Assisti à Gorda, peça teatral em
cartaz no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo. Ri muito. Em
certo momento, meu riso ficou triste. Eu estava triste. Não pela
gorda da peça, mas por me reconhecer no preconceito contra ela. No
final, chorei.
Este é o enredo. Helena e Tony se
conhecem num restaurante. Ela é gorda. Não gordinha. Gorda mesmo.
Helena é vivida com muita competência pela atriz Fabiana Karla, de
Zorra Total (TV Globo). Segundo a sinopse oficial, a
personagem está 30 quilos acima do peso. Se compararmos com uma das
modelos da moda, deve estar uns 50. Tony (o ótimo Michel Bercovitch)
gosta dela. Ela é inteligente, divertida, sensual. Bonita. Helena
gosta dele. Os dois se apaixonam. Mas como um cara jovem,
bem-sucedido, MAGRO e disputado pelas mulheres MAGRAS pode escolher
uma gorda, amar uma gorda, ser feliz com uma gorda?
A reação social diante da versão de
amor impossível da nossa época é protagonizada por Caco (Mouhamed
Harfouch), amigo e colega de trabalho de Tony, e por Joana (Flávia
Rubim), sua ex gostosa, cujo maior temor da vida é engordar. São
eles que representam, no enredo e no palco, pessoas como nós —
sempre menos magras do que gostariam, magras o suficiente para não
serem chamadas de gordas na rua.
O texto do americano Neil Labute é
inteligente, rápido, fatal. Rimos muito. Primeiro, com ela. Helena é
uma mulher bem-humorada. Como muitos gordos, defende-se fazendo
piadas sobre seu tamanho. A velha regra: adiante-se, ria de si mesmo,
antes que os outros o façam com a crueldade habitual. Se perder o
timing, não acuse o golpe — ou nunca mais o deixarão em
paz.
Aos poucos, começamos a rir muito dela
(e não mais “com” ela), pelas piadas de Caco, ao descobrir que o
amigo está namorando uma “porca gorda”. Fat pig é o nome
original da peça. Mas gostamos de Helena, testemunhamos o
apaixonamento dos dois, sabemos que eles são felizes juntos. E
passamos a nos sentir mal de rir, ainda que continuemos rindo. Não
queremos ser como Caco — muito menos como Joana. Mas somos tão
parecidos!
Nós — o senso comum sentado na plateia
— somos o mais próximo de um vilão que essa peça produz. O texto
e os atores são competentes o suficiente para fazer com que a gente
prefira não vencer. Torcemos para que Helena e Tony consigam ficar
juntos, apesar de nós. Torcemos para que eles consigam vencer nosso
preconceito e nos tornar melhores do que somos. Não sei se
torceríamos assim num episódio da vida real. E esta é a questão
que a peça também nos deixa.
O final é brilhante.
Acho que vale a pena pensar sobre as
questões que essa peça provoca. Começando por: qual é o nosso
problema com os gordos?
Sobre a transformação do padrão de
beleza, das rechonchudas musas da Renascença às modelos esquálidas
e/ou musculosas de hoje, já se escreveu bastante. A pergunta que me
desperta maior interesse não se refere — apenas — ao fato de
acharmos as gordas feias, de relacionarmos gordura com feiúra. A
questão que mais me intriga é: por que muitos acham as gordas (e os
gordos) repugnantes? Se você não disse ou pensou, já ouviu alguém
dizer: “Olha que gorda nojenta!”.
Horrível. Mas tão comum que nos obriga
a ir em frente.
Com todas as diferenças que, para nossa
sorte, garantem a diversidade do mundo, somos impelidos a ser
politicamente corretos. Fazer piadas com aquelas que foram as vítimas
de sempre, até não muito tempo atrás, como negros, gays,
deficientes etc., pega mal hoje em dia. Temos de ser politicamente
corretos ou corremos o risco de ser processados — ou mesmo de
acabar na cadeia. Por que o privilégio de não ser ridicularizado
não foi estendido aos gordos? Sobre os gordos podem ser ditas as
coisas mais cruéis. E ainda se manter do lado certo da força.
O que diz o senso comum sobre os gordos?
Primeiro, que são feios. Em geral, o máximo de elogio que um gordo
consegue arrancar é: “Que pena, tem um rosto tão bonito...”.
