sábado, 6 de fevereiro de 2021

Dos elétrons ao amor: a inatingível unidade do conhecimento

          O biólogo americano Edward O. Wilson é um dos raros superstars da ciência. Vencedor de dois prêmios Pulitzer pelos seus elegantes ensaios, professor emérito da Universidade de Harvard, Wilson é considerado o maior especialista do mundo em formigas. Entre muitos resultados, Wilson explorou as leis que regem a inteligência coletiva de insetos como as formigas e as abelhas, e a importância, na evolução das sociedades, de valores como o altruísmo e o sacrifício de alguns para beneficiar a sobrevivência do grupo. Em 2014, Wilson lançou um novo livro, O sentido da existência humana, em que busca forjar um caminho para a unificação das ciências com as áreas humanas.
O livro foi finalista do Prêmio Nacional do Livro nos EUA, o equivalente americano ao Prêmio Jabuti. Nele, Wilson dá continuidade à sua obra de 1998, Consilience: The Unity of Knowledge (Conciliação: a unidade do conhecimento). Se a iniciativa tiver sucesso, afirma Wilson, atingiremos uma compreensão transformadora do sentido da nossa existência. Wilson parte da premissa de que por trás da complexidade da Natureza existem leis simples, que remetem a uma explicação unificada da realidade. A ideia essencial aqui é unificação. Bem antiga, remonta a Tales de Mileto (cerca de 600 a.C.), o primeiro dos filósofos ocidentais.
O historiador americano Gerald Holton chamou essa idealização da Natureza de “encantamento iônico”. Tales viveu entre 650 e 550 a.C. na região de Iônia, hoje parte da Turquia. Daí o “iônico”. Interessado no aspecto material da realidade, sugeriu que tudo fosse água. O sentido de Tales era mais metafísico do que físico, a água representando o potencial transformador da Natureza, que acreditava estar sempre em fluxo. O ponto essencial permanece: oculta nas profundezas do real, existe uma estrutura unificada, a fonte de tudo. Decifrar suas leis equivale a desvendar o mistério da existência, dos elétrons ao amor.
Wilson equaciona o encantamento iônico ao elemento religioso que crê ser a fonte de inspiração na busca científica pelo conhecimento: “Acredito ser essa a fonte do encantamento iônico: satisfazer nosso apetite religioso buscando uma compreensão da realidade objetiva, rejeitando revelações proféticas.” Wilson adota o reducionismo como mestre absoluto do conhecimento. A unidade das ciências começa na física, dado que é ela que determina as leis fundamentais da Natureza. Como somos feitos de partículas de matéria, entender as leis que regem seu comportamento é uma precondição para entendermos o resto. O plano, portanto, é unificar a física, extrapolar para as outras ciências físicas (química, astronomia, geologia...) e, de lá, para a biologia e as ciências neurocognitivas.
Com isso, acredita Wilson, teremos uma compreensão clara do caráter fisiológico das emoções humanas: dos elétrons ao amor. Como as disciplinas humanas são produto do cérebro humano, argumenta, serão necessariamente incluídas nessa grande unificação do conhecimento. Para chegar a tal objetivo, fora a unificação da física, os cientistas terão que convencer os humanistas a abraçar esse movimento, repensando conjuntamente a estrutura de suas disciplinas sob a luz quantitativa da ciência. Boa sorte. Wilson não despreza as disciplinas humanas. Pelo contrário, acha que devem ser celebradas: “São a história natural da cultura, nossa herança mais preciosa e privada.”
Considera que as artes, a filosofia, a teologia, a história são, em essência, produtos de quem somos, da nossa história evolucionária: para entendermos história, temos que começar na pré-história. É um erro separar nossa habilidade como entidades criadoras dos processos evolucionários que, ao longo de 2 milhões de anos, moldaram o Homo sapiens a partir de uma linhagem de primatas bípedes. Assim, traçamos uma linha que começa no Big Bang e passa pela origem da matéria, da vida, da vida complexa, dos humanos, terminando nas obras criadas pela nossa espécie em todas as áreas do conhecimento.
Essa é a conciliação que busca Wilson, uma ponte ligando a história cósmica à história humana. Wilson resume sua missão: “A conciliação do saber busca salvar o espírito através da liberação da mente humana – não de sua rendição. Seu princípio central, como sabia Einstein, é a unificação do conhecimento. Quando lá chegarmos, compreenderemos quem somos e por que estamos aqui.” Infelizmente, a missão é inatingível tanto em princípio quanto na prática. Em princípio, porque a noção de unificação de toda a física, o ponto de partida de Wilson, não faz sentido epistemologicamente. Na prática, porque jamais poderemos acumular conhecimento suficiente para construirmos uma visão completa e unificada da realidade.
