Tinha tudo para não abrir mão da vida,
a Valentina Vitória: era bonita com aquele cabelo comprido, cheio e
cacheado, tinha pai e mãe que viviam de mãos dadas, sabia o
significado de muitos nomes – detalhe que apregoava a todo
instante, como se o significado dos nomes das pessoas resolvesse
oitenta por cento dos problemas –, e, principalmente, fazia cocô
toda manhã. Isso mesmo, dizia que fazia cocô toda manhã, e que
isso lhe garantia saúde e entusiasmo.
Maria pensava nessas coisas, pensaria
nessas coisas pelo resto da vida, porque de fato a Valentina Vitória
era um dos mais belos e mais terríveis mistérios.
Mas Maria precisava pensar em outras
coisas.
Penteava o cabelo, mas não penteava o
cabelo. Via o espelho, as muitas lâmpadas pequenininhas formando um
retângulo todo iluminado, mas não via as lâmpadas, não via o
espelho. Era só ele que ela via.
Acontecesse tudo, a casa fosse levada
pela enchente, telhas e móveis carregados pelas águas barrentas; ou
a mãe enlouquecesse e ela tivesse que visitá-la num sanatório,
escutá-la dizer mil vezes que tem três filhas, uma se veste de fé,
roupa azul, a outra de esperança, roupa verde, a outra de caridade,
rosa; ou ela, a única filha de fato, nunca mais comesse biscoito de
queijo com café quentinho, essa sim, a maior das tragédias, ainda
assim, não esqueceria aqueles olhos negros, aquelas mãos
inteligentes, aquela voz rouca.
Entrara distraída no palco. Ele começava
a compor o cenário.
– Boa tarde...
Ela disse, mas não olhou para as peças
de madeira e de tecido, não teve tempo, conhecia aquela voz:
– Boa tarde. Sou o cenógrafo... É a
protagonista, não é? Vi sua foto com o diretor, ele estava levando
pra gráfica. Aliás, esse folheto de divulgação vai sair um pouco
em cima da hora, não acha?
Aquela voz rouca. Então ela o fitou, sem
timidez. Sabia que o reencontraria. Sabia. Ele interrompera o
trabalho, olhava-a.
– Eu me lembro de você. É o rapaz da
praça Raul Soares.
Ela disse, com o coração atabalhoado.
– Eu me lembro de você. Quando vi a
sua foto hoje, nem sei dizer o que senti.
Ele disse, aproximando-se.
– Sempre me lembro de você.
Ela confessou, com um sorriso que
crescia.
– Eu também sempre me lembro de você.
Ele confessou, aproximando-se mais.
E depois ele ainda disse:
– Eu tinha a sua imagem. A sua imagem
está o tempo todo comigo. Uma mocinha meio perdida em Belo
Horizonte, que ficou olhando pro meu desenho... Que não sabia
direito onde era o Mercado Central... Você é a mocinha do Mercado
Central.
Ela deixou que ele tomasse entre as dele
as suas mãos trêmulas:
– Você viu o meu nome artístico no
folheto. O verdadeiro você ainda não sabe.
– Daqui a pouco eu vou saber...
Promete?
Ela respondeu, guiada por aqueles olhos
negros:
– Primeiro, quero te dizer que a sua
imagem também está sempre comigo.
Então ele disse, como se fosse frase de
uma peça de teatro:
– Todas as coisas podem acontecer, a
partir de uma imagem.
Eles ficaram de mãos dadas. E ficaram
naquele instante, ficaram em silêncio, ficaram em dúvida, não
ficaram em dúvida. Ficaram.
Beijaram-se na boca. Foi um beijo longo,
tão esperado, e então não havia mais nada; nem palco, nem
cenógrafo, nem atriz.
Mas havia todas as coisas.
Mas antes, havia a mãe da Valentina
Vitória, que qualquer coisa que fosse dizer começava com imagina.
Era muito engraçado. Para a mãe da amiga – nunca perguntara o
nome dela, que falta de educação –, tudo começava com imagina.
“Imagina, vou chamar a minha filha, eu
gosto muito da amizade de vocês.”
“Imagina, acabei de assar um bolo de
chocolate, vocês vão merendar.”
“Imagina, a sua mãe está boa?”
“Imagina, sabia que a gente morava num
lugar onde ventava quase o tempo todo?”
“Imagina, pode entrar, ela já vem.”
E a filha da imagina, a Valentina
Vitória, sabia de cor inúmeros significados de nomes de pessoas,
vivia falando os tais significados, dizia que o nome de certa forma
determina o destino do dono do nome, a Valentina Vitória querendo
provar que sabia muitas coisas sobre as pessoas porque sabia o
significado do nome de cada uma; imagina, ter uma amiga assim
facilita muito a vida, pensava, com um risinho incontido.
O melhor de tudo, o mais divertido mesmo,
era que a filha da imagina era mágica. Assim:
“Isso é mágico, sabe?”
“Cada nome tem a sua magia.”
“A mágica da vida é exatamente esta.”
“Uma magia essa coisa de respirar e se
emocionar.”
“O mágico é que eu cheguei no momento
exato em que a chuva começou a cair, Nossa, que magia de momento,
foi tudo mágico, eu me lembro de cada detalhe, a chuva caía e eu
ria, ria alto, ria sem parar, porque a chuva era um sinal, eu quase
desmaiei, a vida é mesmo muito mágica.”
Então, tivera a ideia de fazer uma
entretenga com esses dois aparatos, o imagina e o tudo mágico. Se
havia uma coisa de que gostava muito, era imaginar. Não lhe custaria
nada, pelo contrário, ia ser simplesmente uma delícia se batizar de
outros nomes, passar uns dias em outros lugares, imagina, fazer de
conta que era outras pessoas. Nossa, que maravilha de vida, que coisa
mágica.
