sábado, 20 de fevereiro de 2021

A mãe dos cangaceiros / 2

          A Roqueira ficava às margens do rio Moxotó, trepada na serra do Cambembe e pertencia ao capitão Custódio dos Santos, gente de família dos antigos da terra que para ali vieram tangidos pelas secas. A terra era boa de tudo.
O capitão Custódio, logo que a velha apareceu com o filho às portas de sua casa, tratou-a como de sua igualha, mandando-a para o sítio, de casa de telha e de parede de barro, com casa de farinha ao lado e cercado de pedra. Sinhá Josefina ali ia encontrar tudo como se estivera no seu Araticum. Só lhe faltavam mesmo os seus trastes. Os utensílios da nova morada davam bem para serventia de duas bocas. O necessário estava ali. Quando no outro dia lhe apareceu o capitão, parando na porta de frente, viu que não estaria abandonada. O velho amarrou, ele mesmo, o cavalo no pé de juazeiro e veio conversar. A princípio querendo esconder as suas intenções, mas logo depois se abriu com a maior franqueza:
Senhora dona Josefina, o seu filho Aparício escolheu este lugar para sua pousada. Quando ele aparece por aqui, acoita-se neste cocuruto de serra e ninguém, nem de longe, vai pensar que Aparício Vieira descansa nestas quatro paredes, criando sustância para as lutas contra o governo. Deus me livre de que alguém pudesse saber disto. Gosto de Aparício e sei que ele não faz mais do que tem que fazer um sertanejo de vergonha na cara. O governo é que é tirano. Senhora dona Josefina, só o governo é capaz de fazer o que estão fazendo por aí. Vivo no meu buraco para não saber nada deste mundo. Desde que mataram o meu filho Luís Filipe, em Jatobá, numa feira, a mando do miserável Cazuza Leutério, que eu daqui não saio e aqui morrerei. Já disse mesmo à minha gente: “O corpo de Custódio dos Santos será comido por esta terra de Cambembe. Não me levem para Tacaratu, não quero que desgraçado nenhum daquelas bandas olhe para a minha cara, mesmo depois de morto.”
Sinhá Josefina ouviu calada a conversa comprida do capitão. Bentinho estava lá embaixo na grota, e enquanto o homem lhe falava ia ela notando as feições amigas do velho. Podia ter idade avançada, mas não apresentava nenhuma fraqueza. Cabelos brancos aparados rente, a barbinha, os olhos azuis, os trajes de brim riscado e as botas até o joelho onde guardava do lado esquerdo um punhal de cabo de osso. Falou-lhe sinhá Josefina da viagem de agruras, e não tinha palavras para agradecer todas aquelas atenções. O seu filho Aparício saberia pagar por ela as bondades do capitão. O filho Bentinho era homem capaz de aguentar a família. Tinha idade diminuta mas era rapaz de juízo, cordato, de natureza boazinha. O capitão podia contar com ele para qualquer serviço. Deus Nosso Senhor que livrasse esse seu filho do cangaço.
Senhora dona Josefina, razão tem a senhora para muito sofrer e eu sei bem o que é ser uma mãe de cangaceiro. Sei o que é uma dor sofrida por um filho, neste mundo. Vi o meu chegar numa rede, de corpo todo furado de punhal. Vi a minha finada mulher, a pobre Doninha, abraçada com o corpo estendido na minha porta. Fiz uma força danada para não me entregar. Fui com estas mãos cavar a cova para o pobrezinho. Eu mesmo furei o buraco e eu mesmo cobri tudo de terra. Está ele ali no canto do cercado. Era o meu filho, o que tinha sobrado da cambra de sangue do ano de 1884. Meninão, bicho bom para todo e qualquer trabalho. Esta terrinha de serra ele sabia lavrar como se fosse um homem de Brejo, e o gado nas mãos dele estava nas mãos de um pai. Posso dizer à senhora que nunca me deu o menor desgosto, que não seja o da morte. Mataram o menino na feira de Jatobá. Foi o Cazuza Leutério. Este desgraçado é o dono de todo este sertão infeliz. Sobe partido e desce partido e o desgraçado vai ficando. O menino estava em Jatobá para o trato de uma vendagem de rapadura e um cabra de Cazuza Leutério afrontou o menino. Aí ele se fez nas armas e o cabra pagou a ofensa. O punhal do menino furou. Lá nele, no vão esquerdo, o bicho caiu ciscando. Foi quando a força do destacamento partiu para cima do menino. O sargento Donato disparou logo a carabina e os outros foram de facão