Ao encantamento iônico, temos que contrapor a falácia iônica, termo proposto cinicamente pelo historiador de ideias Isaiah Berlin. Nenhum sistema de conhecimento humano pode ser completo, fechado em si mesmo. Existem sempre perguntas que podem ser formuladas nesse sistema que não podem ser respondidas com o que se conhece. Na matemática, este resultado é resumido nos dois Teoremas da Incompletude, de Kurt Gödel.
Na computação, o problema de parada (do inglês, halting problem), de Alan Turing. Um sistema de conhecimento completo é o equivalente intelectual da Torre de Babel bíblica. “Toda filosofia é produto de duas coisas apenas: curiosidade e miopia”, escreveu o filósofo francês Bernard de Fontenelle no final do século XVII. A aquisição do conhecimento é, por necessidade, um processo que se ramifica: quanto mais sabemos, mais percebemos o quanto ainda temos por saber. Uma ideia, por mais encantadora que seja, muitas vezes não passa de uma ilusão. Buscamos sempre descrições cada vez mais unificadas dos fenômenos naturais. Mas não temos qualquer indicação de que essa estrada tenha fim. Mesmo na física de partículas elementares, podemos apenas construir descrições unificadas provisórias, que serão suplantadas por novas descobertas.
A gravidade de Aristóteles era muito diferente da de Newton; a dele, muito diferente da de Einstein. Hoje, estamos repensando as propriedades da força gravitacional; existem propostas de considerá-la uma força diferente das demais, irreconciliável com o que ocorre no nível subatômico. Não temos razão para supor que a mente humana possa decifrar a essência da realidade; precisamos aprender a viver com o mistério, com o fato de que não podemos chegar ao fim do conhecimento. Mesmo que sejamos feitos de átomos, não podemos usar a física atômica para descrever nossa fisiologia ou comportamento.
Níveis de organização material diferentes requerem leis diferentes, e essas leis são novas e irredutíveis. Como afirmou o Prêmio Nobel de Física Philip Anderson, da Universidade de Princeton, “mais é diferente”. Não existe uma ponte direta que liga os elétrons ao amor. Usando as formigas de Wilson, o comportamento do grupo segue leis bem diferentes das que regem o metabolismo celular de cada formiga e, mais ainda, das que regem as propriedades dos seus átomos. Não existe uma continuidade entre o que ocorre com os átomos e o altruísmo de algumas formigas. A cada nível crescente de complexidade material, mudam as descrições e a metodologia. Caso contrário, economistas teriam que estudar mecânica quântica para examinar o comportamento do mercado de capitais.
Wilson acredita numa espécie de determinismo cósmico, baseado numa causalidade universal. Se o consciente humano é redutível a simples leis físicas, podemos relacionar nosso comportamento, nossas escolhas subjetivas, a uma teia de causa e efeito que teve início no próprio Big Bang. Nesse caso, a noção de livre-arbítrio seria uma ilusão “biologicamente adaptativa”, que nos protege contra o fatalismo: acreditando ter controle sobre nossas vidas, continuamos a nos reproduzir. Esse tipo de determinismo é inconsistente com a física quântica – em que existe uma incerteza essencial ao nível de cada partícula que pode tomar essa ou aquela propriedade (girar no sentido horário ou anti-horário, por exemplo).
Cada opção leva a uma história divergente. Ademais, se tudo é já definido, qual o ponto de Wilson em querer que tomemos o futuro em nossas mãos, que preservemos a Terra e seus habitantes, eliminando a guerra e a intolerância? Na prática, também, existem limites intransponíveis, dado que a aquisição do conhecimento científico depende da tecnologia usada nos instrumentos de medida. Basta comparar a astronomia antes e depois do telescópio, ou a biologia antes e depois do microscópio, para ver como esses campos do conhecimento avançam continuamente devido ao progresso dos instrumentos de observação. Ver mais não significa ver tudo. Pode haver um caminho para a unificação do conhecimento? Acredito que a proposta não faça sentido.
Cientistas e humanistas devem sim colaborar, encurtando as distâncias entre suas metodologias e objetivos. Existem muitas áreas em que as duas vertentes do conhecimento convergem e se beneficiam mutuamente. Por exemplo, na questão do livre-arbítrio ou na natureza da verdade; na questão de como as tecnologias digitais e genéticas vão determinar o futuro da nossa espécie; na questão do aquecimento global e do seu impacto econômico e social. Por outro lado, querer construir um único edifício do conhecimento é querer empobrecê-lo. Existem muitas formas de olhar para o mundo. Melhor do que chegar a um pressuposto fim onde tudo é um, é celebrar a pluralidade do saber, a natureza instável do conhecimento, fonte de nosso desejo de querer sempre buscar. Aceitar a incompletude do saber não é uma atitude derrotista; pelo contrário, é liberadora, pois entende que a busca não tem fim. E o que pode ser mais instigante do que saber que existirá sempre algo novo a ser descoberto?

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

Nenhum comentário:

Postar um comentário