A voz do Capitão Lemoni se fez ouvir,
grave e rouca. Prestei-lhe atenção. Falava dos fogos-fátuos, que
durante a tempestade haviam subido aos mastros de sua traineira e os
percorriam de alto a baixo.
— São moles e escorregadios — dizia,
— e quando se toca neles as mãos ficam parecendo em fogo. Torci os
bigodes, uma vez, e por toda a noite eles brilhavam como os do
próprio demônio. Então, como ia dizendo, o mar havia passado para
dentro do barco. Minha carga estava alagada, havia aumentado de peso,
e o navio começava a adernar. Estava perdido. Mas o bom Deus teve
pena de mim, e enviou-me um relâmpago que fez saltar os painéis das
escotilhas; e todo o carvão foi junto. O mar ficou cheio de carvão,
mas o barco ficou mais leve e então se aprumou. Foi assim que
escapei ainda essa vez.
Tirei do bolso minha pequena edição de
Dante, o “companheiro de viagem”. Acendi o cachimbo, ajeitei-me
contra a parede e instalei-me confortavelmente. Hesitei um instante:
onde começaria? Pelo breu ardente do Inferno, pela chama refrescante
do Purgatório ou lançar-me de uma vez ao ponto mais elevado da
esperança humana?
Era minha a escolha. Segurando o Dante
minúsculo saboreava minha liberdade. Os versos que eu escolhesse na
madrugada dariam o ritmo a todo o meu dia.
Debrucei-me sobre essa perspectiva para
tomar uma decisão, mas não tive tempo. De repente, inquieto,
levantei a cabeça. Não sei como, tive a impressão de que dois
orifícios se abriam em minha nuca; virei-me bruscamente e olhei,
atrás de mim, a porta envidraçada. Como um raio, a esperança louca
de tornar a ver meu amigo atravessou-me a alma. Estava pronto para o
milagre. Mas ele não se deu. Um desconhecido, beirando os sessenta
anos, alto, seco, os olhos abertos, olhava-me com o nariz colado ao
vidro da porta.
Trazia uma sacola achatada embaixo do
braço.
O que mais me impressionou foram seus
olhos, tristes, inquietos, trocistas e cheios de vida. Ao menos foi o
que pensei.
Cruzados os nossos olhares — dir-se-ia
que se certificara de que eu era exatamente quem ele procurava — o
desconhecido estendeu resolutamente o braço e abriu a porta. Passou
entre as mesas com um passo vivo e elástico e veio postar-se diante
de mim.
— De partida? — perguntou-me. — e
para onde?
— Para Creta, por quê?
— Quer me levar?
Olhei-o atentamente. Rosto cavado, uma
mandíbula forte, maçãs salientes, cabelos grisalhos e crespos,
olhos que brilhavam.
— Por quê? Que vou fazer de você?
Deu de ombros.
— Por quê! Por quê! — disse com
desdém. — não se pode fazer nada sem um por quê? Leve-me como
cozinheiro, pronto. Sei fazer sopas!
Pus-me a rir. Seus modos e palavras
cortantes me agradavam. E as sopas também. Não era mau, pensei,
levar esse simpático desengonçado para aquela longínqua praia
solitária. Sopas, conversas... Tinha o ar de quem já havia vagado
muito no alto das ondas, uma espécie de Simbad, o Marujo... Gostei
dele.
— Em que pensa? — perguntou-me
inclinando sua cabeça grande.
— você pesa os prós e os contra, não?
Quase grama a grama, não é?
Vamos, decida, coragem!
Ele se erguia sobre mim, um homenzarrão,
e eu já estava cansado de ter que erguer a cabeça para lhe falar.
Fechei o Dante.
— Sente-se — disse-lhe. — toma uma
infusão?
Sentou-se, depositou cuidadosamente sua
sacola na cadeira vizinha.
— Infusão? — disse com desprezo. —
garçom, um rum!
Bebeu o rum em pequenos goles,
guardando-os longamente na boca para saborear, e deixando-os descer
lentamente a lhe esquentar as entranhas. “Sensual, pensei, e
conhecedor requintado...”
— Em que você trabalha? —
perguntei-lhe.
— Todos os trabalhos: com os pés, com
as mãos, com a cabeça, todos. Só faltava mesmo que se pudesse
escolher.
— Onde trabalhava ultimamente?
— Numa mina. Sou bom mineiro, sabe?
