De repente, rápida com o viera, a
tempestade foi para outros mares, naufragar outros navios. Lívia
ouvia agora os gemidos de Maria Clara. Não eram mais, porém, gritos
agudos de prazer e dor, gritos de animal ferido, que atravessavam a
tempestade com um ar de desafio. Agora, que pela cidade, pelo cais,
pelo mar, se estendia a verdadeira noite, a do amor e da música, a
das estrelas e da lua, o amor no saveiro de mestre Manuel era doce e
repousante. Os gemidos de Maria Clara eram como soluços de alegria,
quase em surdina, quase canção. Lívia tirou por um momento os
olhos do mar sereno e ouviu aqueles gemidos. Em breve Guma chegaria,
o Valente atravessaria a baía, e ela o teria entre os braços more
nos, e gemeriam de amor. Agora a tempestade cessara, ela já não
tinha medo. Não demoraria a enxergar a lanterna vermelha do saveiro
brilhando na noite do mar. Pequenas ondas batiam nas pedras do cais e
os saveiro s balouçavam mansamente. Ao longe, as luzes brilhavam
sobre o asfalto molhado da cidade. Grupos de homens que já não
tinham nem pressa, nem medo, se encaminhavam para o grande elevador.
Lívia se voltou para o mar. Há oito dias que não via Guma. Ela
ficara na casinha velha do cais. Não fora desta vez com ele para a
aventura sempre renovada da viagem pela baía e pelo rio calmo. Se ela estivesse no saveiro quando a tempestade desabara, teria sido
melhor. Ele ficaria temeroso pela vida da companheira, irias, no
entanto, Lívia não teria medo nenhum, porque estaria com ele, e ele
conhecia todos os caminhos do mar, seus olhos valiam como lanternas,
e suas mão s eram seguras no leme. Ele não tardaria a chegar. Viria
encharcado da tempestade, contando histórias, musculoso e risonho,
com o nome de Lívia e uma seta tatuados no braço. Ela sorriu. Seu
longo corpo moreno se voltou todo para os gemidos de Maria Clara.
Estava negro no cais, uma ou outra lanterna brilhava nos saveiros,
mas ela distinguia perfeitamente o de mestre Manuel, donde vinham os
gemidos. Lá estava ele amarrado ao cais, balouçando nas ondas. Ali
um homem e uma mulher se amavam e os seus gemidos chegavam até
Lívia. Mais tarde, daqui a bem pouco tempo, seria ela quem na proa
de um saveiro apertaria contra o seu corpo o corpo forte de Guma,
beijaria os seus cabelos morenos, sentiria o gosto de mar do seu
corpo, o gosto de morte que ainda haveria nos seus olhos mal chegados
da tempestade. E os seus gemidos de amor seriam mais doces do que os
de Maria Clara, porque estariam cheios da longa espera e do medo que
a invadira. Maria Clara deixaria de arriar para ouvir a música de
soluços e de risos que sairia de seus lábios quando Guma a
apertasse, a prendesse, nos seus braços molhados do mar.
Um mestre de saveiro passa e deseja
boa-noite a Lívia. Um grupo mais longe examina a vela do saveiro que
virou. Ela está muito branca, rasgada, perto do cais. Homens já
partiram num saveiro para ir procurar os corpos. Mas Lívia pensa em
Guma, que está a chegar, e no amor que a espera. Será mais feliz que Maria Clara, que não esperou, nem teve medo.
— Sabe quem morreu, Lívia? — Ela se
assusta. Mas aquela vela não é a do Valente. A do seu saveiro é
bem maior e não se rasgaria assim. Lívia se volta e pergunta a
Rufino: — Quem foi?
— Raimundo e o filho. Viraram bem perto
da cidade. A tempestade estava braba.
Nessa noite — pensa Lívia — Judith
não terá amor na sua casinha, nem no saveiro do seu marido.
Jacques, o filho de Raimundo, morrera. Irá até lá. Depois que Guma
chegar, que matarem as saudades, que se amarem. Rufino olha a Lua que
sai: — Já foi gente buscar os corpos.
— Judith já sabe?
— Eu vou dizer...
Lívia olha o preto, gigantesco e cheira
a cachaça. Andou bebendo, com certeza, no Farol das Estrelas. Porque
será que ele olha a lua cheia que sobe para o meio do mar e ilumina
tudo com uma réstia prateada? Maria Clara ainda soluça de amor.
Judith não terá amor esta noite. Lívia amará quando Guma chegar
molhado da tempestade, com gosto de mar. Como está belo o mar com a
Lua alvejando tudo! Rufino está ali parado. Do forte velho vem uma
música. Tocam harmônica. E, cantam: A noite é para o amor...
Voz possante de negro. Rufino olha a Lua.
Talvez ele pense, também, que Judith não terá amor esta noite. Nem
nunca mais... o seu homem morreu no mar.
Vem amar nas águas, que a Lua
brilha...
Lívia pergunta a Rufino:
— Judith ainda está morando com a mãe
dela?
— Não. A velha velejou para
Cachoeira... — Disse isso sem jeito, es piando a Lua. Um negro está
cantando no forte velho, mas a sua canção não consolará Judith.
Rufino, estende a mão: — Vou me botando...
— Depois vou lá...
Rufino dá uns passos. Pára:
— É coisa triste... Ruim de se
falar... Dizer que morreu…
Coça a cabeça. Lívia ficou triste.
Nunca mais Judith amará. Nunca mais virá amar, no mar, na hora em
que a Lua brilha. Para ela, a noite não será mais para o amor, será
para as lágrimas. Rufino joga as mãos para a frente: — Vem
comigo, Lívia. Você sabe dizer...