como se quisessem acabar com um cachorro doente. Eu só sei é que um dos praças não ficou para contar a história. Mataram o menino. Fizeram renda no corpo dele. E mandaram deixar ele aqui na minha engenhoca com um recado do Cazuza Leutério: “Diga ao capitão Custódio que a jararaca dele não morde mais boi manso.” O menino não era uma jararaca, dona Josefina. Era até brando demais, trabalhador. O que era o que devia fazer? Não tinha mais filho, mas tinha vergonha. Cazuza Leutério está vivinho da silva, manda nas eleições e no júri e este seu criado aqui neste fundo de serra, fazendo rapadura, criando um gadinho. Tinha comigo um negro que vivia me impeticando: “Capitão, vossa mercê sabe que o coronel Cazuza Leutério tem um filho nos estudos. Vossa mercê sabe que ele sai de Jatobá para a Bahia e que atravessa o rio na canoa de Joca Lopes?” O diabo do negro não me deixava em paz. Eu não queria briga com o Cazuza. A minha mulher Doninha morria devagar como um passarinho. Lá um dia o negro Fidélis desapareceu da Roqueira. Não me disse para onde ia. Uma semana depois chegou a notícia por um tangerino que passou pela minha casa atrás de uma rês fugida. Tinha acontecido com o negro Fidélis uma desgraça. Ele estava na estrada, bem na passagem do São Francisco, de clavinote descansando debaixo de um pé de juazeiro. E com a arma escorada se pôs a dormir. Sucedeu que por perto estourou uma boiada e o negro acordou assustado. E com o rompante bateu na arma que disparou e veio ferir o pobre bem nos peitos. Pelos urubus deram com o corpo dele. A minha mulher Doninha quando soube do acontecido caiu no pranto. Num pranto desesperado. Nunca pensei que ela tivesse tanta força para chorar. Senhora dona Josefina, foi choro como eu nunca ouvi de ninguém. No outro dia, estava em cima da cama e me disse: “Custódio, eu tinha mandado o negro Fidélis para o serviço. Deus não quis que ele chegasse no fim do meu mandado. Custódio, o nosso filho não foi vingado. E para que viver com ele morto nas nossas costas?” Uma semana depois Doninha morreu. Estava branquinha, sem uma gota de sangue. Enterrei a pobrezinha, ali junto do filho. Cazuza Leutério formou o filho e deu festa. Dançaram em Jatobá três dias e três noites. Ele manda nas eleições e no júri. Ele manda no governo. Ele só não manda no vosso filho Aparício.
Os olhos azuis do velho cobriram-se de névoa. Sinhá Josefina não teve coragem de romper o silêncio que se estabeleceu. Aí foi chegando Bentinho. O capitão levantou-se para apertar-lhe a mão:
Menino, você está muito magro.
Bentinho sorriu e passou logo à conversa:
Capitão, eu estou aqui para o trabalho. A minha mãe já deve ter falado com o senhor.
Não precisa falar coisa nenhuma. A família de Aparício Vieira é minha família. Aqui está nesta Roqueira em terra sua. Quando o amigo Aparício mandou a sua mãe para aqui é porque sabe o que vale a nossa amizade. E depois eu vinha mesmo falar neste assunto: senhora dona Josefina eu tenho em meu poder uma quantia para vos dar. Mandou-me Aparício com a ordem de passar às vossas mãos. É dinheiro dele.
E arrastou da bota um pacote passando às mãos da velha.
Não contei, senhora dona Josefina. Como me chegou aí está. Agora para que não dê na vista o menino deve cuidar de ir lá para a engenhoca. Tenho trabalho maneiro para ele. Ninguém pode imaginar que aqui neste cocuruto de serra está a mãe do maior sertanejo de Pernambuco. Ninguém lá em casa vai saber de nada. Disse que tinha chegado do Pajeú uma família aparentada com a gente de Doninha e todo mundo acredita. Cazuza Leutério está bem certo que o capitão Custódio dos Santos é um cachorro, um camumbembe, sem vergonha na cara, capaz de sofrer a maior afronta calado e quieto como qualquer pé-rapado. Eu sei e todo mundo sabe nessa redondeza que Cazuza Leutério enricou no contrabando de cachaça para o outro lado do rio. Menino, quero te dar um conselho: fica por aqui com tua mãe e não arreda o pé um minuto. O teu irmão Aparício me disse: “Capitão Custódio, o cangaço tem as suas obrigações. A minha mãe muito tem sofrido pelo filho que tem. E eu quero fazer tudo para que ela não padeça mais por minha causa.”

