O biólogo americano Edward O. Wilson é
um dos raros superstars da ciência. Vencedor de dois prêmios
Pulitzer pelos seus elegantes ensaios, professor emérito da
Universidade de Harvard, Wilson é considerado o maior especialista
do mundo em formigas. Entre muitos resultados, Wilson explorou as
leis que regem a inteligência coletiva de insetos como as formigas e
as abelhas, e a importância, na evolução das sociedades, de
valores como o altruísmo e o sacrifício de alguns para beneficiar a
sobrevivência do grupo. Em 2014, Wilson lançou um novo livro, O
sentido da existência humana, em que busca forjar um caminho para a
unificação das ciências com as áreas humanas.
O livro foi finalista do Prêmio Nacional
do Livro nos EUA, o equivalente americano ao Prêmio Jabuti. Nele,
Wilson dá continuidade à sua obra de 1998, Consilience: The Unity
of Knowledge (Conciliação: a unidade do conhecimento). Se a
iniciativa tiver sucesso, afirma Wilson, atingiremos uma compreensão
transformadora do sentido da nossa existência. Wilson parte da
premissa de que por trás da complexidade da Natureza existem leis
simples, que remetem a uma explicação unificada da realidade. A
ideia essencial aqui é unificação. Bem antiga, remonta a Tales de
Mileto (cerca de 600 a.C.), o primeiro dos filósofos ocidentais.
O historiador americano Gerald Holton
chamou essa idealização da Natureza de “encantamento iônico”.
Tales viveu entre 650 e 550 a.C. na região de Iônia, hoje parte da
Turquia. Daí o “iônico”. Interessado no aspecto material da
realidade, sugeriu que tudo fosse água. O sentido de Tales era mais
metafísico do que físico, a água representando o potencial
transformador da Natureza, que acreditava estar sempre em fluxo. O
ponto essencial permanece: oculta nas profundezas do real, existe uma
estrutura unificada, a fonte de tudo. Decifrar suas leis equivale a
desvendar o mistério da existência, dos elétrons ao amor.
Wilson equaciona o encantamento iônico
ao elemento religioso que crê ser a fonte de inspiração na busca
científica pelo conhecimento: “Acredito ser essa a fonte do
encantamento iônico: satisfazer nosso apetite religioso buscando uma
compreensão da realidade objetiva, rejeitando revelações
proféticas.” Wilson adota o reducionismo como mestre absoluto do
conhecimento. A unidade das ciências começa na física, dado que é
ela que determina as leis fundamentais da Natureza. Como somos feitos
de partículas de matéria, entender as leis que regem seu
comportamento é uma precondição para entendermos o resto. O plano,
portanto, é unificar a física, extrapolar para as outras ciências
físicas (química, astronomia, geologia...) e, de lá, para a
biologia e as ciências neurocognitivas.
Com isso, acredita Wilson, teremos uma
compreensão clara do caráter fisiológico das emoções humanas:
dos elétrons ao amor. Como as disciplinas humanas são produto do
cérebro humano, argumenta, serão necessariamente incluídas nessa
grande unificação do conhecimento. Para chegar a tal objetivo, fora
a unificação da física, os cientistas terão que convencer os
humanistas a abraçar esse movimento, repensando conjuntamente a
estrutura de suas disciplinas sob a luz quantitativa da ciência. Boa
sorte. Wilson não despreza as disciplinas humanas. Pelo contrário,
acha que devem ser celebradas: “São a história natural da
cultura, nossa herança mais preciosa e privada.”
Considera que as artes, a filosofia, a
teologia, a história são, em essência, produtos de quem somos, da
nossa história evolucionária: para entendermos história, temos que
começar na pré-história. É um erro separar nossa habilidade como
entidades criadoras dos processos evolucionários que, ao longo de 2
milhões de anos, moldaram o Homo sapiens a partir de uma linhagem de
primatas bípedes. Assim, traçamos uma linha que começa no Big Bang
e passa pela origem da matéria, da vida, da vida complexa, dos
humanos, terminando nas obras criadas pela nossa espécie em todas as
áreas do conhecimento.
Essa é a conciliação que busca Wilson,
uma ponte ligando a história cósmica à história humana. Wilson
resume sua missão: “A conciliação do saber busca salvar o
espírito através da liberação da mente humana – não de sua
rendição. Seu princípio central, como sabia Einstein, é a
unificação do conhecimento. Quando lá chegarmos, compreenderemos
quem somos e por que estamos aqui.” Infelizmente, a missão é
inatingível tanto em princípio quanto na prática. Em princípio,
porque a noção de unificação de toda a física, o ponto de
partida de Wilson, não faz sentido epistemologicamente. Na prática,
porque jamais poderemos acumular conhecimento suficiente para
construirmos uma visão completa e unificada da realidade.
