segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Prefácio - Meus Professores

          Era um dia de tormenta no outono de 1939. Fora, nas ruas ao redor do edifício de apartamentos, as folhas caíam e formavam pequenos redemoinhos, cada uma com vida própria. Era agradável estar dentro de casa, a salvo e quente, enquanto minha mãe preparava o jantar na cozinha ao lado. Em nosso apartamento não havia meninos maiores que implicassem com os menores sem motivo. Precisamente, na semana anterior me havia visto envolto em uma briga... não recordo, depois de tantos anos, com quem; possivelmente fora com o Snoony Ágata, do terceiro piso... e, depois de um violento golpe, meu punho atravessou o cristal da vitrine da farmácia do Schechter.
O senhor Schechter se mostrou solícito: “Não se preocupe, tenho seguro”, disse enquanto me lubrificava o pulso com um antisséptico incrivelmente doloroso. Minha mãe me levou a médico, que tinha a consulta na planta baixa de nosso bloco. Com umas pinças extraiu um fragmento de vidro e, provido de agulha e linha, aplicou-me dois pontos.
Dois pontos!”, tinha repetido meu pai de noite. Sabia de pontos porque era cortador na indústria da confecção; seu trabalho consistia em cortar com uma temível serra elétrica moldes — as costas, por exemplo, ou mangas para casacos e trajes de senhora— de um montão de tecido. Continuando, umas intermináveis fileiras de mulheres sentadas diante de máquinas de costurar. Agradava-lhe que me tivesse zangado tanto para vencer minha natural timidez. Às vezes é bom devolver o golpe. Eu não tinha pensado exercer nenhuma violência. Simplesmente ocorreu assim. Snoony me empurrou e, no momento seguinte, meu punho atravessou a vitrine do senhor Schechter. Eu me tinha lesado a pulso, tinha gerado um gasto médico inesperado, tinha quebrado uma vitrine de vidro laminado e ninguém se zangou comigo. Quanto ao Snoony, estava mais simpático que nunca.
Tentei elucidar qual era a lição de tudo aquilo. Mas era muito mais agradável tentar descobri-lo no calor do apartamento, olhando através da janela da sala a baía de Nova Iorque, que me arriscar a um novo contratempo nas ruas. Minha mãe se trocou de roupa e maquiado como estava acostumado a fazer sempre antes que chegasse meu pai. Quase se tinha posto o sol e ficamos os dois olhando além das águas enfurecidas.
Ali fora há gente que luta, e se matam uns aos outros — disse fazendo um sinal vago para o Atlântico. Eu olhei com atenção.
Sei —respondi—. Os vejo.
Não, não pode vê-los —repôs ela, quase com severidade, antes de voltar para a cozinha—. Estão muito longe.
Como podia saber ela se eu os via ou não?, perguntei-me. Forçando a vista, tinha-me parecido discernir uma fina franja de terra no horizonte sobre a que umas pequenas figuras se empurravam, pegavam e brigavam com espadas como em meus gibis. Mas possivelmente tivesse razão. Possivelmente se tratava só de minha imaginação; como os monstros de meia-noite que, em ocasiões, ainda despertavam de um sonho profundo, com o pijama empapado de suor e o coração palpitante.
Como se pode saber quando alguém só imagina? Fiquei contemplando as águas cinzas até que se fez de noite e me mandaram a me lavar as mãos para jantar. Para minha delícia, meu pai tomou em braços. Podia notar o frio do mundo exterior contra sua barba de um dia.
Um domingo daquele mesmo ano, meu pai me tinha explicado com paciência o papel do zero como ponto de origem em aritmética, os nomes de som malicioso dos números grandes e que não existe o número maior (“Sempre pode acrescentar mais um”, dizia). De repente me entrou uma compulsão infantil de escrever em sequência todos os números inteiros do um aos mil. Não tínhamos nenhuma caderneta de papel, mas meu pai me ofereceu o montão de cartões cinzas que guardava quando lhe traziam as camisas da lavanderia. Comecei o projeto com entusiasmo, mas me surpreendeu quão lento era. Quando me encontrava ainda nas centenas mais baixas, minha mãe anunciou que era a hora do banho. Fiquei desconsolado. Tinha que chegar a mil. Interveio meu pai, que toda a vida atuou de mediador: se me submetia ao banho sem pigarrear, ele continuaria a sequência por mim. Eu não cabia em mim de contente. Quando saí do banho já estava perto do novecentos, e assim pude chegar a mil só um pouco depois da hora habitual de me deitar. A magnitude dos números grandes nunca deixou de me impressionar.
Também em 1939, meus pais levaram-me a Feira Mundial de Nova Iorque. Ali me ofereceu uma visão de um futuro perfeito que a ciência e a alta tecnologia tinham feito possível. Tinham enterrado uma cápsula cheia de artefatos de nossa época, para benefício de gente de um futuro longínquo... que, assombrosamente, possivelmente não soubesse muito da gente de 1939. O “mundo do amanhã” seria impecável, limpo, racionalizado e, por isso eu podia ver, sem rastro de gente pobre.
