quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Do mito à ciência: será que podemos entender a origem de todas as coisas?

          Essa é a “grande questão”, que nos acompanha desde o início da história, parte da tradição de praticamente todas as culturas que conhecemos. Do xamã ao cientista contemporâneo, a questão da origem de todas as coisas exerce um fascínio inescapável. No caso dos mitos de criação, narrativas religiosas da origem do mundo e da vida, na maioria das vezes um poder absoluto além do tempo e do espaço, encarnado em alguma divindade, cria o mundo e suas criaturas em um determinado momento do passado. Os deuses, por definição, não respeitam as leis da Natureza que regem o comportamento da matéria, seja ela inanimada ou viva. Em meu livro A dança do Universo, apresento uma classificação detalhada dos mitos de criação.
          A maioria deles descrevem a origem do mundo num momento do passado (como na Bíblia). Porém, alguns sugerem um Universo eterno, seja ele sem origem ou criado e destruído ciclicamente. A mente humana se depara com um obstáculo lógico intransponível quando se pergunta, como o fez Gottfried Leibniz no século XVII, “Por que existe algo em vez de nada?”. Para resolver esse dilema, bem antes, na Grécia Antiga, Aristóteles propôs a existência do Movedor Imóvel, uma divindade capaz de pôr o cosmo em movimento sem ter que ser movida, dando uma espécie de pontapé inicial na Criação. Daí por diante, processos de causa e efeito fazem o resto. O problema da origem de todas as coisas, portanto, se reduz à questão da Primeira Causa, a causa que deu início a todas as outras.
Esse é o desafio da cosmologia moderna, sugerir uma narrativa científica da origem de tudo que evita a questão da Primeira Causa e, claro, uma intervenção divina. Será que uma narrativa científica completa da criação é possível? Nos últimos cem anos, aprendemos muito sobre o Universo, graças aos esforços de milhares de cientistas. Sabemos que vivemos numa galáxia, a Via Láctea, que se formou em torno de 10 bilhões de anos atrás, num Universo que surgiu 3,8 bilhões de anos antes disso. Sabemos que o Universo vem expandindo desde sua origem, o que significa que galáxias estão se distanciando mutuamente. Portanto, se passamos o filme da história cósmica ao contrário, chegamos ao ponto inicial, a “singularidade”, quando a matéria estava comprimida num volume diminuto, atingindo densidades e temperaturas altíssimas.
Pensando no tempo linearmente do Big Bang em diante, os primeiros instantes permanecem obscuros. Porém, a cosmologia moderna pode reconstruir esse passado com segurança a partir de centésimos de segundo após o “bang”– quando os primeiros núcleos atômicos foram formados – até hoje, um feito intelectual extraordinário. Usando o acelerador de partículas no laboratório europeu CERN, em Genebra, na Suíça, podemos recuar ainda mais, até um trilhonésimo de segundo após o bang. Faltam alguns detalhes importantes, claro, mas o quadro geral é entendido. Indo mais para trás no tempo, aqueles primeiros instantes em direção à origem, as coisas complicam. Ao chegarmos na singularidade, presumivelmente o início de tudo, nos deparamos com a Primeira Causa.
Temos vários modelos teóricos que visam explicar o que ocorreu no início. Infelizmente, como não sabemos que tipo de partículas de matéria existiam no início da história cósmica além das que estudamos no CERN, são modelos ainda especulativos. Ao contrário do que escrevem vários cientistas influentes, incluindo o inglês Stephen Hawking, não temos a menor ideia do que ocorreu na singularidade. Mais importante ainda, mesmo que algum modelo científico funcionasse, seria apenas uma descrição parcial: uma história contada pela metade. Afinal, todo modelo científico usa leis e princípios na sua formulação. Esses princípios são o ponto de partida da ciência, sua Primeira Causa.
Para ir além, seria necessária uma metaciência capaz de explicar suas próprias origens. Dessa, nada sabemos. É impossível sair da caixa quando a caixa é tudo o que existe. Resta-nos continuar a expandir o conhecimento, com humildade e perseverança. Como escreveu o dramaturgo inglês Tom Stoppard, “é o querer saber que nos torna relevantes”.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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