Lívia olha os homens que sobem a pequena
ladeira. Vêm em dois grupos. Lanternas dão um ar de fantasmagoria a
esta procissão fúnebre. Como que pressentindo a chegada, os soluços
de Judith redobram no quarto. Bastaria ver os homens de cabeça
descoberta para saber que eles trazem os corpos. Pai e filho morreram
juntos na tempestade. Sem dúvida um tentou salvar o outro e
pereceram no mar. No fundo de tudo, vinda do forte velho, vinda do
cais, dos saveiros, de algum lugar distante e indefinível, uma
música confortadora acompanha os corpos. Diz que é doce morrer no
mar...
Lívia soluça. Ampara Judith no seu
peito, mas soluça também, soluça pela certeza que seu dia chegará
e o de Maria Clara e o de todas elas. A música atravessa o cais para
chegar até eles: É doce morrer no mar...
Mas naquela hora nem a presença de Guma
que vem com o cortejo e foi quem descobriu os corpos, conforta o
coração de Lívia.
Só a música que vem de um lugar
indefinível (talvez seja mesmo do forte velho), dizendo que é doce
morrer no mar, lembra a morte do marido de Judith. Os corpos agora
estarão estendidos na sala, Judith chorando ajoelhada ao lado de seu
marido, os homens em torno, Maria Clara com medo que um dia Manuel se
afogue também.
Mas para que pensar nisso, pensar em
morte, em tristezas, quando o amor a espera? Porque estão na proa do
Valente, Lívia estendida no madeirame bem por baixo da vela
enrolada, espiando seu homem, que fuma sossegadamente no cachimbo.
Para que pensar em morte, em homens lutando contra as ondas, quando
seu homem está ali, salvo da tempestade, fumando um cachimbo que é
mesmo a estrela mais bonita deste mar? Mas Lívia pensa. Está triste
porque ele não vem apertá-la nos seus braços tatuados. E ela está
esperando, as mãos em baixo da cabeça, os seios meio aparecendo sob
o vestido que a aragem da noite, agora calma, suspende e balança.
Também o saveiro balança mansamente.
Uma espera e é bela nessa espera, ela é
a mulher mais bela da beira do cais e dos saveiros. Nenhum mestre de
saveiro tem uma mulher como Guma. Todos dizem isso e sorriem todos
para ela. Todos gostariam de tê-la nos braços musculosos das
travessias. Mas ela é somente de Guma, casou foi com ele na igreja
de Monte Serrat, onde se casam os pescadores, os canoeiros e os
mestres de saveiro. Mesmo marinheiros que viam por mar es longínquos,
em paquetes enormes, vêm casar na igreja de Monte Serrat, que é a
Igreja deles, trepada no morro, dominando o mar. Ela casou ali com
Guma, e, desde então, nas noites do cais, no seu saveiro, nos
quartos do Farol das Estrelas, na areia do cais, eles se amam,
confundem os corpos sobre o mar e sob a Lua.
E hoje, que ela tanto esperou na
tempestade, hoje, que ela tanto deseja porque muito temeu, ele fuma
sem pensar nela. Por isso, ela se recorda de Judith, a que não terá
mais amor, aquela para quem a noite será sempre a hora de chorar. Se
recorda, ela ficou atirada junto do seu homem. Olhava para o rosto
dele, aquele rosto que não se movia mais, que já não sorria, rosto
que já passara sob as ondas, olhos que já haviam visto Iemanjá, a
mãe-d'água.
Lívia pensa com raiva em Iemanjá. Ela é
a mãe-d'água, é a dona do mar, e, por isso, todos os homens que
vivem e m cima das ondas a temem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se
mostra aos homens, a não ser quando eles morrem no mar. Os que
morrem na tempestade são seus preferidos. E aqueles que morrem
salvando outros homens, esses vão com ela pelos mares em fora, igual
a um navio, viajando por todos os portos, correndo por todos os
mares. Destes, ninguém encontra os corpos, que eles vão com
Iemanjá. Para ver a mãe-d’ água, muitos já se jogaram no mar
sorrindo e não mais apareceram. Será que ela dorme com todos eles
no fundo das águas? Lívia pensa nela com raiva. A estas horas ela
estará com pai e filho que morreram na tempestade e talvez até que
eles lutem por ela, eles, que foram tão amigos toda a vida.
Morrendo, ainda o pai quis salvar o filho. Quando Guma encontrou os
corpos, a mão do velho segurava a camisa do filho. Morreram amigos,
e agora, quem sabe? Talvez que, por causa de Iemanjá, a dona do mar,
mulher, que só os mortos veem, eles estejam brigando. Raimundo
puxando a faca que os homens não encontraram no seu cinto porque ele
a levou consigo. Lutarão talvez no fundo das águas para saber quem
vai com ela correr os mares, ver as cidades do outro lado da Terra.
Judith que está chorando, Judith que tem um filho na barriga, Judith
que irá se acabar no trabalho duro, Judith que nunca mais amará um
homem, já estará esquecida porque a mãe-d'água é loira e tem
cabelos compridos e anda nua debaixo das ondas, vestida somente com
os cabelos que a gente vê quando a Lua passa sobre o mar.
