Conforme os anos passavam ela ia
aperfeiçoando algumas técnicas. Melhorou o traço do delineador, a
pronúncia de “Côte d’Azur”, o sabor do refogado e, sobretudo,
a organização dos livros.
Não era boa para organizar quase nada:
nem agenda, nem armário, nem pensamentos, nem bolsas. Mas quando o
assunto era a separação criteriosa de livros, poucos poderiam
superá-la.
Aos 14 anos, já separava crônicas numa
prateleira, romances em outra e poesia numa terceira. Aos 18,
inaugurou a estante dos jurídicos. Aos 21, reparou que aquilo não
era suficiente. Separou contos de crônicas, romance histórico de
ficção, nacionais de estrangeiros. Aos 24, viu sua estante invadida
por filosofia e história e decidiu livrar novas prateleiras para
tanto. No ano seguinte, quis que os livros de bolso ficassem
separados, porque aquela oscilação de alturas não era tolerável.
Foi aos 28 que ela decidiu que deveria
haver uma estante-altar. Um lugar de honra, um posto soberano de
adoração para seus brâmanes literários. A estante-altar precisava
ser pequena para exigir algum martírio na seleção. Uma espécie
necessária de autoflagelo.
Decidiu que as quatro prateleiras da
estante-altar seriam ocupadas, de baixo para cima, por biografias,
arte, romance e poesia. Começou a refletir, angustiada. Já pensava
nos seus irrenunciáveis A dama das camélias, Do amor e outros
demônios, Sentimento do mundo, O estrangeiro, O apocalipse dos
trabalhadores. Pensou na terrível hipótese de Contos do
nascer da Terra e Sagarana não se encaixarem em nenhum
dos estilos escolhidos. Via Vinicius, Alberto Caeiro e Manoel de
Barros acenarem afetuosamente para ela.
Lembrou-se das biografias de Kiki de
Montparnasse e Elza Soares. Não tinha muita clareza sobre o que
sentia. Se gostava tanto assim dos livros ou só das personagens.
Pensou no imenso livro de fotografias da vida de Frida Kahlo, na
coletânea de pinturas e esculturas de Botero, nas obras de Vermeer,
de Dalí e de Tarsila do Amaral e nas fotografias de Man Ray. Não
estava disposta a renunciar a absolutamente nenhum.
Estava nervosa com a estante, com a
escolha e com a imensa responsabilidade que carregava nas costas
desde então. Sabia que aquele era um projeto de renúncias (duras
renúncias que teriam que ficar nas prateleiras de sempre em vez de
usufruir da sonhada promoção). Refletiu durante algumas semanas e
concluiu que precisava de tempo. A estante-altar permaneceria vazia
por alguns meses.
Passada uma semana, a estante-altar
serviu de apoio temporário para umas revistas velhas que deveriam ir
para a sala de espera do consultório de sua tia. Poucos dias depois,
colocou ali um saquinho de pano com o par de sapatos que precisava
devolver para a prima. O rádio que precisava levar à assistência
técnica. Uns papéis do banco que não tinha certeza se já podia
jogar fora.
A estante-altar foi rebaixada a depósito
de bens sem-teto. Os livros permaneceram seguros nas prateleiras
antigas. Ela nunca deixou de pensar no assunto, embora até hoje
ainda lhe falte coragem para tomar alguma atitude a esse respeito.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
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