terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

A ideia

 


Tinha tudo para não abrir mão da vida, a Valentina Vitória: era bonita com aquele cabelo comprido, cheio e cacheado, tinha pai e mãe que viviam de mãos dadas, sabia o significado de muitos nomes – detalhe que apregoava a todo instante, como se o significado dos nomes das pessoas resolvesse oitenta por cento dos problemas –, e, principalmente, fazia cocô toda manhã. Isso mesmo, dizia que fazia cocô toda manhã, e que isso lhe garantia saúde e entusiasmo.
Maria pensava nessas coisas, pensaria nessas coisas pelo resto da vida, porque de fato a Valentina Vitória era um dos mais belos e mais terríveis mistérios.
Mas Maria precisava pensar em outras coisas.

Penteava o cabelo, mas não penteava o cabelo. Via o espelho, as muitas lâmpadas pequenininhas formando um retângulo todo iluminado, mas não via as lâmpadas, não via o espelho. Era só ele que ela via.
Acontecesse tudo, a casa fosse levada pela enchente, telhas e móveis carregados pelas águas barrentas; ou a mãe enlouquecesse e ela tivesse que visitá-la num sanatório, escutá-la dizer mil vezes que tem três filhas, uma se veste de fé, roupa azul, a outra de esperança, roupa verde, a outra de caridade, rosa; ou ela, a única filha de fato, nunca mais comesse biscoito de queijo com café quentinho, essa sim, a maior das tragédias, ainda assim, não esqueceria aqueles olhos negros, aquelas mãos inteligentes, aquela voz rouca.
Entrara distraída no palco. Ele começava a compor o cenário.
Boa tarde...
Ela disse, mas não olhou para as peças de madeira e de tecido, não teve tempo, conhecia aquela voz:
Boa tarde. Sou o cenógrafo... É a protagonista, não é? Vi sua foto com o diretor, ele estava levando pra gráfica. Aliás, esse folheto de divulgação vai sair um pouco em cima da hora, não acha?
Aquela voz rouca. Então ela o fitou, sem timidez. Sabia que o reencontraria. Sabia. Ele interrompera o trabalho, olhava-a.
Eu me lembro de você. É o rapaz da praça Raul Soares.
Ela disse, com o coração atabalhoado.
Eu me lembro de você. Quando vi a sua foto hoje, nem sei dizer o que senti.
Ele disse, aproximando-se.
Sempre me lembro de você.
Ela confessou, com um sorriso que crescia.
Eu também sempre me lembro de você.
Ele confessou, aproximando-se mais.
E depois ele ainda disse:
Eu tinha a sua imagem. A sua imagem está o tempo todo comigo. Uma mocinha meio perdida em Belo Horizonte, que ficou olhando pro meu desenho... Que não sabia direito onde era o Mercado Central... Você é a mocinha do Mercado Central.
Ela deixou que ele tomasse entre as dele as suas mãos trêmulas:
Você viu o meu nome artístico no folheto. O verdadeiro você ainda não sabe.
Daqui a pouco eu vou saber... Promete?
Ela respondeu, guiada por aqueles olhos negros:
Primeiro, quero te dizer que a sua imagem também está sempre comigo.
Então ele disse, como se fosse frase de uma peça de teatro:
Todas as coisas podem acontecer, a partir de uma imagem.
Eles ficaram de mãos dadas. E ficaram naquele instante, ficaram em silêncio, ficaram em dúvida, não ficaram em dúvida. Ficaram.
Beijaram-se na boca. Foi um beijo longo, tão esperado, e então não havia mais nada; nem palco, nem cenógrafo, nem atriz.
Mas havia todas as coisas.

Mas antes, havia a mãe da Valentina Vitória, que qualquer coisa que fosse dizer começava com imagina. Era muito engraçado. Para a mãe da amiga – nunca perguntara o nome dela, que falta de educação –, tudo começava com imagina.
Imagina, vou chamar a minha filha, eu gosto muito da amizade de vocês.”
Imagina, acabei de assar um bolo de chocolate, vocês vão merendar.”
Imagina, a sua mãe está boa?”
Imagina, sabia que a gente morava num lugar onde ventava quase o tempo todo?”
Imagina, pode entrar, ela já vem.”
E a filha da imagina, a Valentina Vitória, sabia de cor inúmeros significados de nomes de pessoas, vivia falando os tais significados, dizia que o nome de certa forma determina o destino do dono do nome, a Valentina Vitória querendo provar que sabia muitas coisas sobre as pessoas porque sabia o significado do nome de cada uma; imagina, ter uma amiga assim facilita muito a vida, pensava, com um risinho incontido.
O melhor de tudo, o mais divertido mesmo, era que a filha da imagina era mágica. Assim:
Isso é mágico, sabe?”
Cada nome tem a sua magia.”
A mágica da vida é exatamente esta.”
Uma magia essa coisa de respirar e se emocionar.”
O mágico é que eu cheguei no momento exato em que a chuva começou a cair, Nossa, que magia de momento, foi tudo mágico, eu me lembro de cada detalhe, a chuva caía e eu ria, ria alto, ria sem parar, porque a chuva era um sinal, eu quase desmaiei, a vida é mesmo muito mágica.”
Então, tivera a ideia de fazer uma entretenga com esses dois aparatos, o imagina e o tudo mágico. Se havia uma coisa de que gostava muito, era imaginar. Não lhe custaria nada, pelo contrário, ia ser simplesmente uma delícia se batizar de outros nomes, passar uns dias em outros lugares, imagina, fazer de conta que era outras pessoas. Nossa, que maravilha de vida, que coisa mágica.
Portanto, houve a ideia.

