Então. A Ada pertencia a nós e a Ala e
a Saachi, e enquanto crescia, chegou um momento em que não se movia
de quatro, como a maior parte dos bebês faz. Escolhia, em vez disso,
contorcer-se, deslizando com a barriga, colando-se no chão. Saachi a
observava e perguntava-se distraidamente se ela era gorda demais para
engatinhar direito, assistindo as pregas de carne nova escorregando
pelo carpete. “A criança engatinha como serpente”, ela
mencionou, no telefone, para a mãe, do outro lado do Oceano Índico.
Na época, Saul gerenciava uma pequena
clínica no dormitório dos meninos no prédio em que eles viviam na
Avenida Ekenna, Número Dezessete, feito de milhares de pequenos
tijolos vermelhos. A Ada tomou uma vacina antitetânica naquela
clínica quando o irmão, Chima, entregou à irmãzinha um pedaço de
madeira com um prego preso e disse, “Bata nela com isso”. Não
acreditamos que ela faria isso, então não estávamos preocupados,
mas ele era o primogênito e ela nos surpreendeu. Sangramos muito e
Saul nos deu a vacina, mas A Ada não tinha cicatriz então talvez
esta lembrança não seja real. Nós não culpamos a irmãzinha,
porque a amávamos. Seu nome era Añuli. Ela foi a última nascida, o
amém no fim da oração, sempre uma criança doce. Houve um tempo em
que ela falava em uma língua que só nós entendíamos, sendo
recém-chegada do outro lado (mas inteira, não como nós), então
conversávamos com ela e traduzíamos para os pais do nosso corpo.
Cedo de manhã, antes de Saul e Saachi
acordarem, A Ada (nosso corpo) escapava do apartamento para visitar
os filhos do vizinho. Eles a ensinaram a roubar leite em pó e
colá-lo ao céu da boca com a língua, despedaçando-o aos poucos,
aquela doçura de cheiro de bebê. Depois de alguns anos, Saul e
Saachi mudaram a família mais para frente na rua, para o Número
Três, que tinha mais quartos e mais um banheiro. O Número Dezessete
acabou sendo demolido e alguém construiu outro imóvel lá, uma casa
que não se parecia em nada com a antiga, sem tijolos vermelhos.
Mas os tijolos vermelhos ainda estavam lá
quando Saachi desfraldou nosso corpo, usando um penico com assento de
plástico azul. A Ada talvez tivesse três anos, metade de seis, algo
assim. Ela entrou no banheiro onde o penico estava e abaixou as
calcinhas, sentando cuidadosamente, porque ela era boa nisso. Ela era
boa em outras coisas também – chorar, por exemplo, que a enchia de
propósito, reabastecendo todas aquelas fendas vazias. Então quando
levantou os olhos e viu uma cobra enorme enrolada no piso em frente
ao penico, a primeira coisa que nosso corpo fez foi gritar. A píton
elevou a cabeça e parte do corpo, o resto enrolado, as escamas
deslizando gentilmente em si mesmas. Ela não piscou. Através de
seus olhos Ala olhava para nós, e através dos olhos de A Ada nós
olhávamos para ela – todos nós olhando uns para os outros pela
primeira vez.
Foi um bom grito: alto, usando quase todo
o pulmão. Pausamos apenas para inspirar rajadas quentes de ar para a
próxima rodada. Esses gritos foram uma das primeiras coisas
percebidas por Saachi quando nosso corpo era bebê. Tornou-se piada
na família: “ iyoh, você tem uma bocona!”.
Chima fora uma criança muito quieta,
então ninguém esperava que A Ada fosse ser tão barulhenta. Depois
de Saachi alimentar e banhar Chima, ela podia deixá-lo no cercadinho
e ele ficaria brincando, tranquilamente, sozinho. Quando nosso corpo
tinha seis meses, Saachi nos levou para Malásia, no outro lado do
Oceano Índico, pela Pakistan Airlines com escala em Carachi. A
equipe entregou-lhe um bercinho para nos colocar, mas nós choramos
com tanta força que Saachi deu para A Ada um pouco de hidrato de
cloral para fazê-la calar a boca.
Em Aba, Chima nos encarava maravilhado
porque nosso corpo gritava sempre que não conseguíamos o que
queríamos. Há limitações na carne que intrinsecamente não fazem
sentido, restrições deste mundo que são diametralmente opostas às
liberdades que tínhamos quando acompanhávamos aquelas paredes azuis
e entrávamos e saíamos do nosso corpo quando queríamos. Este mundo
devia se dobrar – era como havia funcionado antes de nosso corpo
deslizar por anéis e paredes de músculo, abrir os olhos e anunciar
nossa chegada em um grito. Permanecemos adormecidos; porém, nossa
presença moldou o corpo e o temperamento de A Ada. Ela arrancava
todos os botões das almofadas e desenhava nas paredes. Todos já
estavam tão acostumados à má-criação e aos gritos que quando A
Ada estava encarando a cobra, petrificada de medo e projetando seu
pavor pela boca, eles não lhe deram atenção. “Ela só quer as
coisas do jeito dela”, disseram, sentados na sala, bebendo garrafas
de cerveja Star. Mas desta vez, ela não parou. Saul franziu o cenho
e trocou um olhar com a esposa, preocupação em seus rostos.
Levantou-se e foi atrás da criança.
Veja, Saul era um homem Igbo moderno. Ele
havia estudado medicina com uma bolsa de estudos na União Soviética,
e depois passado muitos anos em Londres. Ele não acreditava em
bobagens, em qualquer coisa que dissesse que uma cobra significava
qualquer coisa além de morte. Quando viu A Ada, seu bebê, com
lágrimas escorrendo pelo rosto, chorando de medo de uma píton, um
medo invernal tomou seu coração. Ele a agarrou e levou-a embora,
pegou um machete, voltou e despedaçou a píton. Ala (nossa mãe) se
dissolveu entre escamas quebradas e pedaços de carne; ela voltou,
não retornaria. Saul estava com raiva. Era um sentimento que trazia
conforto, como chinelos velhos. Ele andou de volta para a sala, a mão
segurando metal ensanguentado, e gritou para o resto da casa.
– Quando aquela criança chorar, não
ignorem. Vocês ouviram?! – A Ada se encolheu nos braços de
Saachi, tremendo.
Ele não tinha ideia do que havia feito.
Akwaeke Emezi, in Água doce
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