Sinhá Josefina já estava ali há mais
de dois anos. Viera tangida pela fúria dos soldados que haviam
destroçado o reduto do Santo, em Pedra Bonita. E ali ficara, depois
de longas caminhadas pelas caatingas, acompanhada do filho Bentinho.
Léguas e léguas andaram, como se fossem retirantes, de fazenda em
fazenda, a pedir a um e a outro uma coité de farinha que lhes
matasse a fome, e pés roídos pelos espinhos e olhos fundos de
sofrimento. O filho Aparício, na hora da fuga, no momento em que
preparava os homens para caírem na caatinga, lhe dissera: “Mãe,
Bentinho vai te levar para Roqueira; lá tem um lugar num sítio do
capitão Custódio, onde a senhora pode ficar.”
E o tiroteio da força que apertava o
cerco não deixou que Aparício continuasse.
— Compadre Vicente — gritou ele —,
aguenta o fogo no boqueirão. Sustenta a pisada com os
“mata-cachorros”.
Despediram-se da vista agoniada da mãe.
Bentinho e a velha deitaram-se no chão da latada, e o zumbido das
balas tinia nos seus ouvidos. A gritaria no arraial parecia um fim de
mundo. O fogo ganhava as palhoças lá de cima. Com o rosto pregado
na areia, com o corpo moído de medo, Bentinho se deixou vencer pelo
pavor da morte.
Chorava, as suas lágrimas molhavam a
terra quente. Longe ficara o padre Amâncio, na ânsia da agonia, o
padrinho a morrer, atrás da bondade de Deus para a sua última hora,
para o fim de uma vida de santo. Num relance Bentinho viu que tudo
para ele mudara, de uma vez para sempre. A Vila do Açu se perdera, e
agora ficava como numa distância de mil léguas. O seu mundo era
aquele das balas, do fogo, da morte. E assim ficaram horas. Quando a
noite chegou só se ouvia o gemido dos que ficaram estendidos pelo
chão. A mãe sentada, com as mãos pegadas nas suas mãos, mãos
quentes, mãos de energia e de quem ainda tinha força para proteger,
foi lhe dizendo:
— Menino, agora é como Deus quiser.
Eles mataram o Santo e o sangue que entrou de terra adentro é sangue
que não seca mais nunca. Pode o sol ser o rei do mundo que não terá
quentura para secar esta terra desgraçada.
Meu filho, esta vai ser a terra de sangue
que vai toda a vida pedir vingança. E calou-se. O céu de estrelas,
da escuridão, como milhões de olhos para verem o fim de um povo
devastado. Tinha-lhe morrido o marido, oito dias antes da chegada, às
carreiras, de Bentinho. Morreu de repente, sem um gemido. Quando
olhou para a rede viu o marido de braços arriados. Correu para perto
com a certeza do que havia acontecido. Bentão entregou a alma ao
Criador, sem ter feito um sinal para ela. Domício chorou muito. E
romeiros vieram cercar o corpo. Os gemidos do velório cobriram as
cantigas das ladainhas das mulheres da latada do Santo. Ela não
chorou, o seu coração não se aluiu com o passamento do marido.
Porque para ela Bentão era um morto em pé, homem já sem vida, no
alheamento das coisas da terra, entregue somente aos caprichos
daquele pegadio com o bode. Triste foi o berreiro com que o animal
pareceu chorar o defunto. Era como se fosse coisa de gente e gente de
natureza boa. Precisou Domício sair com ele para longe e amarrá-lo
na caatinga. Foi quando Aparício entrou no arraial. Viu o filho à
frente dos cangaceiros, de chapéu de couro, de rifle nas costas, de
punhal atravessado. Os cabras encheram as latadas de risadas, de
pabulagens, de histórias de briga. Aparício chegou para a latada da
mãe e tomou-lhe a bênção, manso como um cordeiro. E sentou-se ao
seu lado de chapéu na mão, falando macio:
— Mãe, por que a senhora não vai
embora daqui? Tenho inté notícia de que vem tropa pra acabar com o
Santo. Eles matam tudo, mãe. Não vai ficar ninguém para semente.
Vim praqui só pra vê se dou um jeito no homem. O tenente Maurício
entregou a alma ao diabo. Só não toquei fogo naquelas desgraças
porque não é da vontade de Deus. A terra e os urubus que comam
aquelas desgraças. Eu sei que a força do governo está no Açu,
pronta para o ataque. Vou falar pro Santo. Este povo não tá com a
cabeça no lugar. Inté Domício tá crente na força do homem. Eu
sei, mãe, que a gente não paga inocente. O sangue da gente é
sangue que ofendeu a são Sebastião. Mas o meu rifle não tem medo
de praga. Mãe, saia deste lugar. O velho morreu, Bentinho está no
Açu. Tem um sítio na Roqueira do capitão Custódio. Lá a senhora
vai viver no escondido, sem que o governo venha a saber quem é a mãe
de Aparício.