Mas antes, bem antes, o que havia era uma certidão de nascimento, só uma certidão de nascimento, e ela era só Maria Campos. Filha de Bernardina Campos, pai desconhecido. A mãe fora violentada durante um assalto a um ônibus em que viajava de Belo Horizonte para São Paulo. Os sete bandidos encapuzados, silenciosos e estarrecedores; o chefe exigiu que um deles molestasse a única moça que havia no ônibus. O motorista e os passageiros gritaram, pediram clemência, mas os bandidos, cada um com a sua tarefa, foram todos cruéis.
Eu fui profundamente ofendida, mas só eu sabia que ele não era um moço tão cruel assim.”
Esse ele era seu pai.
Todas as manhãs, Maria já acordava ansiosa, amarfanhada nessas coisas, e em seguida lhe vinha à mente um pensamento que a perseguia de modo meticuloso e desafiador: ela se chamava apenas Maria Campos. Era pouco, muito pouco.
Não que ela fizesse questão do sobrenome do pai. Um pai que ela nunca vira, que nem sabia da existência dela, um sobrenome assim não convence, não faz falta nenhuma. “Mas um nome é muito importante”, dizia a moça vizinha, que fazia cocô toda manhã, que tinha muito cabelo, comprido e cacheado, pais que andavam de mãos dadas, e, troféu dos troféus, ganhara a medalha de se chamar Valentina Vitória.
Ei, eu mudei pra cá anteontem. Me chamo Valentina Vitória. E você, como se chama?
Maria.
Só Maria?
Só Maria... O sobrenome é Campos.
Ou seja, o nome todo é só Maria Campos.
Começara desse jeitinho a primeira conversa entre elas, perto do muro baixo que separava as casas.
Um bem-te-vi fazia a festa numa poça de água da chuva da noite anterior, na parte mais alta do muro, num tijolo esburacado providenciado pela impiedade do tempo, junto à divisa da alvenaria das casas propriamente ditas. O passarinho se banhava, se refrescava, sacudia as penas, era naquele momento a criatura mais feliz daquela cena de apresentações.
Eu me chamo Valentina Vitória.
Retomou a vizinha nova, ajeitando um nada na blusinha verde-cré.
E o meu nome todo é Valentina Vitória Mendes Teixeira Couto.
Ela completara, e depois a fitou firmemente, como certa de que a moça idiota ficaria dilaceradamente triste, traumatizada, angustiada, qualquer coisa assim psicológica.
A moça idiota parecia hesitante.
Então a vizinha quis apressar o drama:
O seu nome significa “a escolhida”, “a senhora”. Belos significados. Muito lindos mesmo. E mágicos. Eu ficaria muito feliz se me chamasse Maria. Mesmo que fosse apenas Maria Campos, como você.
E continuou, agora com um ar mais solene:
O meu nome significa “forte vencedora”. Ou seja, como eu tenho dois nomes, Valentina Vitória, e Valentina significa “forte” e Vitória, “vencedora”, eu...
Muito interessante. Gostei disso. Ou seja, dona do nome Valentina Vitória, você é uma forte vencedora. Que maravilha.
A moça não era idiota? Dissera essas últimas palavras num tom de felicidade do tamanho do Brasil. Havia ironia também em cada sílaba que pronunciara?
Valentina Vitória Mendes Teixeira Couto franziu a testa e ajeitou o brinco na orelha esquerda.

Depois desse primeiro dia, elas se encontraram outras vezes; na calçada, na padaria, no largo da igreja, na Confeitaria Oeste de Minas, no Armazém da Cleonice e no Cine Serra da Saudade.
E Maria foi arquitetando a ideia de se chamar de outros nomes, muitos nomes, no intento de ser muitas pessoas, outras pessoas, de viver muitas vidas, de ter todas as experiências que lhe fossem dadas neste mundo velho de água chamado Terra.
O fiapo da ideia surgira no exato momento em que Valentina Vitória dissera que seu nome Maria significava “a escolhida”, “a senhora”.
O sobrenome era pouco. Não mais que Campos. Embora fosse plural, não um campo só, eram infinitos campos talvez, e Maria achasse sonoro, fresquinho e suave o sobrenome Campos. No entanto, ela era a senhora, a escolhida para viver todas as vidas que quisesse, ou as que a vida lhe impingiria, mas a partir dos nomes que ela escolhesse. Faria dos nomes escolhidos as vidas escolhidas. Imagina, seria mágico providenciar destinos, ainda que o intuito fosse brincar com essa história da Valentina Vitória, a de que os nomes das pessoas determinam modos de ser, pensar, sentir, acordar com a avó atrás do toco, meter os pés pelas mãos, dar murro em ponta de faca.
E assim decidiu, depois de várias conversas com a vizinha, a que achava que já possuía toda a riqueza desse mundo, exclusivamente por ter nome duplo e sobrenome comprido, e que lhe ensinara o significado de diversos nomes, tanto femininos quanto masculinos:
Vou começar por me chamar Zoraida, mulher cativante e sedutora, como explicou a exibidinha.”
Que maravilha. Enquanto se chamasse Zoraida, seria cativante e sedutora.
E então Maria virou Zoraida, para começar a sua história de viver muitas vidas neste mundo horrível e maravilhoso.

Stella Maris Rezende, in A mocinha do mercado central

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