Não se ouvia ruído dos motores do
avião. Não se ouvia nada. Exceto, talvez, o choro surdo das
comissárias a alguns assentos de distância mais para trás. Pela
janela elíptica, Shkedi olhava a nuvem que pairava bem abaixo dele.
Imaginou o avião caindo por ela como uma pedra, fazendo um buraco
enorme que seria rapidamente fechado com o primeiro vento, sem deixar
sequer uma cicatriz. “Só não caia”, Shkedi pensou, “só não
caia.”
Quarenta segundos antes de Shkedi
expirar, surgiu um anjo vestido totalmente de branco e lhe contou que
ele fora premiado com um último desejo. Shkedi tentou descobrir o
que “premiado” sugeria. Será que se tratava de um prêmio como
em uma loteria, ou algo um pouquinho mais lisonjeiro: “premiado”
por uma conquista, em reconhecimento por seus bons atos? O anjo deu
de asas. “Não sei”, confessou com pura sinceridade angelical.
“Disseram-me para vir e realizar, não disseram por quê.”
“Pena”, disse Shkedi, “porque é absolutamente fascinante.
Especialmente agora, quando estou para partir deste mundo, é muito
importante para mim saber se eu o deixo simplesmente como qualquer
sujeito de sorte ou com um tapinha nas costas.” “Quarenta
segundos e você cai fora”, disse o anjo com indiferença. “Se
quer passar este tempo tagarelando, por mim, tudo bem. Não tem
problema. Leve apenas em consideração que a sua vitrine de
oportunidades está se fechando.” Shkedi entendeu e fez logo seu
pedido. Mas não antes de fazer ao anjo uma observação em relação
ao seu jeito estranho de falar. Quer dizer, estranho para um anjo. O
anjo se ofendeu. “O que quer dizer ‘para um anjo’? Alguma vez
já ouviu um anjo falando para estar despejando isso em mim?”
“Não”, confessou Shkedi. O anjo pareceu de repente muito menos
angelical e agradável, mas aquilo não era nada comparado à sua
aparência quando ouviu o desejo.
“Paz mundial?”, ele berrou irado.
“Paz mundial? Você está zombando de mim?”
E então Shkedi morreu.
Shkedi morreu e o anjo ficou. Ficou com o
desejo mais maçante e complicado que alguma vez foi solicitado a
realizar. Na maioria dos casos, as pessoas pediam um carro novo para
a esposa, um apartamento para o filho. Coisas razoáveis. Coisas
específicas. Mas paz mundial é um trabalhão. Primeiro, o sujeito o
perturba com perguntas, como se ele fosse do setor de informações
da companhia telefônica, depois o ofende por falar esquisito, e
ainda por cima lhe pede paz mundial. Se ele não tivesse batido as
botas, o anjo grudaria nele como herpes e não o largaria até que
substituísse o desejo. Mas a alma do fulano já tinha sido
despachada para o sétimo céu, e como seria procurá-la por lá
agora?
O anjo respirou fundo. “Paz mundial,
isto é tudo”, balbuciou, “paz mundial, é tudo.”
E enquanto tudo isso acontecia, a alma de
Shkedi já esquecera completamente que havia pertencido a alguém
chamado Shkedi, e reencarnou, pura e imaculada, de segunda mão, mas
como nova, dentro de uma fruta. Sim, uma fruta. Uma goiaba.
A nova alma não tinha pensamentos.
Goiabas não têm pensamentos. Mas tinha sentimentos. Sentia um medo
terrível. Tinha medo de cair da árvore. Não tinha palavras para
descrever este medo. Mas se tivesse, certamente seria algo no estilo,
“Mãezinha, não quero cair”. E enquanto estava pendurada na
árvore, apavorada, a paz começou a reinar no mundo. As pessoas
transformaram suas espadas em pás, e usinas atômicas foram rápida
e sabiamente transformadas para propósitos pacíficos. Mas nada
disto tranquilizou a goiaba. Porque a árvore era alta e o solo
parecia distante e doloroso. Só não me deixe cair, a goiaba tremia
sem palavras, só não caia.
Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta
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