Mas o amor a espera, Guma chegará em
breve no Val ente, a lanterna vermelha não tardará a brilhar, não
demorará a hora de os corpos se apertarem. Não tardará que ele
passe sob a réstia de luz que a Lua estendeu no mar. 0 amor a
espera, Lívia não pode ir. Naquele dia, depois do medo, depois da
visão de Guma se afogando, ela quer amor, quer alegria, gemidos de
posse. Não pode ir chorar com Judith, que nunca mais amará.
— Estou vendo se Guma chega, Rufino. —
Será que o negro vai pensar que ela é ruim? Mas Guma não demorará.
Fala: — Depois vou lá...
Rufino abana as mãos:
— Então, boa noite.
— Até logo...
Rufino dá mais uns passos sem vontade.
Olha a Lua. Ouve o homem que canta:
Vem amar nas águas, que a Lua
brilha...
Volta-se para Lívia:
— Você sabia que ela 'tá prenha?
— Judith?
Saiu andando. Ainda olha a Lua. Do forte
velho cantam:
A noite é para o amor...
Maria Clara soluça e ri nos braços do
seu homem. Lívia sai quase correndo e grita para Rufino, cuja sombra
se vê ao longe: — Eu vou com você...
Vão andando. Ela ainda olha o mar
longamente. Quem sabe se aquela lanterna que brilha ao longe não
será a do Valente.
Judith é mulata e a barriga já se
estende, deformando o vestido de chita. Estão todos em silêncio. 0
preto Rufino abana as mãos, não tem onde botá-las, olha os outros,
espantado. Lívia é toda ela um gesto de conforto, as mãos
amparando a cabeça de Judith. Outros já chegaram. Deram pêsames e
ali, em volta da sala, esperam que tragam os corpos que os homens
procuram no mar. Donde está Judith vêm soluços entrecortados, e as
mãos de Lívia se erguem em gestos carinhosos. Depois, entraram
mestre Manuel e Maria Clara, ela com os olhos pisados.
Nada recorda mais a tempestade. Nem Maria
Clara soluça mais de amor. Porque então Judith chora? Judith está
viúva, os homens esperam dois corpos. Bem que o preto Rufino,
gostaria de ir embora, de fugir dali, de ir para a alegria dos braços
de Esmeralda . Ele sofre a tristeza da casa, a dor de Judith, está
sem ter onde botar as mãos, e sabe que sofrerá mais ainda quando o
corpo entrar e Judith tiver o último encontro com o homem que a
amava, que lhe fez um filho, que possuí a seu corpo.
Lívia é que tem coragem. Ainda é mais
bela assim. Quem não gostaria de casar com Lívia e ser chorado por
ela quando morresse no mar? Ela, nessa hora, é como uma irmã de
Judith.
Decerto ela também tem vontade de fugir,
de ir esperar Guma na beira do cais para uma noite sob as estrelas. 0
sofrimento de Judith dói em todos e Maria Clara pensa que um dia,
talvez, mestre Manuel fique no mar, numa noite de tempestade, e que
Lívia deixe de esperar Guma para vir dar a notícia. Aperta com
força o braço de mestre Manuel, que pergunta: — Que é ? — Mas
ela está chorando e mestre Manuel fica mudo. Trouxeram uma garrafa
de cachaça. Lívia leva Judith para o quarto. Maria Clara vai com
elas e agora substitui Lívia que chora com a viúva, chora por ela
própria.
Lívia volta para a sala. Agora, os
homens conversam em voz baixa, comentam a tempestade, falam do pai e
do filho que morreram nesta noite. Um negro diz: — O velho era um
macho bom... Coragem como três...
Um outro começa a contar uma história:
— Vocês se lembram daquele temporal de
Junho? Pois Raimundo...
Alguém abre a garrafa de cachaça. Lívia
atravessa o grupo e chega até a porta... Ouve o ruído do mar
sereno, ruído sempre igual, ruído de todos os dias. Guma não deve
tardar e sem dúvida a virá procurar na casa de Judith. Nas trevas
do cais ela distingue as velas dos saveiros. E, de repente, a assalta
o mesmo receio que assaltara Maria Clara. E se, numa noite, lhe
viessem trazer a notícia de que Guma estava no fundo do mar e o
Valente vogava sem rumo, sem leme, sem guia? Só então ela sentiu
toda a dor de Judith, se sentiu totalmente sua irmã, irmã também
de Maria Clara, de todas as mulheres do mar, mulheres de destinos
iguais: esperar numa noite de tempestade a notícia da morte de um
homem.
Do quarto, vêm os soluços de Judith.
Ficou com um filho na barriga. Talvez, um dia, ainda chore, também,
a morte desse filho, no mar. No grupo da sala um homem fala: —
Salvou cinco... Era uma noite de fim de mundo... Muita gente viu a
mãe d'água nessa noite. Raimundo...
Judith soluça no quarto. É destino de
todas elas. Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua
vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse.
O mar é dono de todos eles. Do mar vem
toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os
marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos
mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e
contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a
música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a Lua é
bela? 0 mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos
saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da
terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e
jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens de terra.
Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um
braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade
despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções
de amor nas noites do cais? Qual deles não sabe amar com violência
e doçura? Porque toda a vez que cantam e que amam, bem pode ser a
última. Quando se despedem das mulheres não dão rápidos beijos,
como os homens da terra que vão para os seus negócios. Dão adeuses
longos, mãos que acenam como que ainda chamando.
Jorge Amado, in Mar Morto
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