sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Imani

          Todas as manhãs se erguiam sete sóis sobre a planície de Inharrime. Nesses tempos, o firmamento era bem maior e nele cabiam todos os astros, os vivos e os que morreram. Nua como havia dormido, a nossa mãe saía de casa com uma peneira na mão. Ia escolher o melhor dos sóis. Com a peneira recolhia as restantes seis estrelas e trazia-as para a aldeia. Enterrava-as junto à termiteira, por trás da nossa casa. Aquele era o nosso cemitério de criaturas celestiais. Um dia, caso precisássemos, iríamos lá desenterrar estrelas. Por motivo desse patrimônio, nós não éramos pobres. Assim dizia a nossa mãe, Chikazi Makwakwa. Ou simplesmente a mame, na nossa língua materna.
Quem nos visitasse saberia a outra razão dessa crença. Era na termiteira que se enterravam as placentas dos recém-nascidos. Sobre o morro de muchém crescera uma mafurreira. No seu tronco amarrávamos os panos brancos. Ali falávamos com os nossos defuntos.
A termiteira era, contudo, o contrário de um cemitério. Guardiã das chuvas, nela morava a nossa eternidade.
Certa vez, já a manhã peneirada, uma bota pisou o Sol, esse Sol que a mãe havia eleito. Era uma bota militar, igual à que os portugueses usavam. Desta vez, porém, quem a trazia calçada era um soldado nguni. O soldado vinha a mando do imperador Ngungunyane.
Os imperadores têm fome de terra e os seus soldados são bocas devorando nações. Aquela bota quebrou o Sol em mil estilhaços. E o dia ficou escuro. Os restantes dias também. Os sete sóis morriam debaixo das botas dos militares. A nossa terra estava a ser abocanhada. Sem estrelas para alimentar os nossos sonhos, nós aprendíamos a ser pobres. E nos perdíamos da eternidade. Sabendo que a eternidade é apenas o outro nome da Vida.