O chefe parou de falar e a velha Josefina
só fez lhe dizer:
— Meu filho Aparício, Deus te mandou
pra que o nosso povo saiba mesmo que a maldição não parou. O teu
rifle não pode mais que o rosário do Santo. A tua força faz tremer
o sertão. É a força dos malditos da nossa raça, da raça do teu
pai que a terra vai comer. Tu, Aparício, não para mais nunca. E me
deixa, meu filho, me deixa com os últimos anos desta vida. Eu quero
viver até o fim, eu quero carregar esta cruz nas costas, Aparício.
Vai pro Santo e pega com ele um taco da força que ele tem. A tua
força, Aparício, é a do sangue que corre nas tuas veias, é a
força do teu avô, o home que era mais duro que o pau-ferro. Vai
beijar a mão do Santo, Aparício. Que ele passe a mão no teu rifle,
que ele toque no teu punhal, para ver se assim Deus possa entrar no
teu corpo ruim.
— Mãe, eu só quero a tua bênção.
E levantou-se. Por perto da latada
ajuntaram-se romeiros para ver de perto o rei do sertão. Os olhos de
Aparício pousaram na multidão espantada. E ele, já de posse da sua
autoridade, gritou para o povo:
— Não sou bicho não.
A multidão recuou como se uma onça
furiosa tivesse avançado sobre ela. Os cabras de Aparício chegaram
para perto do chefe, atrás de ordem. Ele, porém, baixou outra vez a
cabeça, e voltou-se para a latada onde a mãe sentada no chão seco,
calada, murcha, era tudo que ele tinha no mundo. Ouviam-se as
ladainhas das mulheres do Santo. Aparício estava parado e os cabras
não se mexiam. Romeiros estarrecidos esperavam que a onça desse o
seu bote de fera. Aparício não se mexeu. Aí foi quando se ouviu,
no silêncio da caatinga, um grito mais alto do que o das seriemas
nas correrias. O Santo, de barbas até o peito, camisa de azulão,
apareceu no outro lado. A figura magra do homem arrancou o povo do
medo e todos correram para ele numa confusão de pânico. Caíram de
joelhos. A ladainha fanhosa encheu o mundo. Aparício e os cabras
permaneceram de pé. A mãe Josefina levantou-se e foi caminhando
para o filho:
— Aparício, meu filho, para aqui não
vieste para acabar com a tua mãe, para matar a tua mãe, para cuspir
na cara da tua mãe, para pisar a madre que te pariu. Aparício, meu
filho, ali está a força que pode mais que o teu rifle, uma coisa
que fere mais no fundo que o teu punhal. Vai para ele, Aparício.
A palavra da velha conduzia o filho como
se empurrasse um cego na estrada. O Santo gritava, gritava com um
vozeirão de roqueira. Aparício e os cabras chegavam para ele. E ele
que tinha aos seus pés milhares de criaturas parecia não enxergar
os cangaceiros de chapéu na cabeça. De repente, porém, como se os
seus olhos se abrissem, olhou fixamente para Aparício e os seus
homens. E manso, tal uma ventania que se abrandasse numa brisa
mansinha, fixou no terror das caatingas a sua atenção. Com a voz de
homem para homem, não mais de santo para impuros, foi dizendo:
— Deus do céu e o meu santo mártir
são Sebastião te mandou para perto de mim.
E marchou para o meio dos cangaceiros,
rompendo por entre os romeiros que caíam a seus pés, com a cabeça
erguida e as barbas açoitadas pelo vento. Aparício, quando viu-o de
perto, ajoelhou-se. O rifle caiu-lhe das mãos, enquanto o Santo
punha-lhe na cabeça os dedos magros. Podia-se escutar os rumores dos
bichos da terra naquele silêncio de mundo parado. E soturno, com a
voz que saía de uma furna, o Santo ergueu para o céu o seu canto. E
as ladainhas irromperam de todos os recantos do arraial. Muitos
cangaceiros começaram a chorar. Aparício, porém, possuiu-se de
fúria, e era uma fera acuada, com milhares de cachorros na boca da
toca. E ergueu-se. E já com o rifle na mão esquerda fitou o Santo,
cara a cara, e com a mão direita cheia de anéis puxou o punhal da
bainha e disse aos berros:
— Povo, eu não tenho medo.
José Lins do Rego, in Cangaceiros
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