Os homens da terra (que sabem os homens
da terra?) dizem que são os raios da Lua sobre o mar. Mas os
marinheiros, os mestres de saveiro, os canoeiros, riem dos homens da
terra que não sabem nada. Eles bem sabem que são os cabelos da
mãe-d'água, que vem ver a lua cheia. É Iemanjá quem vem olhar a
Lua. Por isso os homens ficam esperando o mar prateado nas noites de
lua. Porque sabem que a mãe-d'água está ali. Os negros tocam
violão, harmônica, batem batuque e cantam. É o presente que eles
trazem para a dona do mar. 0utros fumam cachimbo para iluminar o
caminho, assim Iemanjá verá melhor. Todos a amam e até esquecem as
mulheres quando os cabelos da mãe-d'água se estendem sobre o mar.
Assim está Guma, que olha o bojo de
prata das águas e ouve a música do negro que convida para a morte.
Ele diz que é doce morrer no mar, porque irão encontrar a
mãe-d'água, que é a mulher mais bonita do mundo todo. Guma está
fitando os cabelos dela, esquecido que Lívia está ali, o corpo
estirado, os seios se ofertando, Lívia, que tanto esperou a hora do
amor, Lívia que viu a tempestade destruindo tudo, derrubando
saveiros, matando homens. Lívia que muito temeu. Bem que Lívia
gostaria de tê-lo nos seus braços, de beijar a sua boca e nela
descobrir se ele teve medo quando as luzes se apagaram, de apertar o
seu corpo para saber se o mar o molhou. Mas agora ele está esquecido
de Lívia, ele só pensa em Iemanjá, a dona do mar. Talvez ele tenha
inveja do pai e do filho que morreram na tempestade e que agora
correrão os mundos que só os marinheiros dos grandes navios
conhecem. Lívia tem ódio, tem vontade de chorar, tem vontade de se
apartar do mar, de ir para muito longe.
Um saveiro passa. Lívia se suspende
sobre o braço para ver melhor. Gritam para Guma:
— Boa noite, Guma...
Guma sacode a mão: — Boa viagem...
Lívia olha para ele. Agora que um a
nuvem cobriu a Lua e Iemanjá foi embora, ele apagou o cachimbo e
sorri. Ela se encolhe toda já com prazer, já sentindo os seus
braços. Guma, fala: — Onde ‘taria cantando aquele negro?
— Sei lá... Parece que no forte.
— Bonita música ...
— Judith, coitada … Guma olha o mar.
— É mesmo... Vai cortar uma dureta. E
com um filho na barriga...
Seu rosto se fecha e ele espia para
Lívia. Ela está bela assim se ofertando. Ela não tem mãos para
trabalho duro. Se ele ficasse no mar, ela teria de ser de outro para
poder viver. Ela não tem mãos para trabalho duro. Esse pensamento
lhe traz uma raiva surda. Os peitos de Lívia aparecem sob o vestido.
Todos no cais a desejam. Todos gostariam de tê-la porque ela é a
mais bonita. E quando ele também for com Iemanjá? Tem vontade de
matá-la ali mesmo para que ela nunca seja de outro.
— E se um dia eu vir ar e der de comer
aos peixes? — seu riso é forçado.
A voz do negro atravessa novamente a
noite:
É doce morrer no mar...
— Você também cai no trabalho duro?
Ou vai com outro?
Ela está chorando, ela está com medo.
Também ela teme por esse dia em que seu homem fique no fundo do m
ar, em que nunca mais volte, quando for com Iemanjá, a dona do mar,
a mãe-d'água, correr mares e terras. Levanta-se e passa os braços
no pescoço de Guma: — Hoje tive medo. Lhe esperei na beira do
cais. Parecia que você não vinha nunca mais...
Ele vem. Sim, ele sabe quanto Lívia
esperou, quanto ela temeu. Ele vem para os seus braços, para o seu
amor. Um homem canta ao longe: É doce morrer no mar...
E agora sob a Lua não brilham mais os
cabelos de Iemanjá, a dona do mar. 0 que fez calar a música do
negro são os soluços de amor de Lívia, a mulher da beira do cais
que todos desejam, e que na proa do Valente muito ama o seu homem
porque muito temeu por ele e muito teme ainda.
Os ventos da tempestade já estão longe.
As águas das nuvens da falsa noite estão caindo noutros portos.
Iemanjá viajará com outros corpos por outras terras. Agora o mar é
sereno e doce. 0 mar é amigo dos mestres de saveiro. Pois o mar não
é a estrada, não é o caminho, não é a casa deles todos? Não é
sobre o mar, na proa dos saveiros, que eles amam e fazem seus filhos?
Sim, Guma ama o mar e Lívia também o
ama. 0 mar é belo assim de noite, azul, azul sem fim, espelho das
estrelas, cheio de lanternas de saveiros, cheio das lanternas das
brasas dos cachimbos, cheio de ruídos de amor.
O mar é amigo, o mar é doce amigo para
todos aqueles que vivem nele. E Lívia sente o gosto de mar da carne
de Guma. 0 Valente balança como uma rede.
Jorge Amado, in Mar Morto
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