Começou a escurecer. Naqueles ermos, os bichos da noite, mal o sol se escondia, davam para gritar, para gemer, para piar. O canto dos passarinhos baixava de tom, mas a tristeza crescia de tamanho, para cobrir tudo de uma paz de fim de mundo. O capitão se despediu. Queria, porém, dizer alguma coisa:
Pode estar certa, senhora dona Josefina, que não vai aparecer ninguém aqui para vos aborrecer. Neste oco do mundo não vai bater homem nem mulher. Para todos da fazenda eu disse que tinha cedido este sítio para uma parenta viúva de Doninha. E o que eu digo o povo acredita com fé. O menino pode aparecer, trabalhar no serviço que quiser. Precisa não bater com a língua e nem ir com a conversa de ninguém. Só tenho gente de confiança, mas a vida de Aparício Vieira é a salvação destas terras. Se não fosse ele, em cada canto havia um Cazuza Leutério.
Despediu-se e da montaria ainda fez um sinal cerimonioso, com o chapéu. E os passos do seu cavalo soaram na boca da noite como se fosse um ruído de cavalhada. Os passarinhos bateram asas do juazeiro, assustados. Sinhá Josefina olhou para Bentinho, e aquele seu olhar tinha muita coisa para dizer. O filho baixou a cabeça e as palavras da mãe foram chegando duras e terríveis:
Meu filho, Deus nos condenou para sempre. O castigo de Aparício, o castigo de Domício, o castigo de teu pai, dói na gente e há de doer para o resto da vida. Deus quer e Deus manda. Tu fazia melhor sumindo de perto de mim. Há tanto lugar no mundo para um homem viver. Será que a minha vida vai ser o teu castigo?
Bentinho não teve coragem para olhar a mãe naquele instante de mágoa tão profunda. Vontade tinha de abraçá-la e beijar-lhe as mãos. Tinha que ser homem. E como homem governar a casa. E foi com essa coragem desesperada que ele conseguiu falar-lhe:
Mãe, para os castigos de Deus o homem deve ter coração forte e a alma com força para não se acabar.
Não, meu filho, Deus me abandonou mesmo. Eu vi o sangue do povo empapando a terra. Eu vi cachorro lambendo o sangue do povo. Sangue, meu filho, sempre sangue no meu caminho. Aparício está matando. Domício, que tinha a alma de moça donzela, está matando. E tu, meu filho, tu, tu se não fugires desta minha vida vais terminar matando como os outros.
O vento da noite naquele pico de serra começava a correr. Bentinho acendeu o candeeiro e uma nuvem de mosquitos encheu a casa.
Vamos ter chuva — disse a mãe, com voz firme e sem mágoa. Era a mãe do Araticum que voltava.

José Lins do Rego, in Cangaceiros

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