Portanto, houve a ideia.
Mas
antes, bem antes, o que havia era uma certidão de nascimento, só
uma certidão de nascimento, e ela era só Maria Campos. Filha de
Bernardina Campos, pai desconhecido. A mãe fora violentada durante
um assalto a um ônibus em que viajava de Belo Horizonte para São
Paulo. Os sete bandidos encapuzados, silenciosos e estarrecedores; o
chefe exigiu que um deles molestasse a única moça que havia no
ônibus. O motorista e os passageiros gritaram, pediram clemência,
mas os bandidos, cada um com a sua tarefa, foram todos cruéis.
“Eu
fui profundamente ofendida, mas só eu sabia que ele
não era um moço tão cruel assim.”
Esse
ele
era seu pai.
Todas
as manhãs, Maria já acordava ansiosa, amarfanhada nessas coisas, e
em seguida lhe vinha à mente um pensamento que a perseguia de modo
meticuloso e desafiador: ela se chamava apenas Maria Campos. Era
pouco, muito pouco.
Não
que ela fizesse questão do sobrenome do pai. Um pai que ela nunca
vira, que nem sabia da existência dela, um sobrenome assim não
convence, não faz falta nenhuma. “Mas um nome é muito
importante”, dizia a moça vizinha, que fazia cocô toda manhã,
que tinha muito cabelo, comprido e cacheado, pais que andavam de mãos
dadas, e, troféu dos troféus, ganhara a medalha de se chamar
Valentina Vitória.
–
Ei,
eu mudei pra cá anteontem. Me chamo Valentina Vitória. E você,
como se chama?
–
Maria.
–
Só
Maria?
–
Só
Maria... O sobrenome é Campos.
–
Ou
seja, o nome todo é só Maria Campos.
Começara
desse jeitinho a primeira conversa entre elas, perto do muro baixo
que separava as casas.
Um
bem-te-vi fazia a festa numa poça de água da chuva da noite
anterior, na parte mais alta do muro, num tijolo esburacado
providenciado pela impiedade do tempo, junto à divisa da alvenaria
das casas propriamente ditas. O passarinho se banhava, se refrescava,
sacudia as penas, era naquele momento a criatura mais feliz daquela
cena de apresentações.
–
Eu
me chamo Valentina Vitória.
Retomou
a vizinha nova, ajeitando um nada na blusinha verde-cré.
–
E
o meu nome todo é Valentina Vitória Mendes Teixeira Couto.
Ela
completara, e depois a fitou firmemente, como certa de que a moça
idiota ficaria dilaceradamente triste, traumatizada, angustiada,
qualquer coisa assim psicológica.
A
moça idiota parecia hesitante.
Então
a vizinha quis apressar o drama:
–
O
seu nome significa “a escolhida”, “a senhora”. Belos
significados. Muito lindos mesmo. E mágicos. Eu ficaria muito feliz
se me chamasse Maria. Mesmo que fosse apenas Maria Campos, como você.
E
continuou, agora com um ar mais solene:
–
O
meu nome significa “forte vencedora”. Ou seja, como eu tenho dois
nomes, Valentina Vitória, e Valentina significa “forte” e
Vitória, “vencedora”, eu...
–
Muito
interessante. Gostei disso. Ou seja, dona do nome Valentina Vitória,
você é uma forte vencedora. Que maravilha.
A
moça não era idiota? Dissera essas últimas palavras num tom de
felicidade do tamanho do Brasil. Havia ironia também em cada sílaba
que pronunciara?
Valentina
Vitória Mendes Teixeira Couto franziu a testa e ajeitou o brinco na
orelha esquerda.
Depois
desse primeiro dia, elas se encontraram outras vezes; na calçada, na
padaria, no largo da igreja, na Confeitaria Oeste de Minas, no
Armazém da Cleonice e no Cine Serra da Saudade.
E
Maria foi arquitetando a ideia de se chamar de outros nomes, muitos
nomes, no intento de ser muitas pessoas, outras pessoas, de viver
muitas vidas, de ter todas as experiências que lhe fossem dadas
neste mundo velho de água chamado Terra.
O
fiapo da ideia surgira no exato momento em que Valentina Vitória
dissera que seu nome Maria significava “a escolhida”, “a
senhora”.
O
sobrenome era pouco. Não mais que Campos. Embora fosse plural, não
um campo só, eram infinitos campos talvez, e Maria achasse sonoro,
fresquinho e suave o sobrenome Campos. No entanto, ela era a senhora,
a escolhida para viver todas as vidas que quisesse, ou as que a vida
lhe impingiria, mas a partir dos nomes que ela escolhesse. Faria dos
nomes escolhidos as vidas escolhidas. Imagina, seria mágico
providenciar destinos, ainda que o intuito fosse brincar com essa
história da Valentina Vitória, a de que os nomes das pessoas
determinam modos de ser, pensar, sentir, acordar com a avó atrás do
toco, meter os pés pelas mãos, dar murro em ponta de faca.
E
assim decidiu, depois de várias conversas com a vizinha, a que
achava que já possuía toda a riqueza desse mundo, exclusivamente
por ter nome duplo e sobrenome comprido, e que lhe ensinara o
significado de diversos nomes, tanto femininos quanto masculinos:
“Vou
começar por me chamar Zoraida, mulher cativante e sedutora, como
explicou a exibidinha.”
Que
maravilha. Enquanto se chamasse Zoraida, seria cativante e sedutora.
E
então Maria virou Zoraida, para começar a sua história de viver
muitas vidas neste mundo horrível e maravilhoso.
Stella Maris Rezende, in A mocinha do mercado central
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