terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Exortação

MEMORANDO

DATA: 6 de abril
PARA: Equipe
DE: Todd Birnie, Diretor de Divisão
RE: Estatísticas do Desempenho de Março

Eu não gostaria de caracterizar isto como um apelo, embora talvez comece a soar como um (!). O fato é que temos um serviço a fazer, um serviço que concordamos tacitamente em fazer (vocês sacaram seu último salário? O meu eu garanto que saquei, hahaha). Concordamos também — para dar um passo adiante aqui — em fazer o serviço bem-feito. Agora, todos sabemos que um jeito de fazer um serviço porco é ser negativo com relação a ele. Vamos dizer que precisamos limpar uma prateleira. Vamos usar esse exemplo. Se gastarmos a hora que antecede a limpeza da prateleira discutindo o processo de limpeza da prateleira, resmungando, temendo o trabalho antecipadamente, investigando as sutilezas da limpeza da prateleira, sei lá mais o quê, então o que acontece é que tornamos o processo de limpar a prateleira mais difícil do que ele de fato é. Todos sabemos muito bem que aquela “prateleira” vai ser limpa, dado o clima vigente, ou por você ou pelo sujeito que tomar o seu lugar e o seu salário, de modo que a questão se resume ao seguinte: Eu quero limpá-la alegre ou quero limpá-la triste? O que seria mais eficaz para mim? O que serviria de modo mais eficiente ao meu propósito? Qual é o meu propósito? Ser pago. Como faço para realizar esse propósito de modo mais eficiente? Limpando bem e depressa aquela prateleira. E que estado mental me ajuda a limpar bem e depressa aquela prateleira? A resposta por acaso é: Negativo? Um estado mental negativo? Vocês sabem muito bem que não. Então o recado deste memorando é: Positivo. O estado mental positivo vai ajudar vocês a limpar bem e depressa aquela prateleira, realizando assim seu propósito de serem pagos.
O que estou dizendo aqui? Estou dizendo para vocês assobiarem enquanto trabalham? Talvez esteja. Vamos considerar a hipótese de ter que erguer a pesada carcaça de uma baleia morta. (Desculpem essa história de prateleira/baleia, é que acabamos de voltar de nossa casa em Reston Island, onde havia: 1) uma porção de prateleiras sujas e 2) sim, acreditem ou não, uma baleia de verdade, morta e apodrecendo, com a qual Timmy, Vance e eu acabamos nos envolvendo em termos de limpeza.) Então vamos dizer que vocês estejam encarregados, vocês e alguns de seus colegas, de erguer a carcaça pesada de uma baleia morta e colocá-la na carroceria de uma carreta. Ora, todos sabemos que isso é difícil de fazer. E com uma atitude negativa seria ainda mais difícil. O que descobrimos — Timmy, Vance e eu — é que, mesmo com uma atitude meramente neutra, estamos falando de uma tarefa muito difícil. Tentamos erguer aquela baleia enquanto estávamos nos sentindo simplesmente neutros, Timmy, Vance e eu, com uma dúzia de outros camaradas, e não teve jeito, aquela baleia não saía do lugar, até que de repente um sujeito, um ex-fuzileiro, disse que o que precisávamos era mentalizar o problema, e nos reuniu num pequeno círculo, e cantamos um certo refrão. Ficamos “psicologicamente motivados”. Sabíamos, para estender a analogia que fiz acima, que tínhamos um serviço a fazer, e ficamos como que excitados em relação àquilo, e decidimos fazê-lo com uma atitude positiva, e vou contar para vocês, aconteceu alguma coisa ali, foi divertido, foi divertido quando aquela baleia se ergueu no ar, ajudada por nós e por algumas grandes correias que o fuzileiro tinha em sua van, e devo dizer que erguer aquela baleia putrefata e colocá-la na carroceria da carreta com aquele grupo de completos desconhecidos foi o ponto alto da nossa viagem.
