harmônico tocasse um xote e saiu com a menina se arrastando na sala. Foi aí que se deu a desgraça. Juca Novais pulou do meio da rapaziada e nem teve tempo de chegar perto dos dois. Um cabra deu-lhe um tiro. O rapaz estendeu-se no chão. Parou a festa. O major José Soares dirigiu-se para o cangaceiro pedindo misericórdia. Aparício falou então e disse que não tinha vindo ali para acabar a festa. Os seus cabras só queriam era uma dança e aquele cachorro atravessou-se para morder. Agora ia tocar a dança para a frente. Deixaram o morto no lugar onde tinha caído e arrastaram a gente para o baile até de madrugada. Mas não fizeram mal a moça nenhuma. Ele disse mesmo: “Major Soares, Aparício Vieira não chegou em sua casa para fazer o papel de ‘mata-cachorro’.” Mas minha senhora, ainda hoje tenho na cabeça a cara daquele homem. E era a cara deste rapaz. Aqui eu moro com meu pai. Ele não tarda a chegar.
Um pouco mais apareceu o dono da casa, e a filha contou que havia dado pousada àqueles dois retirantes. Era gente que ia para a fazenda do capitão Custódio. O homem não disse nada. Apenas foi conduzindo os retirantes para a casa de farinha. E lá chegando foi lhes dizendo:
A minha filha não regula bem. Desde o dia do ataque de Aparício à fazenda do meu compadre Soares que ela só fala no miserável do bandido. É o que sobra para sertanejo. Quando não é a seca é o cangaceiro, é o soldado.
Deixou-os na casa de farinha, ao abrigo da friagem da noite. Sinhá Josefina não abriu a boca para o menor comentário. Foi Bentinho quem lhe falou:
Mãe, ouviu a história da moça? Ela me achou parecido com Aparício.
Mal terminou, apareceu a moça, trazendo uma lamparina, duas esteiras e dois lençóis de algodãozinho. Queria, porém, era falar de Aparício:
Eles ficaram até de madrugada. O defunto no meio da sala, numa poça de sangue. Foi quando a dona Sinhá, mulher do major, mandou que parasse o harmônico e disse: “Capitão Aparício, o senhor deve ter mãe viva?” O cangaceiro olhou para ela e lhe respondeu: “Tenho, sim senhora, com a graça de Deus.” “Pois pelo amor que tem à sua mãe, deixe que a gente leve este cristão dali, morto como se fosse um cachorro, sem uma vela, sem uma luz, para iluminar os seus passos no outro mundo.” E quis se ajoelhar aos pés do cangaceiro. Aparício não deixou. Não deu mais uma palavra. Não falou mais com ninguém. No pátio da casa já havia o clarão do dia. Chorava todo mundo na casa do major. Vi os cangaceiros, para mais de dez, e na frente deles Aparício. A senhora pode ficar certa, é um homem bonito. Tem uns olhos grandes. É um homem robusto, de cabelo preto, mais para alto. É a cara deste rapaz. Homem bonito, minha senhora, homem bonito como nunca vi outro na minha vida. Dancei com ele e não tive medo. Medo de quê? Cangaceiro não é bicho. Homem bonito, minha senhora, de porte de gente branca. Não olhei para os outros cabras.
Da casa partiu um grito:
Vem para casa, Ester.
É o meu pai. Fica danado quando eu falo de Aparício, porque ele malda da minha falação.
E saiu. Sinhá Josefina e Bentinho guardaram silêncio. Depois a mãe foi quem abriu a boca para mais um desabafo:
É isto mesmo. Aparício anda por aí como se fosse mandado pelo demônio. Quando não mata, aleija. Deus quer e Deus pode. Domício era outro homem, sabia eu que aquele menino não se perderia assim. Mas que pode uma vontade de mãe? Pode mais é a sina de cada um. Eu não quero te dizer nada, não quero estar bulindo nos mandos do Alto. Sempre eu senti que Aparício tinha vindo para pagar uma dívida. O teu pai não sentia as coisas. O teu pai era como uma pedra de lajedo; no lugar que estava, ia ficando. Eu sabia. Bentinho, eu sabia que o filho que vivia nas minhas entranhas carregava as penas do teu povo. Nas noites de agonia, as dores do meu ventre não me enganavam. Eram as dores da sina triste. Eu não quero dizer nada, nada mais.
Bentinho escutava-a somente. Nisto ouviram gritos na casa de perto. O homem levantava a voz para a filha. Chegou até eles o choro da moça.
Vem de Aparício — continuou sinhá Josefina. — Vem tudo de Aparício.
No outro dia, levantaram-se com o clarear das barras. O céu estava com nuvens escuras, carregado de chuva para as bandas do norte. E ventava frio. Apareceu-lhes o homem chamando-os para tomar café. E na mesa não apareceu a moça. O velho sentado no batente da casa não dava uma palavra. Tinham que sair depressa. A estrada para Roqueira marginava o Moxotó e já se avistavam os contornos da serra que iriam subir. Retiraram-se depois dos agradecimentos e tiveram receio de perguntar pela moça. Já iam na estrada, e num grande bosque de oiticica viram uma pessoa correndo para eles. Era a moça. Era a moça bonita. Estava de pés no chão e trazia os cabelos soltos:
Não falem, não gritem. O meu pai não quis que eu aparecesse mais. Em toda a parte ele só vê gente de Aparício. Mas eu queria ver outra vez a cara deste rapaz. Minha senhora, ele é todo Aparício.
Os olhos da moça cintilavam. Eram olhos negros na cara branca que nem parecia cara de sertaneja daquele sol. Até fazia medo. Sinhá Josefina teve calma para lhe agradecer:
Deus do céu vos proteja, minha filha. Muito temos que andar.
A moça calou-se e os olhos pretos fixaram-se em Bentinho, arregalaram-se na procura de qualquer coisa perdida. Os cabelos vinham-lhe à cintura e no aconchego das árvores frondosas ela foi se aproximando cada vez mais dos dois para lhes dizer baixinho, em tom de segredo:
Vou parir de Aparício.
E correu de estrada afora, como se fosse fugindo de um bicho do mato.

José Lins do Rego, in Cangaceiros

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