quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Nós

A píton engole qualquer coisa por inteiro.

Isso é tudo, no fim, uma litania de loucura – as cores, os sons que faz em noites pesadas, o gorjeio no ombro pela manhã. Pense em breves insanidades dentro de você, não apenas as que floresceram conforme você se tornava uma versão mais alta e pecaminosa de si, mas as que nasceram com você, escondidas atrás do fígado. Considere-nos, por exemplo.
Não viemos sozinhos. Com uma força como a nossa, arrastamos outras coisas conosco – um pacto, pedaços de ossos, uma rocha ígnea, veludo gasto, e uma faixa de couro humano amarrando tudo. Este objeto composto se chama iyi-uwa, o juramento do mundo. É uma promessa que fizemos quando éramos livres e flutuávamos, antes de adentrarmos A Ada. O juramento diz que voltaremos, que não ficaremos neste mundo, que somos leais ao outro lado. Quando espíritos como nós são colocados dentro de carne, este juramento se torna um objeto real, que funciona como uma ponte. Fica normalmente enterrado ou escondido, porque é o caminho de volta, se você compreende que a porta é a morte. Humanos com bom senso sempre procuram o iyi-uwa, para desenterrá-lo ou arrancá-lo de carne, de qualquer lugar secreto onde esteja, para destruí-lo, de modo que o corpo de seu filho não morra. Se o ventre de Ala carrega o mundo inferior, então o iyi-uwa é o atalho de volta para ele. Se os pais humanos de A Ada o encontrassem e o destruíssem, nunca poderíamos voltar para casa.
Não éramos como outros ogbanje. Não o escondemos debaixo de uma árvore ou dentro de um rio ou nas fundações enroladas da casa de Saul na aldeia. Não, nós o escondemos muito melhor. Nós o desmontamos e o espalhamos. A Ada veio com ossos, de qualquer modo – quem perceberia os fragmentos entrelaçados? Escondemos a rocha ígnea na boca de seu estômago, entre o revestimento mucoso e a camada muscular. Sabíamos que a atrasaria, mas Ala carrega um mundo de almas mortas dentro de si – o que seria uma simples pedra para sua filha? Colocamos o veludo dentro das paredes da vagina e cuspimos no couro humano, molhando-o como um riacho. Ele se ondulou e ganhou vida, e nós o esticamos sobre as omoplatas, colocando-o sobre as costas e costurando-o à sua outra pele. Nós a transformamos no juramento. Para destruí-lo, eles teriam que destruí-la. Para mantê-la viva, eles teriam que mandá-la de volta.
Nós a fizemos nossa de diversas maneiras, e mesmo assim esmagávamos a criança. Mesmo que nos mantivéssemos enrolados e inativos dentro dela, ela já sentia a perturbação que nossa presença causava. Dormimos tão mal naquela primeira década. A Ada vivia tendo pesadelos, sonhos aterrorizantes que a levavam de novo e de novo para a cama dos pais. Eram as horas escuras da manhã e ela despertava em um medo de suar frio e entrar no quarto deles na ponta dos pés, abrindo a porta gentilmente com um rangido. Saul sempre dormia no lado da cama mais perto da porta, com Saachi a seu lado, perto da janela. A Ada ficava ao lado da cama com lágrimas escorrendo pelo rosto, abraçando o travesseiro até um deles sentir que ela estava lá e acordar para encontrá-la soluçando no escuro, vestindo o pijama vermelho com blusa listrada de branco.
O que aconteceu? – mil vezes.
Tive um pesadelo.
Coitadinha. Não era culpa dela – ela não sabia o que vivia dentro de si, não ainda. Como uma criança chutando enquanto dorme, atingíamos sua mente inconsciente, mexendo-a e virando-a. Os portões estavam abertos e ela era a ponte. Não tínhamos controle; estávamos sempre sendo puxados de volta para casa, e quando ela estava inconsciente, havia mais deslize, mais impulso naquela direção.