Então o que é que estou dizendo? Estou dizendo (e dizendo com veemência, porque é importante): Vamos tentar, se possível, diminuir os resmungos e as dúvidas com relação às tarefas que às vezes precisamos cumprir aqui e que talvez não pareçam muito agradáveis à primeira vista. Estou dizendo que devemos tentar não esmiuçar cada mínima coisa que fazemos para saber se é boa/má/indiferente em última instância em termos morais. O tempo para isso já passou há muito. Espero que cada um de nós tenha tido essa conversa interior quase um ano atrás, quando esta coisa toda começou. Enveredamos por uma trilha, e tendo enveredado por essa trilha pelas melhores razões (tal como decidimos um ano atrás), não seria uma espécie de suicídio deixar que nosso avanço por essa trilha seja impedido por uma neurótica reconsideração tardia? Algum de vocês já brandiu alguma vez uma marreta? Sei que alguns de vocês já brandiram. Sei que alguns de vocês usaram a marreta quando derrubamos o pátio do Rick. Não é divertido quando a gente não se detém, mas simplesmente golpeia sem parar, deixando que a gravidade ajude? Companheiros, o que estou dizendo é: deixem a gravidade ajudá-los aqui, em nossa situação de trabalho. Golpeiem, entreguem-se às sensações naturais que eu vi de tempos em tempos produzir tanta energia em tantos de vocês, em termos de executar suas tarefas com vigor e sem reconsiderações tardias nem ruminações neuróticas. Lembram da semana recordista de Andy em outubro, quando ele dobrou seu número habitual de unidades? Independentemente de qualquer coisa, esquecendo por um momento todos os pensamentos piegas sobre certo/errado etc. etc., não foi uma coisa linda de ver? Uma coisa linda em si mesma? Acho que, se a gente olhar bem dentro de si, não é que não ficamos todos com um pouco de inveja? Deus do céu, ele estava mesmo descendo a marreta e dava para ver a alegria vigorosa em seu rosto cada vez que ele passava correndo pela gente para pegar mais toalhas de papel. E nós ali parados, simplesmente, como se disséssemos: Uau, Andy, o que deu em você? E ninguém pode questionar os números dele. Estão ali na nossa Sala do Café para quem quiser ver, erguendo-se por cima dos números do resto de nós, e embora Andy não tenha conseguido dobrar aqueles números nos meses que vieram depois de outubro, 1) ninguém o condena por isso, já que aqueles números foram prodigiosos, e 2) acredito que, mesmo que Andy jamais chegue a dobrar aqueles números, ainda assim, em algum lugar do seu coração, ele deve guardar com carinho a lembrança daquela energia magnífica que fluiu dele naquele outubro memorável. Honestamente não acho que Andy poderia ter tido um outubro assim se ficasse com frescuras ou alimentando ideias neuróticas de dúvida ou tendências reconsiderativas, vocês acham que poderia? Eu acho que não. Andy parecia totalmente concentrado, totalmente desprendido de si mesmo, dava para ver na cara dele. Será que era por causa do novo filho? (Se for assim, Janice deveria ter um filho por semana, hahaha.)
Seja como for, outubro foi o modo como Andy ingressou numa espécie de Hall da Fama, ao menos na minha cabeça, e desde então ficou isento de qualquer monitoramento rigoroso de seus números, pelo menos de minha parte. Não importa o quanto ele fique abatido e retraído (e acho que todos notamos que ele ficou bem abatido e retraído desde outubro), vocês não vão me ver monitorando de perto os números dele, embora eu não possa falar pelos outros, talvez outros estejam monitorando essa preocupante queda dos números de Andy, embora eu tenha a sincera esperança de que não estejam fazendo isso, pois não seria justo, e acreditem: se eu ouvir qualquer rumor a esse respeito, vou fazer com que Andy fique sabendo e, se Andy estiver deprimido demais para me ouvir, vou falar com Janice na casa deles.
