1) Na primeira noite, Laura sonhou com o
forno de micro-ondas. Uma lasanha gigantesca engolia o forno e Laura
apressava-se para salvá-lo, tentava arrancá-lo de dentro do queijo
derretido, mas quanto mais ela se esforçava, mais o forno parecia
consumir-se inteiro para o lado de dentro da massa. Ele acabou
finalmente imerso dentro daquela gosma paquidérmica, mas logo em
seguida a lasanha assentou-se calmamente no prato disposto sobre a
mesa, parecendo apetitosa e pronta para ser comida. Jonas e Claudio
já estavam sentados, com cara de fome, e só aguardavam Laura se
sentar para começar a comer. Ninguém reparou nos seus cabelos
sujos, em como ela estava suada e perturbada e nem em como o forno de
micro-ondas tinha subitamente desaparecido. Laura queria dizer a
todos que não poderia servi-los, a lasanha estava estragada,
contaminada, não sei, não tenho como dizer, será que se trata de
um sonho?, mas não, era tudo tão real, Jonas e Claudio ali,
sentados, era tudo verdade, e eles pediam, mãe, você não vem?
Ela esqueceu do sonho durante o dia e só
veio se lembrar dele à noite, enquanto passava o creme em volta dos
olhos tomados por pés de galinha.
2) Na segunda noite, o sonho foi menos
esquisito e inteiramente verossímil. Laura costurava uma meia; ou
melhor, cerzia. Ela era exímia costureira e conhecia as técnicas
mais antigas de reparo de roupas usadas — isso na realidade, é
claro. Mas o ovo que apoiava a meia, para que o cerzido saísse
perfeito, insistia em escapar da sua mão. Escorregava, escapulia
para os lados e Laura temeu que ele se quebrasse. Tirou o ovo de
dentro da meia e continuou cerzindo-a sem ele. Achou que estivesse
nervosa naquele dia e que, por isso, suas mãos não estivessem muito
firmes. Mas dessa vez era a agulha que entrava nos furos errados ou a
linha que desfiava e Laura não conseguia achar o ponto certo do
cerzimento. O resultado final ficou muito aquém do costumeiro e
Laura amassou a meia, insatisfeita. Onde já se vira um serviço
daqueles, tão indigno dela? O que diria sua mãe? É bem provável
que Jonas nem repararia, ele era um desligado e, por ele, até
compraria meias novas. Mas era ela mesma quem não admitia um
trabalho tão malfeito.
Laura acordou rindo. Que bobagem. Sonhar
com cerzimento de meias. Um verdadeiro desperdício da imaginação.
Mas é cada uma.
3) O sonho da terceira noite foi mais
divertido. Ou melhor, foi realmente bem divertido. Claudio, Jonas e
Laura iam a um parque de diversões; um daqueles aparentemente
antigos e simples, sem muito aparato tecnológico, localizado no
final de uma praia deserta e não muito bonita. Algo como São
Vicente ou a Praia Grande, onde eles um dia tiveram um apartamento.
Os dois a convenciam a subir com eles na roda-gigante, mas Laura
teimava que não, tinha medo, e eles a levavam pelos braços, diziam
não se preocupe, mãe, não se preocupe, querida, nós vamos
protegê-la, já estamos acostumados ao perigo e sempre ficaremos ao
seu lado. Ela dizia que não cabiam três pessoas no carrinho, mas
eles insistiam, dizendo que já tinham conversado com o dono do
parque, que ele abriria uma exceção. Laura respondia que isso era
ainda mais perigoso e que não se deviam abrir exceções em questões
de segurança. No final, eles acabaram convencendo-a e, mesmo com
muito medo, mesmo com a roda-gigante parando bem lá no alto, Laura
se divertiu muito e sorria aos dois, agradecida. Não era tão
perigoso assim e, se não fosse por eles, nunca teria tido essa
experiência. Saindo da roda, não se sabe como, o parque desaparecia
e só restava ela, Laura e a praia, vazia.
Ao acordar, Laura suspirou.
4) Na quarta noite, antes de adormecer,
Laura rezou e pediu que não sonhasse dessa vez. Ela não era mulher
de sonhos e queria descansar. Seus dias não eram dos mais fáceis,
embora ela reconhecesse como era privilegiada, sempre provida de tudo
o que precisava, sem luxos, é claro, mas sem nenhuma carência.
Agora, que os sonhos por favor a deixassem em paz e que Deus a
resguardasse ali, ela já tinha tido trabalho suficiente durante o
dia. Mas foi mal ela dar um beijo na testa de Jonas e fechar os
olhos, e logo surgiram as brotoejas espalhadas em todo o seu corpo.
Pequeninas, como as de uma joaninha, quando próximas dos dedos dos
pés, mas aumentando de tamanho proporcionalmente, à medida que
subiam pelas pernas, até parecerem botões vermelhos, mais próximas
do ventre. Elas avançavam para dentro do corpo, ocupavam a genitália
e Laura conseguia enxergar os órgãos todos pintados: o útero, os
ovários, o estômago e a parte interna dos seios, toda sarapintada
de rosa, bolas rosas enormes que inchavam e pareciam ameaçar
implodi-la, como se ela fosse estourar. Laura acordou assustada,
querendo gritar, olhou rápido para Jonas, que continuava dormindo,
ainda segurou no seu braço, pensou em talvez acordá-lo, mas não
iria perturbá-lo por causa disso e, além do mais, ele não a
entenderia e ela nem saberia explicar direito. Não era motivo para
tanto. Um sonho ruim, como tantos que todos têm de vez em quando.
