domingo, 14 de fevereiro de 2021

Sonhos dos bons meninos

          Ao erguer os olhos do livro, o olhar da mãe vinha vestido com novo luar — eu invejava. Em cada página virada ela se remoçava, afagada pelas viagens, amores, incômodos. O livro aberto era seu berço e seu barco, em suas páginas ela se transmutava. Eu suspeitava que o embaraço das letras amarrava segredos que só o coração decifra. Mas uma certeza me vigiava: ler era meu único sonho viável.
Sobre os dias, a ausência da mãe ganhava corpo. O tempo — capaz de trocar a roupa do mundo — não consumia sua lembrança. Quando se ama, em cada dia o morto nasce mais. Em tudo, sua ausência estava presente. Sobre a fruteira da mesa da sala de jantar, na janela em que se debruçava nas tardes, na gota de água que pingava da torneira, no anil que clareava os lençóis, ela se anunciava. No silêncio obrigatório para bem escutar os pássaros, ela se emanava.
Por ouvir dizer, havia um céu por onde voavam anjos vestidos de seda e música, povoando um azul mais longe. Leves — como se de algodão ou arminho — sopravam uma cantiga mansa que o vento varria para os sonhos dos bons meninos. Mas meus ouvidos não ouviam e meus olhos menos viam as legiões celestes. Onde o céu? — eu indagava em contínua ansiedade.
Tarde — com ranço de uma infância desamada — eu amei pela primeira vez. Desarmado, comia o tomate ainda com a colher. O amor da mãe que se fora transbordava, ou melhor, derramava da memória. Foi um amor imenso, sem escolha, autoritário. Meu coração escolheu sem me auscultar. E o amor instalou-se, repentino como o susto. Faltava-me garfo para lutar contra a paixão, e amei com desregradas medidas.
Passarinho não canta, passarinho lastima — minha irmã repetia. Diante da demasiada liberdade seu canto vira pranto — ela teimava. Liberdade, quando abusiva, mais amedronta — ela completava. Ter um céu inteiro por caminho espanta até as asas. Todo pássaro faz um desnorteio ao voar — ela anunciava. O medo interrompe a liberdade, mesmo no coração dos pássaros. A irmã carregava os olhos secos, as mãos cruzadas sobre o coração e raramente se debruçava na janela. As pedras mais antigas, que engravidam a terra, invejariam seu deserto.
Agora — mas desde sempre — não moro bem dentro do meu corpo, daí, acreditar em alma de outro mundo. Não sou o do espelho. Certa estranheza me incomoda. O desconforto solicita-me liquidar o imóvel. Sempre sou um outro morando em mim. Vivo em uma casa geminada. Intruso, pareço inquilino em vias de despejo. Não abro janelas ou destranco portas. Mantenho as luzes apagadas sem anunciar-me aos vizinhos. Pelas frestas pressinto sussurros. Meu espelho não me reflete. Não identifico se há excesso ou escassez de luares. Ignoro a fronteira entre lucidez e loucura.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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