Essa é a “grande questão”, que nos
acompanha desde o início da história, parte da tradição de
praticamente todas as culturas que conhecemos. Do xamã ao cientista
contemporâneo, a questão da origem de todas as coisas exerce um
fascínio inescapável. No caso dos mitos de criação, narrativas
religiosas da origem do mundo e da vida, na maioria das vezes um
poder absoluto além do tempo e do espaço, encarnado em alguma
divindade, cria o mundo e suas criaturas em um determinado momento do
passado. Os deuses, por definição, não respeitam as leis da
Natureza que regem o comportamento da matéria, seja ela inanimada ou
viva. Em meu livro A dança do Universo, apresento uma classificação
detalhada dos mitos de criação.
A maioria deles descrevem a origem do
mundo num momento do passado (como na Bíblia). Porém, alguns
sugerem um Universo eterno, seja ele sem origem ou criado e destruído
ciclicamente. A mente humana se depara com um obstáculo lógico
intransponível quando se pergunta, como o fez Gottfried Leibniz no
século XVII, “Por que existe algo em vez de nada?”. Para
resolver esse dilema, bem antes, na Grécia Antiga, Aristóteles
propôs a existência do Movedor Imóvel, uma divindade capaz de pôr
o cosmo em movimento sem ter que ser movida, dando uma espécie de
pontapé inicial na Criação. Daí por diante, processos de causa e
efeito fazem o resto. O problema da origem de todas as coisas,
portanto, se reduz à questão da Primeira Causa, a causa que deu
início a todas as outras.
Esse é o desafio da cosmologia moderna,
sugerir uma narrativa científica da origem de tudo que evita a
questão da Primeira Causa e, claro, uma intervenção divina. Será
que uma narrativa científica completa da criação é possível? Nos
últimos cem anos, aprendemos muito sobre o Universo, graças aos
esforços de milhares de cientistas. Sabemos que vivemos numa
galáxia, a Via Láctea, que se formou em torno de 10 bilhões de
anos atrás, num Universo que surgiu 3,8 bilhões de anos antes
disso. Sabemos que o Universo vem expandindo desde sua origem, o que
significa que galáxias estão se distanciando mutuamente. Portanto,
se passamos o filme da história cósmica ao contrário, chegamos ao
ponto inicial, a “singularidade”, quando a matéria estava
comprimida num volume diminuto, atingindo densidades e temperaturas
altíssimas.
Pensando no tempo linearmente do Big Bang
em diante, os primeiros instantes permanecem obscuros. Porém, a
cosmologia moderna pode reconstruir esse passado com segurança a
partir de centésimos de segundo após o “bang”– quando os
primeiros núcleos atômicos foram formados – até hoje, um feito
intelectual extraordinário. Usando o acelerador de partículas no
laboratório europeu CERN, em Genebra, na Suíça, podemos recuar
ainda mais, até um trilhonésimo de segundo após o bang. Faltam
alguns detalhes importantes, claro, mas o quadro geral é entendido.
Indo mais para trás no tempo, aqueles primeiros instantes em direção
à origem, as coisas complicam. Ao chegarmos na singularidade,
presumivelmente o início de tudo, nos deparamos com a Primeira
Causa.
Temos vários modelos teóricos que visam
explicar o que ocorreu no início. Infelizmente, como não sabemos
que tipo de partículas de matéria existiam no início da história
cósmica além das que estudamos no CERN, são modelos ainda
especulativos. Ao contrário do que escrevem vários cientistas
influentes, incluindo o inglês Stephen Hawking, não temos a menor
ideia do que ocorreu na singularidade. Mais importante ainda, mesmo
que algum modelo científico funcionasse, seria apenas uma descrição
parcial: uma história contada pela metade. Afinal, todo modelo
científico usa leis e princípios na sua formulação. Esses
princípios são o ponto de partida da ciência, sua Primeira Causa.
Para ir além, seria necessária uma
metaciência capaz de explicar suas próprias origens. Dessa, nada
sabemos. É impossível sair da caixa quando a caixa é tudo o que
existe. Resta-nos continuar a expandir o conhecimento, com humildade
e perseverança. Como escreveu o dramaturgo inglês Tom Stoppard, “é
o querer saber que nos torna relevantes”.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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