Da casa em que nasci não me lembro nada.
Contam que via o demônio e o apontava na parede, alvoroçadamente,
como se fora um anjo. Minha vida começa em Saúde, arraial de minha
infância, de onde me surgem as estampas essenciais: brincando com
Íris no jardim; Íris no caixão sobre a mesa escura; a notícia do
assassinato de meu tio Arquimedes, chegada cautelosamente no serão
familiar; seu Rodolfo Caçador com sua perna de pau (derrubou o cacho
de cocos com um tiro); minha mão de revólver procurando ladrão no
quintal; o leproso dos Correios que comia ovos cozidos; meu encontro
com a morte do tuberculoso na casa desconhecida; o guizo da mula sem
cabeça tilintando na várzea.
Sempre parti sem pena. Ainda hoje é a
mesma emoção, uma alegria doloridamente física, uma névoa
infantil nos olhos, imitando as lágrimas. Da infância não trouxe
no coração uma saudade direta, e tive terror dos mascarados e do
batuque noturno dos tambores.
Em Belo Horizonte, ao grito de “avião!
avião!”, corria para a rua numa agitação de fim de mundo.
Quantas tristezas de sexo precoce eu tive, sentindo, como um alarme,
a violência do corpo.
As primeiras letras. Meu ódio à
disciplina. O mistério do pátio das meninas. Minha primeira paixão
chamava-se Maria e usava tranças. Minha segunda paixão era Maria e
tinha olhos bonitos. As fitas em série aos domingos: O grande
guerreiro! Bob Steele! Buck Jones!Ruas de Nova Iorque! Tempestade
sobre a Ásia! A importância de retirar um livro da biblioteca
pública!
Quando veio a Revolução de 30, estava
de braço quebrado. As negras se arrastavam da Barroca até a Serra e
aí chegavam famintas, esfarrapadas, apavoradas. Meu pai comprava e
distribuía alimentos no armazém. Da caixa-d’água vi um avião
bombardear o quartel.
Nossas molecagens! Nossas maldades! As
brigas da nossa quadrilha! As árvores não cresciam em nossas ruas,
a grama não pegava nos jardins, as lâmpadas não ficavam acesas nos
postes. A mão imensa e brutal do padre alemão.
Aos onze anos, fugi de casa. Em companhia
de Georges e Aristeu, demandei Goiás para viver com os índios. A
primeira sede violenta. O desconhecido amedrontando e tentando.
Cardoso, velho lenheiro, nos deu em sua choupana cama de palha, café
com broa e conselhos mansos: “Acho que vocês vão dar uma
estopada, meninos: o mundo é grande e mau”.
Reprovado no primeiro ano ginasial, fui
mandado para o colégio interno. Lágrimas convulsas na primeira
noite. Conheço a pusilanimidade, a traição, a delação, a
covardia, a bofetada de um padre. Feroz é coração da infância. Um
pátio com uma paineira e um retângulo de estrelas. A saudade à
hora do crepúsculo estragou-me os outros crepúsculos. Dramas do
sexo e da afeição tiveram apenas o testemunho irreal dos
professores. Rebeldia, medo do inferno, sensibilidade ― tudo me fez
a vida até hoje infeliz. No segundo ano, segundo a linguagem
salesiana, comecei a ficar tíbio; participava da Société Impieté.
Não esqueço as férias e o esperar por
elas, quando a primeira horda de bichinhos de luz invadia o estudo da
noite. Não esqueço nada que haja escapado à vigilância, nenhuma
rebeldia, alunos que desafiavam professores, os que fugiam e levavam
nossos votos de boa sorte, o ridículo, a oratória besta, a vaidade,
a crueldade, a raposice dos pedagogos. Não esquecerei nada. Seu João
Maria me chamava de Laplace: não me puniu quando me viu roubar
laranja. Obrigado, João Maria. Seu Vicente era manso e consolava os
que choram. Seu Gilberto era um ótimo sujeito. Era suave o perfume
do eucalipto, suave era o ar, doces eram as ameixas, ásperos e belos
eram os caminhos da montanha. Coisas da natureza, obrigado. Obrigado,
amigos meus. Que contentamento deixar Dom Bosco e seus fantasmas! Ah!
Se pudesse levar comigo o aroma das resinas! Que contentamento tomar
o trem na antiga Hargreaves e voltar! Que alvoroço de abelhas
voltar! As férias vão terminar como sempre e o pórtico negro que
me espera é ainda mais negro do que o outro.
Em São João del-Rei conheci sadios
holandeses franciscanos e várias liberdades desconhecidas. Os
primeiros amigos mortos a desfiar um rosário de tristezas minhas.
Aplicação e desprezo pelos estudos, uma adivinhação de poesia nos
florilégios estúpidos, frustradas inquietações políticas e
patrióticas. A voz grossa e rápida de Frei Rufino, a vaguidão de
Frei Lau querendo escrever com o charuto, o irrepreensível Frei
Noberto, coisas inocentes que gelam dentro de mim um bloco
irremovível.
Em dez meses de estudos bélicos, de
marchas, ordem unida, maneabilidade, manobrando fuzis e
metralhadoras, não descobri dentro de mim o soldado. Fui
definitivamente um paisano.
Elza era delicada e ia ser dentista. Uma
judia guardei como lembrança de perfeição adolescente. E as
decaídas inesquecíveis: são ásperas e conservam purezas
intratáveis.
A adolescência é um tribunal
inesperado: o julgamento do pai pelo filho, o julgamento do filho
pelo pai. Nesse conflito de culpas, apreensões e incertezas está o
mistério dos caminhos da vida, sempre errados. Toda a perplexidade
do homem cabe no encontro do pai e do filho, quando se encaram com um
rancor de acusados à luz da madrugada. Cabe às mulheres a melhor
parte do amor e do sofrimento porque as mães não podem julgar, e
este é o mais linear dos mistérios.
Folha morta, déçà délà, fui
arrastado pelas ruas da madrugada. Havia um poder suicida em cada
coisa.
Já não entendo teu clamor, ó confusa
adolescência. Morreu contigo o sol denso da tragédia. Morreu
contigo o pássaro rubro amigo de meu ombro. Morreu contigo meu
inconformismo cruel, minha dignidade na desgraça. Contigo a parte de
mim mais infeliz e fiel.
Paulo Mendes Campos, in Manchete, 12/12/1970
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