Veja o som”, ordenava de modo desconcertante um pôster. E, certamente, quando o pequeno martelo golpeava o diapasão aparecia uma bela onda sinusoidal na tela do osciloscópio. “Escute a luz”, exortava outro pôster. E, quando o flash iluminou a célula fotoelétrica, pude escutar um pouco parecido às interferências de nosso rádio Motorola quando o dial não dava com a emissora. Simplesmente, o mundo encerrava uma série de maravilhas que nunca me tinha imaginado. Como podia converter um tom em uma imagem e a luz em ruído? Meus pais não eram cientistas. Não sabiam quase nada de ciência. Mas, ao me introduzir simultaneamente no ceticismo e o assombroso, ensinaram-me os dois modos de pensamento de tão difícil convivência e que são à base do método científico. Sua situação econômica não superava em muito o nível de pobreza. Mas quando anunciei que queria ser astrônomo recebi um apoio incondicional, apesar de que eles (como eu) só tinham uma ideia rudimentar do que faz um astrônomo. Nunca me sugeriram que talvez fosse mais oportuno que me tornasse médico ou advogado.
Eu adoraria poder dizer que na escola elementar ou secundário tivera professores de ciências que me inspiraram. Mas, por muito que mergulho em minha memória, não encontro nenhum. Tratava-se de uma pura memorização da tabela periódica dos elementos, alavancas e planos inclinados, a fotossíntese das plantas verdes e a diferença entre a antracita e o carvão betuminoso. Mas não havia nenhuma elevada sensação de maravilha, nenhuma indicação de uma perspectiva evolutiva, nada sobre ideias errôneas que todo mundo tinha acreditado certas em outra época. Supunha-se que nos cursos de laboratório do instituto devíamos encontrar uma resposta. Se não era assim, suspendiam-nos. Não nos animava a aprofundar em nossos próprios interesses, ideias ou enganos lhes conceitue. Ao final do livro de texto havia material que parecia interessante, mas o ano escolar sempre terminava antes de chegar a dito final. Era possível ver maravilhosos livros de astronomia, por exemplo, nas bibliotecas, mas não na classe. Nos ensinava a divisão larga como se tratasse de uma série de receitas de um livro de cozinha, sem nenhuma explicação de como esta sequência particular de divisões curtas, multiplicações e subtrações dava a resposta correta. No instituto nos ensinava com reverência a extração de raízes quadradas, como se tratasse de um método entregue tempo atrás no monte Sinai. Nosso trabalho consistia meramente em recordar o que nos tinha ordenado: consegue a resposta correta, não importa que entenda o que faz. Em segundo curso tive um professor de álgebra muita capacitada que me permitiu aprender muitas matemática, mas era um valentão que desfrutava fazendo chorar às garotas. Em todos aqueles anos de escola mantive meu interesse pela ciência lendo livros e revistas sobre realidade e ficção científica.
A universidade foi a realização de meus sonhos: encontrei professores que não só entendiam a ciência mas também realmente eram capazes de explicá-la. Tive a sorte de estudar em uma das grandes instituições do saber da época: a Universidade de Chicago. Estudava física em um departamento que girava ao redor do Enrico Fermi; descobri a verdadeira elegância matemática com o Subrahmanyan Chandrasekhar; tive a oportunidade de falar de química com o Harold Urey; durante os verões fui aprendiz de biologia com o H. J. Muller na Universidade de Indiana; e aprendi astronomia planetária com o único praticante com plena dedicação da época, G. P. Kuiper.
No Kuiper vi pela primeira vez o chamado cálculo sobre guardanapo de papel: te ocorre uma possível solução a um problema, agarra um guardanapo de papel, apela a seu conhecimento de física fundamental, rabisca umas quantas equações aproximadas, substitui-as por valores numéricos prováveis e comprova se a resposta pode resolver de algum modo seu problema. Se não ser assim, deve procurar uma solução diferente. É uma maneira de ir eliminando disparates como se fossem capas de uma cebola.
Na Universidade de Chicago também tive a sorte de me encontrar com um programa de educação geral desenhado pelo Robert M. Hutchins no que a ciência se apresentava como parte integral da maravilhosa tapeçaria do conhecimento humano. considerava-se impensável que um aspirante a físico não conhecesse o Platão, Aristóteles, Bach, Shakespeare, Gibbon, Malinowski e Freud... entre outros. Em uma classe de introdução à ciência nos apresentou de modo tão irresistível o ponto de vista do Ptolomeu de que o Sol girava ao redor da Terra que muitos estudantes tiveram que repensar sua confiança em Copérnico. A categoria dos professores no programa do Hutchins não tinha quase nada que ver com a investigação; ao contrário —a diferença do que é habitual nas universidades norte-americanas de hoje—, valorava-se aos professores por sua maneira de ensinar, por sua capacidade de transmitir informação e inspirar à futura geração.
Neste ambiente embriagador pude preencher algumas lacunas de minha educação. Me esclareceram muitos aspectos que me tinham parecido profundamente misteriosos, e não só na ciência. Também fui testemunha de primeira mão da alegria que sentiam os que tinham o privilégio de descobrir algo sobre o funcionamento do universo.
Sempre me hei sentido agradecido a meus mentores da década de 1950 e tenho feito o possível para que todos eles conhecessem minha avaliação. Mas quando jogo a vista atrás me parece que o mais essencial não o aprendi de meus professores de escola, nem sequer de meus professores de universidade, mas sim de meus pais, que não sabiam nada absolutamente de ciência, naquele ano tão longínquo de 1939.

Carl Sagan, in O mundo assombrado pelos demônios: A ciência vista como uma vela acesa no escuro

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