Ao encantamento iônico, temos que
contrapor a falácia iônica, termo proposto cinicamente pelo
historiador de ideias Isaiah Berlin. Nenhum sistema de conhecimento
humano pode ser completo, fechado em si mesmo. Existem sempre
perguntas que podem ser formuladas nesse sistema que não podem ser
respondidas com o que se conhece. Na matemática, este resultado é
resumido nos dois Teoremas da Incompletude, de Kurt Gödel.
Na computação, o problema de parada (do
inglês, halting problem), de Alan Turing. Um sistema de conhecimento
completo é o equivalente intelectual da Torre de Babel bíblica.
“Toda filosofia é produto de duas coisas apenas: curiosidade e
miopia”, escreveu o filósofo francês Bernard de Fontenelle no
final do século XVII. A aquisição do conhecimento é, por
necessidade, um processo que se ramifica: quanto mais sabemos, mais
percebemos o quanto ainda temos por saber. Uma ideia, por mais
encantadora que seja, muitas vezes não passa de uma ilusão.
Buscamos sempre descrições cada vez mais unificadas dos fenômenos
naturais. Mas não temos qualquer indicação de que essa estrada
tenha fim. Mesmo na física de partículas elementares, podemos
apenas construir descrições unificadas provisórias, que serão
suplantadas por novas descobertas.
A gravidade de Aristóteles era muito
diferente da de Newton; a dele, muito diferente da de Einstein. Hoje,
estamos repensando as propriedades da força gravitacional; existem
propostas de considerá-la uma força diferente das demais,
irreconciliável com o que ocorre no nível subatômico. Não temos
razão para supor que a mente humana possa decifrar a essência da
realidade; precisamos aprender a viver com o mistério, com o fato de
que não podemos chegar ao fim do conhecimento. Mesmo que sejamos
feitos de átomos, não podemos usar a física atômica para
descrever nossa fisiologia ou comportamento.
Níveis de organização material
diferentes requerem leis diferentes, e essas leis são novas e
irredutíveis. Como afirmou o Prêmio Nobel de Física Philip
Anderson, da Universidade de Princeton, “mais é diferente”. Não
existe uma ponte direta que liga os elétrons ao amor. Usando as
formigas de Wilson, o comportamento do grupo segue leis bem
diferentes das que regem o metabolismo celular de cada formiga e,
mais ainda, das que regem as propriedades dos seus átomos. Não
existe uma continuidade entre o que ocorre com os átomos e o
altruísmo de algumas formigas. A cada nível crescente de
complexidade material, mudam as descrições e a metodologia. Caso
contrário, economistas teriam que estudar mecânica quântica para
examinar o comportamento do mercado de capitais.
Wilson acredita numa espécie de
determinismo cósmico, baseado numa causalidade universal. Se o
consciente humano é redutível a simples leis físicas, podemos
relacionar nosso comportamento, nossas escolhas subjetivas, a uma
teia de causa e efeito que teve início no próprio Big Bang. Nesse
caso, a noção de livre-arbítrio seria uma ilusão “biologicamente
adaptativa”, que nos protege contra o fatalismo: acreditando ter
controle sobre nossas vidas, continuamos a nos reproduzir. Esse tipo
de determinismo é inconsistente com a física quântica – em que
existe uma incerteza essencial ao nível de cada partícula que pode
tomar essa ou aquela propriedade (girar no sentido horário ou
anti-horário, por exemplo).
Cada opção leva a uma história
divergente. Ademais, se tudo é já definido, qual o ponto de Wilson
em querer que tomemos o futuro em nossas mãos, que preservemos a
Terra e seus habitantes, eliminando a guerra e a intolerância? Na
prática, também, existem limites intransponíveis, dado que a
aquisição do conhecimento científico depende da tecnologia usada
nos instrumentos de medida. Basta comparar a astronomia antes e
depois do telescópio, ou a biologia antes e depois do microscópio,
para ver como esses campos do conhecimento avançam continuamente
devido ao progresso dos instrumentos de observação. Ver mais não
significa ver tudo. Pode haver um caminho para a unificação do
conhecimento? Acredito que a proposta não faça sentido.
Cientistas e humanistas devem sim
colaborar, encurtando as distâncias entre suas metodologias e
objetivos. Existem muitas áreas em que as duas vertentes do
conhecimento convergem e se beneficiam mutuamente. Por exemplo, na
questão do livre-arbítrio ou na natureza da verdade; na questão de
como as tecnologias digitais e genéticas vão determinar o futuro da
nossa espécie; na questão do aquecimento global e do seu impacto
econômico e social. Por outro lado, querer construir um único
edifício do conhecimento é querer empobrecê-lo. Existem muitas
formas de olhar para o mundo. Melhor do que chegar a um pressuposto
fim onde tudo é um, é celebrar a pluralidade do saber, a natureza
instável do conhecimento, fonte de nosso desejo de querer sempre
buscar. Aceitar a incompletude do saber não é uma atitude
derrotista; pelo contrário, é liberadora, pois entende que a busca
não tem fim. E o que pode ser mais instigante do que saber que
existirá sempre algo novo a ser descoberto?
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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