Ninguém desfez a mala que Donana havia
passado a arrumar diariamente nos últimos meses de sua vida. Já
conhecíamos cada peça de roupa, cada objeto, de tanto observá-la
retirando e pondo tudo de novo na canastra, num ritual que se tornou
permanente. Minha mãe sugeriu que algum passante e sua família, em
busca de trabalho e necessitado de roupas, recebesse a mala por
inteiro de dádiva. Mas meu pai não teve coragem de dar as coisas
que pertenciam a Donana, e minha mãe não tocou mais no assunto.
Ninguém também falava na faca de cabo de marfim, nem sabíamos do
seu paradeiro, nem o porquê de tanto mistério em volta da sua
existência. Até a morte de Donana, não sabia por que a lâmina
estava enrolada naquele tecido com nódoas de sangue, nem mesmo por
que um objeto bonito, com um cabo branco perolado, que meu pai, com a
sabedoria de suas andanças, julgava ser marfim, não havia sido
vendido diante da escassez em que vivíamos.
Meu pai passaria longo tempo em luto. As
festividades que conduzia para os encantados em nossa casa foram
suspensas. Continuou atendendo aos que chegavam carregando aflições,
querendo um alento, uma reza, um remédio de raiz para curar seus
males. Zeca Chapéu Grande guardava luto fechado nos gestos, porque
não era hábito vestir preto na servidão de nossas vidas; tinha os
olhos marejados, falava muito pouco naqueles dias. Só não deixou de
caminhar para a roça, como sempre fazia.
Algumas semanas depois do enterro, vi
minha mãe empalidecer à porta de casa com a visão que tinha da
estrada. Cheguei ao umbral e me coloquei ao seu lado. Belonísia e
Domingas corriam no terreiro com Fusco, o cão perneta, que
havia voltado a ser apenas cão em nossas brincadeiras. Vi minha mãe
exclamar uma misericórdia. Belonísia, Domingas e Fusco
também pararam para olhar para a estrada, alertados pelos urros que
escutávamos. Um homem trazia uma mulher amarrada por corda, os dois
acompanhados por outra mulher. Ainda estavam distantes, mas era
possível ver o grande esforço que faziam para avançar pelo chão
de terra. A mulher gritava os clamores mais ameaçadores e incômodos
que eu já tinha ouvido.
“E não é Crispiniana quem vem ali? Ou
é Crispina?”, perguntou minha mãe, se referindo às gêmeas,
filhas de Saturnino, nossos vizinhos em Água Negra. Ele vinha à
frente da filha amarrada com corda, enlouquecida, gritando coisas que
ecoavam por céu e terra e não conseguíamos compreender. Uma das
duas, ou Crispina ou Crispiniana, vinha atrás, auxiliando o pai na
jornada, segurando a irmã, certamente se machucando com os golpes do
corpo selvagem da transtornada que estava envolta em um laço, como
um animal, com uma volta e nós nos braços, outra volta amarrando os
punhos. Os pés descalços, o cabelo armado no alto da cabeça, sem o
lenço que costumava usar.
Salustiana perguntou por Zezé – “está
com o pai”, respondeu Domingas – “então vá você” disse,
“vá você e Belonísia chamar seu pai. Diga que compadre Saturnino
chegou com as filhas, é coisa para ele”. Vi minhas irmãs se
afastarem em direção à roça, enquanto me aproximei mais do corpo
forte de minha mãe. Ela suava como o sereno da madrugada. Dali,
víamos os olhos vermelhos, o rosto contorcido, a enorme quantidade
de saliva como espuma que saía da boca da mulher. Toda aquela cena
me deixava com um misto de curiosidade e medo. Com a família cada
vez mais perto, minha mãe perguntou o que havia acontecido, qual das
duas moças estava amarrada. O compadre parecia cansado, esgotado de
levar a filha do rio Santo Antônio ao rio Utinga, e respondeu,
tirando o chapéu em reverência: “É Crispina.”
“Ah, então vocês encontraram?”,
ouvi minha mãe perguntar com a voz trêmula.
“Estava no cemitério da cidade,
deitada, escondida”, disse Saturnino entrando no terreiro da nossa
casa.
De fato, há uma semana o pai, irmãos,
dentre eles Crispiniana, estavam à procura de Crispina. A família
havia sido acolhida na fazenda há muitos anos. Saturnino, Damião e
meu pai foram os pioneiros a chegar para trabalhar em Água Negra.
Crispina e Crispiniana eram as únicas gêmeas do povoado e as
primeiras que me lembro de ter tido contato. Era algo misterioso
olhar para as duas mulheres jovens, recém-saídas da adolescência.
Espelho não era coisa comum por ali. Havia o pedaço de espelho de
Donana, que podíamos admirar de vez em quando, enquanto desarrumava
e arrumava sua mala naquela rotina instituída na sua caduquice. Mas
espelho mesmo, acessível para nos observarmos, era apenas o espelho
d’água dos rios com seu líquido escuro e ferruginoso, onde nos
víamos negras num espelho também negro, talvez criado exatamente
para nos descobrirmos. Do espelho cintilante da faca de cabo de
marfim também não esquecia, afinal, nele havia vislumbrado nossos
rostos para num átimo ver a lâmina inflexível fazer cair uma
língua com os sons que poderiam ser produzidos por ela. Crispina e
Crispiniana caminhavam juntas, lado a lado, como um duplo da outra.