5) Na quinta noite, depois de um dia
desassossegado, Laura buscou uma cápsula na gaveta de Jonas e não
encontrou. Ela lembrava de tê-lo visto tomando algum calmante tempos
atrás. O jantar tinha saído errado, o suflê murchara e não é bem
que Jonas reclamara, porque não era disso, mas não entendera
direito o que acontecia, Claudio também perguntou se ela estava
passando bem, ela nunca errava o ponto das coisas e, mesmo de manhã,
o copo do achocolatado foi diferente, não era aquele com o
distintivo do time. Foi até a geladeira e tomou dois copos de suco
de maracujá, ainda buscou um livro velho, do tempo do colégio,
acendeu o abajur quando Jonas já ressonava e adormeceu enquanto lia.
Sonhou um sonho tranquilo. Era velha, bem velha mesmo, e andava pela
rua com dificuldade. Claudio, já adulto, e Jonas ao seu lado,
acenavam de longe, chamando-a. Porém, quanto mais ela caminhava,
mais eles pareciam distanciar-se. A sensação é de que ela chegaria
e eles sorriam, esperando-a. Ela não se deixava perturbar pela
distância crescente e continuava. Sabia que não os alcançaria, mas
era assim mesmo.
6) Laura tinha telefonado a Selma.
Entendia de sonhos? Por que essa sucessão ininterrupta, todas as
noites? E o que poderiam significar? Por que sempre Jonas e Claudio?
Será que iria acontecer alguma coisa? Era premonição? Nesse dia
nem conseguiu lavar a roupa, estendê-la no varal, deixar o feijão
de molho. Confundiu-se toda e, dessa vez, não era que Jonas e
Claudio perdessem a paciência, nunca a desrespeitariam, mas a
desordem os perturbou. Jonas até desistiu de ler o jornal e ficou
trancado mais tempo no banheiro, enquanto Claudio resolveu que iria
sair com os amigos. Laura tomou uma decisão. Nessa noite não
sonharia com nada. Foi até o armário da sala e virou, rápida, meio
copo de conhaque, ela que não bebia. Depois encontraria alguma
explicação para dar a Jonas. Na sexta noite, Laura sonhou com
Alberto, que voltava da sapataria e lhe entregava um maço de flores
roxas. Laura agradecia, emocionada, mas dentro do maço havia um
rato, morto. Ela acordou, suada, gritando. Jonas e Claudio nem assim
acordaram.
7) Na sétima noite, Laura estava em
ponto de desespero. Não podia continuar desse jeito. O que ela
estava fazendo de errado? Nada, uma revista feminina dizia. Isso era
normal naquela idade, talvez fosse algum problema novo, alguma
lembrança, não era fácil diagnosticar. Tudo logo voltaria ao
normal. Ela ficou um pouco mais aliviada e fez o prato que os meninos
gostavam: carne de panela. E uma sobremesa boa também. Na sétima
noite, Laura sonhou que espancava uma costela até que ela se
arrebentasse toda. Depois enterrava as partes na terra, bem fundo,
sujando as mãos de barro e carne, as unhas cheias de sujeira
avermelhada. Ela se empapava do cheiro da mistura, deitava sobre o
buraco e se embriagava de umidade e calor.
8) No oitavo dia, Laura fumou um cigarro,
escondida. Dois. Saiu cedo de casa, antes que o marido e o filho
acordassem. Era um sábado e nem Claudio ia à escola nem Jonas
trabalharia. Ficou olhando o céu nublado, a quaresmeira ainda não
florida. Encontrou uma vizinha, cumprimentou-a e até sorriu. Era bom
aqui, do lado de fora, pensou. Foi até a padaria e comprou dois
pãezinhos. Melhor, resolveu comer uma média e um pão com manteiga
na chapa. Ficou olhando as pessoas, algumas caminhando calmas na rua.
É claro, era sábado. Tão cedo ainda, e o trânsito, mesmo hoje, já
começando a ficar agitado. Voltaria para casa com o jornal, daria
para Jonas ler logo cedo. Levaria pães frescos para Claudio.
Claudio. Já tão grande, um homem, quase.
O que ela poderia ainda ensinar a ele?
Será que um dia havia ensinado algo a alguém? Sim, ele tinha bons
modos, era um menino educado, inteligente, bom aluno, um menino
normal e isso se devia a ela. A ela e a Jonas, claro.
Chegando em casa, tirou os sapatos e
andou um pouco descalça pela cozinha. Como era gelado o piso assim,
sem proteção. Jonas ainda dormia. Depositou o troco sobre a mesinha
do telefone, alcançou os chinelos e sentou-se, calma, na poltrona de
Jonas. Ficou piscando os olhos seguidamente e lembrou de um tio que,
antigamente, dizia que a vida passa num piscar de olhos. Tão rápido
piscar. Será que há algo mais rápido do que isso?
Jonas, rápido, acorde, você sabe de
alguma coisa mais veloz do que os olhos piscando? Sabe a velocidade
do batimento das asas de uma andorinha? Já viu um cabelo crescendo?
Jonas, você não acha que eu sou mesmo uma querida?
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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