E por que será que Andy está tão abatido? Meu palpite é que ele está sendo neurótico, e reconsiderando suas ações de outubro — e uau, não seria uma pena, não seria um desperdício, Andy ter completado aquele outubro de recorde histórico para depois ficar chorando pelos cantos? Esse chororô está mudando alguma coisa? Por acaso as ações que Andy desempenhou, em termos das tarefas que lhe dei para fazer na Sala 6, estão sendo desfeitas pelo seu chororô, por acaso os números dele na Sala de Café estão rolando milagrosamente para baixo, por acaso as pessoas estão subitamente saindo da Sala 6 sentindo-se perfeitamente bem de novo? Ora, sabemos muito bem que não. Ninguém está saindo da Sala 6 sentindo-se perfeitamente bem. Mesmo vocês, rapazes, que fazem o que precisa ser feito na Sala 6, mesmo vocês não saem de lá se sentindo superbem, sei disso, eu com certeza fiz coisas na Sala 6 que não me deixaram me sentindo uma maravilha, acreditem, ninguém está querendo negar que a Sala 6 pode ser um pesadelo, é trabalho duro o que fazemos lá. Mas o pessoal acima de nós, que determina nossas obrigações, parece considerar que o que fazemos na Sala 6, além de ser duro, é também importante, razão pela qual, suspeito eu, eles começaram a examinar tão de perto os nossos números. E confiem em mim, se vocês querem que a Sala 6 seja um pesadelo pior do que já é, então passem a se lamuriar antes, durante e depois, assim a coisa vai feder de verdade e, mais que isso, com toda essa lamúria seus números vão despencar ainda mais, o que — adivinhem — não pode acontecer. No Encontro Seccional me disseram sem rodeios que nossos números não podem baixar nem um pouco mais. Eu respondi (e isso demandou colhões, podem crer, dada a atmosfera no Encontro Seccional): Vejam, meus rapazes estão cansados, é um trabalho muito duro o que a gente faz, em termos tanto físicos como psicológicos. E a essa altura, no Encontro Seccional, acreditem, o silêncio foi ensurdecedor. Estou falando sério: ensurdecedor. E os olhares que recebi não foram nada bons. E fui lembrado, em palavras inequívocas, por Hugh Blanchert em pessoa, de que nossos números não podem baixar. E me pediram para lembrar a vocês — para lembrar a todos nós, eu incluído — que se formos incapazes de limpar a “prateleira” que nos foi designada, não apenas outras pessoas serão trazidas para limpar essa “prateleira”, mas nós próprios podemos nos ver nessa “prateleira”, podemos ser essa “prateleira”, com outras pessoas se empenhando, cheias de energia positiva, para se livrar de nós. E nessa hora acho que vocês podem imaginar o quanto vão se arrepender, o arrependimento estará estampado no rosto de vocês, tal como às vezes testemunhamos, na Sala 6, aquele arrependimento no rosto das “prateleiras” quando elas são “limpas”, portanto estou lhes pedindo, à queima-roupa, para que tentem dar o máximo de si para não acabar virando uma “prateleira”, a qual nós, seus antigos colegas, não teremos escolha senão limpar limpar limpar usando toda a nossa energia positiva, sem olhar para trás, na Sala 6.
Tudo isso foi deixado muito claro para mim no Encontro Seccional e agora estou tentando deixar claro para vocês.
Bom, eu me estendi demais, mas por favor venham à minha sala, qualquer um que esteja com dúvidas, dúvidas quanto ao que fazemos, e eu lhes mostro fotos daquela incrível baleia que meus filhos e eu erguemos com nossa boa energia positiva. E, evidentemente, essa informação, isto é, a informação de que vocês estão com dúvidas, e que vieram me ver em minha sala, não irá além das paredes da minha sala, embora eu tenha certeza de que nem preciso dizer isso, para nenhum de vocês, que me conhecem há tantos anos. Tudo vai ficar bem e tudo vai ficar bem etc. etc.

Todd

George Saunders, in Dez de dezembro

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