Como um espelho com profundidade, comprimento e altura, mas sem as
bordas quebradas como o que pertenceu a Donana, ou as margens de
areia e mata que emolduravam nossa imagem nas águas do rio.
Ao se aproximarem da porta de nossa casa,
Crispina tombou no chão. Estava suja, tinha um cheiro ruim de suor,
urina e flores mortas. Vi o horror se instaurar nos olhos de minha
mãe. Não era a primeira, nem segunda, nem terceira vez que chegava
alguém desvairado. E certamente não seria a última que se
internaria em nossa casa, como diziam que faziam num hospital da
capital para os que enlouqueciam. Não eram hóspedes, visitas ou
convidados. Eram pessoas desconectadas de seu eu, desconhecidas de
parentes e de si. Eram pessoas com encosto ruim, conhecidos e também
desconhecidos de todos. Eram famílias que depositavam suas
esperanças nos poderes de Zeca Chapéu Grande, curador de jarê, que
vivia para restituir a saúde do corpo e do espírito aos que
necessitavam. Desde cedo, havíamos precisado conviver com essa face
mágica de nosso pai. Era um pai igual aos outros pais que
conhecíamos, mas que tinha sua paternidade ampliada aos aflitos,
doentes, necessitados de remédios que não havia nos hospitais, e da
sabedoria que não havia nos médicos ausentes daquela terra. Ao
mesmo tempo que me orgulhava da deferência que lhe dedicavam, sofria
por ter que dividir a casa com visitas nada discretas, gritando suas
dores, seus desconhecimentos, impregnando-a com o cheiro de velas e
incensos, com as cores das garrafas de remédios de raízes, com
pessoas boas ou ruins, humildes ou inconvenientes, que se instalavam
por semanas no nosso pequeno lar. Minha mãe era a que mais sofria,
porque precisava permanecer em casa, atenta aos horários dos
remédios, acompanhando os parentes que também se acomodavam com o
doente – era uma condição para a “internação” – no
intuito de auxiliar nos cuidados aos perturbados.
A ordem delicada da vida havia sido
rompida, o que se refletia no desequilíbrio de todos, inclusive de
nós, crianças, que passávamos a ter medo das sombras da moradia
iluminada por candeeiros e velas durante a noite. Evitávamos dormir
sozinhas e ficávamos amontoadas para nos protegermos dos espaventos
que vinham por vezes durante a madrugada, com um grito rouco ou com a
sensação de um sutil tremor de terra, que acreditávamos serem
causados pelas forças contrárias dos internos.
Vislumbrar Crispina no chão, aos nossos
pés, com olhos cor de fogo, cabelos crespos enredados em pétalas de
flores e folhas secas – algumas guardando a reminiscência da cor e
certamente de algum perfume que tivera no auge do seu viço – com a
boca branca minando saliva, e o odor nauseante que exalava de seu
corpo ao lado da irmã Crispiniana, foi experimentar de novo a
sensação de infortúnio que nos devastou no dia em que retiramos a
faca da mala e, querendo experimentar a beleza de um brilho
misterioso e proibido, a colocamos na boca, completamente libertas
como se fosse possível, sem experimentar os interditos das crenças
de nossos pais e vizinhos, ou sem, ainda, compreender a dominação
que nos fazia trabalhadores cativos da fazenda. Foi como se o espelho
de minha avó, que continuava em sua mala debaixo da cama, coberta
por grossa camada de terra, tivesse perdido mais um pedaço, e só
pudéssemos ver àquela distância parte de nós mesmos. Talvez por
estar tão impressionada, Crispina tenha segurado meu pé com tamanha
força que me derrubou ao chão sem que minha mãe conseguisse evitar
a queda, e o choro que brotou de meu rosto guardava a impressão
daquela visão que remetia a algo muito recente em nossas vidas.
Saturnino, impaciente, desferiu um tapa
sonoro na cara da filha, que não reagiu, ao mesmo tempo que
Crispiniana, que testemunhava o ato, levava a mão ao rosto como se o
golpe do pai tivesse sido em sua própria face.
Enquanto chorava, avistei Belonísia e
Domingas saindo da vereda que levava à roça. Não demorou para meu
pai chegar carregando sua sacola e enxada. Zeca Chapéu Grande era
diferente de nós, que não sabíamos lidar com eventos daquela
natureza. Agia com grande afeição diante das dificuldades mais
díspares que nos chegavam à porta. De imediato, ordenou que
Saturnino desamarrasse a filha, que o fez sem questionar ou temer,
como parecia minutos antes. Ajudou a moça se levantar. Vi que dos
lábios grossos e antigos de meu pai saíam as rezas que nos remetiam
à segurança da magia que lhe creditavam. Ele pediu que minha mãe e
Crispiniana a levassem para tomar um banho, enquanto Belonísia e
Domingas se postaram ao meu lado. Seguiu para o quarto dos santos,
estendeu uma esteira de palha, colocou um banco de assento de couro
velho ao lado.
Acendeu uma vela e a atenção de todos
que estavam por perto se voltou para o lume; se permanecesse acesa,
Crispina, agora perturbada, poderia ficar; se a chama não resistisse
à energia da atmosfera, se apagando, era porque não havia remédio.
Itamar Vieira Júnior, in Torto Arado
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