Conheço metais, sei achar veios, abrir galerias, desço nos poços,
não tenho medo. Trabalhava bem, era contramestre, não tinha do que
me queixar. Mas aí o demônio meteu-se no negócio. Sábado passado,
de noite, meio no porre, vou procurar o patrão, que estava lá para
ver como iam os trabalhos, e meto-lhe a mão...
— Mete-lhe a mão? Por quê? Ele havia
feito alguma coisa a você?
— A mim? Nada de nada, garanto! Era a
primeira vez que via o homem. Ele havia até distribuído cigarros,
coitado.
— E então?
— Ah! Você gosta dessas perguntas?
Aconteceu e pronto. Você conhece a história do traseiro da padeira?
O traseiro da padeira não sabe escrever, sabe? Pois o traseiro da
padeira é a razão humana.
Já havia lido inúmeras definições da
razão humana. E olhei agora meu novo companheiro com um vivo
interesse. Seu rosto estava cheio de rugas, picado, como se roído
pelos ventos e pela chuva. Outro rosto, anos mais tarde, me fez à
mesma impressão de madeira trabalhada e sofrida — o de Panait
Istrait (Autor Romeno que escrevia em francês e sofria de
tuberculose. Sua obra foi La Maison Thuringer (1993), o primeiro
volume de a vida de Adrian Zograffi — o homem sem convicções).
— O que há nessa sacola? Comida?
Roupa? Ferramentas?
Meu companheiro ergueu os ombros e riu.
— Você parece razoável — disse, com
o devido respeito.
Acariciou a sacola com seus dedos longos
e duros.
— Não — acrescentou, — é um
santuri (Um instrumento de cordas. Variedade da cítara ou do
címbalo, usualmente tocado com pequeno martelo ou plectro).
— Um santuri? Você toca santuri?
— Quando as coisas não vão bem, faço
as rondas dos cabarés e bares tocando santuri. Canto velhas cantigas
cléfticas da Macedônia, e depois recolho as gorjetas nesse boné,
que — veja só — se enche de moedas.
— Qual é o seu nome?
— Alexis Zorba. Chamam-me pá de forno,
de brincadeira, porque sou magro e de cabeça comprida. Mas, podem
falar! Chamam-me ainda de Passa-tempo, pois durante algum tempo vendi
caroços de abóbora torrados. E também de Míldio, por toda parte
onde estive, pois parece que faço muitos estragos. Tenho ainda
outros apelidos, mas isso fica para outra vez...
— E como aprendeu o santuri?
— Eu tinha vinte anos. Numa festa em
minha aldeia, aos pés do Olimpo, ouvi pela primeira vez tocarem
santuri. Fiquei sem fôlego. Durante três dias nem pude comer. “O
que há com você?”, perguntou-me meu pai uma noite. “Quero
aprender a tocar santuri!”
— “Não tem vergonha? Está pensando
que é algum cigano? O que vai ser na vida, tocador de instrumentos?”
— “Eu, o que quero mesmo, é aprender
a tocar santuri!” Havia guardado umas economias para me casar assim
que pudesse. Era um garoto ainda, você sabe, um desmiolado. Tinha o
sangue quente e queria me casar, pobre de mim. Então, dou o que
tinha, dou o que não tinha, e compro um santuri. Este aqui. Com ele
saio de casa, chego até Salônica, e vou a um turco, Retsep Effendi,
um artista, o mestre do santuri.
Encontrando-o jogo-me a seus pés. “O
que quer, pequeno rumi?”, pergunta ele.
— “Quero aprender a tocar santuri.”
— “E por isso se joga a meus pés?”
— “Não por isso, mas porque não
tenho um tostão para lhe pagar.”
— “então você também apanhou a
febre do santuri?”
— “Sim.”
— “Pois fique aqui, menino, não é
preciso que me pague!”
— Fiquei estudando com ele durante um
ano. Hoje já deve estar morto — se Deus deixa entrar cães em seu
paraíso, pode abrir a porta para Retsep Effendi. E desde que aprendi
a tocar santuri, transformei-me em outro homem. Quando estou triste,
ou quando as coisas andam mal, toco santuri e fico alegre. Enquanto
estou tocando, podem falar comigo que não escuto, e se escuto não
respondo. Posso até querer fazê-lo, mas não adianta, não consigo!
— Mas, por que, Zorba?
— Ora, paixão!
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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