Dizem que são preguiçosos. Se fizessem exercícios — e como ousar
não se exercitar neste mundo? —, perderiam aquela pança.
Afirma-se também que são sem-vergonhas. Se tivessem vergonha na
cara, respeito próprio, fechariam a boca e seriam magros. E, então,
poderiam pertencer ao clube dos magros felizes (ahn?!).
Portanto, segundo o senso comum, além de
feios e preguiçosos, gordos também teriam falhas de caráter. E,
como tudo, para as mulheres acima do peso é ainda pior. Neste mundo
em que se compram peitos, bocas e bundas no crediário, soa
imperdoável não arrancar a gordura a faca. Já ouvi muitas vezes
frases como estas, referindo-se a alguém com mais quilos do que o
“permitido”: por que não faz logo uma cirurgia de redução de
estômago? Seguida por uma cirurgia reparadora e uma lipoescultura?
Simples assim.
Sobre o estado psíquico dos gordos, a
percepção é confusa. Por um lado, persiste a ideia de que todo
gordo é engraçado. É um pândego. Como bobo da corte ou
comediante, ele pode ser aceito. Nós mesmos só conhecíamos Fabiana
Karla como atriz do Zorra Total. Ninguém imaginou que, ainda
que fazendo o papel de “gorda”, ela pudesse ter outros recursos
que não a graça. Que os gordos mostrem nuances que não virem piada
nos surpreende. Que eles possam nos fazer pensar sobre outras
dimensões da vida é inesperado. Que tenham questões existenciais
que não girem em torno de uma balança é estarrecedor.
Por outro lado, o senso comum também diz
que, se é gordo, só pode ser infeliz. A maioria de nós acredita e
repete isso. Fulano come demais, é infeliz. Fulano não consegue
fechar a boca, é infeliz. Fulano compensa a infelicidade comendo.
Ora, desde quando magreza se tornou sinônimo de felicidade? Você,
magro ou magra, é loucamente feliz? Está rolando de rir vida afora?
Ops, magros não rolam.
O mais disfarçado dos preconceitos vem
embalado pelo discurso da saúde. É verdade que a obesidade está
crescendo no Brasil. E é verdade que isso é sério. E é legítimo
e relevante pensar e discutir o fenômeno com responsabilidade.
Mas será que não há um exagero nisso?
Ou pelo menos do uso preconceituoso que se faz de uma questão tão
séria? Hoje, quando olham para um gordo, além de feio, preguiçoso
e sem-vergonha, muitos enxergam também um doente. Gordura virou
sinônimo de doença. E nossa sociedade, que morre de medo de morrer,
foge da doença. E das pessoas doentes. Os gordos parecem ser os
leprosos de nosso tempo. E esta seria minha primeira hipótese para a
repugnância que as pessoas gordas parecem evocar.
Não se trata de afirmar que a gordura
não está relacionada a doenças — ou que a obesidade não seja
uma doença. A Organização Mundial da Saúde afirma que é, quem
sou eu para discordar. Só tento mostrar que é preciso tomar cuidado
para não cometermos as mesmas crueldades que nossos antepassados
consumaram ao exorcizar epiléticos, isolar leprosos. Todas essas
práticas sempre foram realizadas “em nome do bem”. Guardadas as
proporções e o momento histórico, nossa sociedade pode estar
transformando os gordos, com os instrumentos desta época, nos
culpados pela nossa impotência diante da doença e da morte.
Hoje a vida tornou-se uma patologia.
Difunde-se que muito do que sentimos não deveríamos sentir. O ideal
seria só sentir felicidade num corpo magro, musculoso e eterno. Para
cada sentimento e estado que extrapole esses limites impossíveis, há
uma patologia e uma pilha de remédios e procedimentos cirúrgicos
para “curá-la”. Acredito que vale a pena ter um pouco de
cautela, enfiar alguns pontos de interrogação na cabeça, antes de
sairmos rotulando todos os gordos como doentes. E, pior, com uma
doença que dependeria só de boa vontade individual para ser curada.