Chamo-me Imani. Este nome que me deram não é um nome. Na minha língua materna “Imani” quer dizer “quem é?”. Bate-se a uma porta e, do outro lado, alguém indaga:
Imani ?
Pois foi essa indagação que me deram como identidade. Como se eu fosse uma sombra sem corpo, a eterna espera de uma resposta.
Diz-se em Nkokolani, a nossa terra, que o nome do recém-nascido vem de um sussurro que se escuta antes de nascer. Na barriga da mãe, não se tece apenas um outro corpo. Fabrica-se a alma, o moya. Ainda na penumbra do ventre, esse moya vai-se fazendo a partir das vozes dos que já morreram. Um desses antepassados pede ao novo ser que adote o seu nome. No meu caso, foi-me soprado o nome de Layeluane, a minha avó paterna.
Como manda a tradição, o nosso pai foi auscultar um adivinho. Queria saber se tínhamos traduzido a genuína vontade desse espírito. E aconteceu o que ele não esperava: o vidente não confirmou a legitimidade do batismo. Foi preciso consultar um segundo adivinho que, simpaticamente e contra o pagamento de uma libra esterlina, lhe garantiu que tudo estava em ordem. Contudo, como nos primeiros meses de vida eu chorasse sem parar, a família concluiu que me haviam dado o nome errado. Consultou-se a tia Rosi, a adivinha da família. Depois de lançar os ossículos mágicos, a nossa tia assegurou: “No caso desta menina, não é o nome que está errado; a vida dela é que precisa ser acertada”.
Desistiu o pai das suas incumbências. A mãe que tratasse de mim. E foi o que ela fez, ao batizar-me de “Cinza”. Ninguém entendeu a razão daquele nome que, na verdade, durou pouco tempo. Depois de as minhas irmãs falecerem, levadas pelas grandes enchentes, passei a ser chamada de “a Viva”. Era assim que me referiam, como se o facto de ter sobrevivido fosse a única marca que me distinguia. Os meus pais ordenavam aos meus irmãos que fossem ver onde estava a “Viva”. Não era um nome. Era um modo de não dizer que as outras filhas estavam mortas.
O resto da história é ainda mais nebuloso. A certa altura o meu velho reconsiderou e, finalmente, se impôs. Eu teria por nome um nome nenhum: Imani. A ordem do mundo, por fim, se tinha restabelecido. Atribuir um nome é um ato de poder, a primeira e mais definitiva ocupação de um território alheio. Meu pai, que tanto reclamava contra o império dos outros, reassumiu o estatuto de um pequeno imperador.
Não sei por que me demoro tanto nestas explicações. Porque não nasci para ser pessoa. Sou uma raça, sou uma tribo, sou um sexo, sou tudo o que me impede de ser eu mesma. Sou negra, sou dos VaChopi, uma pequena tribo no litoral de Moçambique. A minha gente teve a ousadia de se opor à invasão dos VaNguni, esses guerreiros que vieram do sul e se instalaram como se fossem donos do universo. Diz-se em Nkokolani que o mundo é tão grande que nele não cabe dono nenhum.
A nossa terra, porém, era disputada por dois pretensos proprietários: os VaNguni e os portugueses. Era por isso que se odiavam tanto e estavam em guerra: por serem tão parecidos nas suas intenções. O exército dos VaNguni era bem mais numeroso e poderoso. E mais fortes eram os seus espíritos, que mandavam nos dois lados da fronteira que rasgou a nossa terra ao meio. De um lado, o Império de Gaza, dominado pelo chefe dos VaNguni, o imperador Ngungunyane. Do outro lado, as Terras da Coroa, onde governava um monarca que nenhum africano haveria nunca de conhecer: Dom Carlos I , o rei de Portugal.
Os outros povos, nossos vizinhos, moldaram-se à língua e aos costumes dos invasores negros, esses que chegavam do sul. Nós, os VaChopi, somos dos poucos que habitam as Terras da Coroa e que se aliaram aos portugueses no conflito contra o Império de Gaza. Somos poucos, murados pelo orgulho e cercados pelos kokholos, essas muralhas de madeira que erguemos em redor das nossas aldeias. Por razão desses abrigos, o nosso lugar tornara-se tão pequeno que até as pedras tinham nome. Em Nkokolani bebíamos todos do mesmo poço, uma única gota de veneno bastaria para matar a aldeia inteira.

Vezes sem fim, despertamos com os gritos da nossa mãe. Dormia e gritava, rondando pela casa, em passos sonâmbulos. Nesses noturnos delírios comandava a família numa jornada sem fim, atravessava pântanos, riachos e quimeras. Regressava à nossa antiga aldeia, onde nascêramos junto ao mar.
Há, em Nkokolani, um provérbio que diz o seguinte: se quiseres conhecer um lugar fala com os ausentes; se quiseres conhecer uma pessoa escuta-lhes os sonhos. Pois esse era o único sonho de nossa mãe: voltar ao lugar onde fôramos felizes e onde vivêramos em paz. Aquela saudade era infinita. Haverá, a propósito, saudade que não seja infinita?
O devaneio que a mim me ocupa é bem diverso. Não grito nem deambulo pela casa. Mas não há noite que não sonhe ser mãe. E hoje voltei a sonhar que estava grávida. A curva do meu ventre rivalizava com a redondez da Lua. Desta vez, porém, o que aconteceu foi o reverso de um parto: o meu filho é que me expulsava a mim. Talvez seja isso o que fazem os nascituros: livram-se das mães, rasgam-se desse indistinto e único corpo. Pois o meu sonhado filho, essa criatura sem rosto e sem nome, desembaraçava-se de mim, em violentos e doloridos espasmos. Acordei transpirada e com terríveis dores nas costas e nas pernas.
Depois entendi: não era um sonho. Era uma visita dos meus entes passados. Traziam um recado: alertavam-me que eu, com os meus quinze anos, já tardava em ser mãe. Todas as meninas da minha idade, em Nkokolani, já haviam engravidado. Apenas eu parecia condenada a um destino seco. Afinal, não era apenas uma mulher sem nome. Era um nome sem pessoa. Um desembrulho. Vazio como o meu ventre.

Mia Couto, in Mulheres de cinzas (As Areias do Imperador)

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