Eu sou mais ou menos magra. Longe, bem
longe do peso de uma modelo, mas ninguém me chamaria de gorda na
rua. A maior parte da minha família é magra. E todos nós temos
doenças. Eu tenho quatro hérnias de disco. Meu pai, mesmo com um
metabolismo fenomenal e índices de colesterol e triglicérides
perfeitos, tem problemas cardíacos desde jovem. Meu irmão do meio
não tem um grama de gordura a mais no corpo, come alimentos
saudáveis e se exercita com método: a cada semana corre quatro
dias, faz musculação e natação em outros dois. Ainda assim, é um
pré-diabético.
Parece-me lógico que o envelhecimento
traga doenças. A vida nos gasta. Nosso corpo também tem prazo de
validade. Pela biologia, estamos prontos para morrer assim que
alcançamos a idade reprodutiva, transmitimos nossos genes e criamos
nossa prole. Conseguimos, à custa da Ciência (e ainda bem que
conseguimos!) espichar nosso tempo de vida e até com qualidade
crescente. Mas, infelizmente, não vamos nos livrar das doenças. Nem
de morrer. É duro olhar para os limites. Mas não fazê-lo pode ser
pior.
Os gordos podem ser vítimas de nosso
medo de morrer. Pagam um preço alto pela nossa dificuldade de lidar
com a desordem inerente à existência humana. Tornamos suas vidas
insuportáveis — inclusive as lojas bacanas, que se recusam a
oferecer números maiores que 42 — porque eles apontam em seus
excessos aquilo que nos falta a todos: controle sobre a vida. Esta é
uma hipótese apenas. Acredito que existam muitas outras.
Acho importante tentar compreender por
que insistimos em jogar os gordos na fogueira contemporânea. Por
todas as razões que dizem respeito à vida de todos — e
principalmente para não infligirmos sofrimento ao outro que nos
ameaça com sua diferença. Só sei o óbvio: tanto medo, capaz de
causar repugnância, revela mais sobre os magros do que sobre os
gordos.
Talvez, num dia próximo, não seja
preciso escrever em termos de “nós” — e “eles”. A vida é
diversa. Sempre houve os magros, os gordos, os altos, os baixos, os
de olhos azuis, os de pele escura. Essa riqueza é um patrimônio
humano que fez muito bem à espécie. Ser capaz de reter gordura,
aliás, garantiu nossa sobrevivência por milênios. Quando os gordos
lutam para ser magros, estão brigando contra a biologia. Algo nada
fácil de fazer. Muito menos de vencer.
Se engordamos — por herança genética
ou outras razões —, não há um só caminho a seguir, uma única
estrada para a luz. Pelo menos acredito que não. Emagrecer não é a
única alternativa — seja para atender ao padrão de beleza vigente
ou para responder ao modelo de saúde atual. A vida é um pouco mais
complexa do que isso. E há muitas maneiras de medir sua qualidade —
assim como o significado de uma existência plena varia de uma pessoa
para outra, tanto quanto sua disposição genética para esta ou
aquela doença.
Se um dia eu engordar muito e tiver
problemas de saúde por causa do peso, possivelmente vou optar por
continuar comendo minha feijoada semanal. Porque comer o que gosto é
uma dimensão essencial da vida para mim — importante o suficiente
para não abrir mão dela. Para outra pessoa, privar-se de seus
pratos preferidos pode valer a pena em nome de uma vida mais longa ou
de vestir um tamanho 38. Cada um tem suas prioridades. É bom
lembrarmos que o pensamento dominante atual sobre a saúde não é
apenas um produto do avanço da medicina, mas um produto da cultura.
E do mercado.
A “gorda” da peça teatral não quer
ser magra. Depois de um percurso sofrido na adolescência, ela gosta
do que é. E nós, na plateia, também gostamos. Em determinado
momento, percebemos que, se ela reduzir o estômago e fizer uma
superdieta, algo essencial dela se perderá. Não é apenas uma
questão de arrancar gordura do corpo. O que está em jogo é bem
mais do que isso.
Gorda nos dá a oportunidade de
enxergar mais do que um acúmulo de células adiposas em outro ser
humano. Ao olhar para Helena, a personagem de Fabiana Karla, nos
deparamos também com o tamanho extra large de nosso
preconceito. Mesmo quando embalado em nossas melhores intenções.
Eliane Brum, in A menina quebrada
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