A Ada nos surpreendeu, no entanto, quando começou a adentrar nosso domínio. Acontecia um pesadelo, suspiros cortados de medo enquanto nos batíamos, e então, em uma noite, de repente, ela estava lá ao nosso lado, observando o sonho, tentando sair. Ela tinha sete ou oito anos e seus olhos eram jovens e calculistas – ela era brilhante, mesmo antes de a afiarmos. Era um dos motivos por que Saul casara com Saachi; ele dizia que precisava de uma mulher inteligente para lhe dar filhos que seriam gênios.
No sonho, A Ada imaginou uma colher. Foi estranho, só uma colher de sopa normal, flutuando. Mas era de metal e fria, o que a tornava real. Perto dela, toda a bile que vínhamos criando era tão obviamente falsa. Ela olhou para a colher, identificou a que domínio pertencia (ao dela, não ao nosso), e acordou. Ela fez isso de novo e de novo, escapando de pesadelos. Chegou um momento em que nem precisava mais da colher. O sonho se retorcia, ficando escuro, e A Ada lembrava a si de quem era, que, sim, ela estava em um sonho cheio de horror, mas ela ainda tinha o poder de ir embora. Com isso, ela se arrastava para fora através de camadas viscosas de consciência até estar acordada, totalmente, as costelas doendo. Ela, nossa coleçãozinha de carne, tinha construído uma ponte sozinha. Ficamos tão orgulhosos. Nós a assistíamos de nosso domínio, naqueles tempos em que não estávamos prontos para acordar.
E então, um dia, chegou o despertar.
Era dezembro, durante o harmatão, quando A Ada estava na aldeia. Saul sempre levava a família para Umuecheoku para o Natal, e depois A Ada ia para Umuawa passar o Ano Novo com a melhor amiga, Lisa. A família de Lisa era um clã bagunceiro e barulhento, pessoas que seguravam A Ada em seus braços e lhe davam beijos de boa noite e bom dia. A Ada não era acostumada a tanto contato. Saul e Saachi não tinham o costume de abraçar, não assim. Então ela amava a família de Lisa, e foram eles que a levaram à cerimônia mascarada onde nosso despertar chegou.
Aquela noite estava preta como tamarindo aveludado, espessa de um jeito que fazia as pessoas andarem juntas umas das outras, amontoadas em um grupo que se movia até a praça da aldeia. A Ada ouviu a música antes de chegarem à multidão pulsante. Uma por uma, as pessoas ao redor começaram a amarrar bandanas e lenços sobre o nariz e a boca antes de mergulhar na nuvem de poeira onde estavam todos dançando e se jogando na música, nos sons do ekwe e do ogene.
Lisa entregou-lhe um lenço branco, o algodão caindo sobre seus dedos como a asa de uma garça. A Ada pausou na beirada, os chinelos afundando brevemente na areia pálida e pesada, e observou. A batida rápida do ekwe era alta e baixa, baixa baixa baixa, alta alta, o som forte e ensurdecedor. Lisa entrou na multidão, os olhos enrugados de riso acima da bandana vermelha enrolada no rosto. A Ada sentiu o coração cambalear com o ogene. Amarrou o lenço ao redor do rosto e os pés levantaram, arremessando-a para dentro da massa dançante. A poeira flutuava no ar, leve contra o rosto, gentilmente arranhando os olhos. Respirava na pele. Areia voejou por seus pés e a pele em suas costas comichou.
Os tambores balançavam tudo, e a multidão se separou em uma pressa frenética quando os mascarados se lançaram sobre as pessoas, brandindo chicotes e rompendo o ar. A ráfia voava selvagem ao redor deles, o couro de vaca brotando como uma fonte de suas mãos. As coleiras estavam amarradas ao redor de suas cinturas e os domadores gritavam e puxavam enquanto os mascarados açoitavam as pessoas com nítido deleite. A música cantava comandos em uma antiga linguagem herdada. Ela adentrou nosso sono, nosso repouso inquieto; nos chamava tão claramente quanto sangue.
Você já nos esqueceu?
Arrepiamos. A voz era familiar, em camadas e muito, muito metal rasgando o ar. O chão tremeu.
Não esquecemos nenhuma de suas promessas, nwanne anyi.
O ar rachou quando nos lembramos. Era o som de nossos irmãosirmãs, os outros filhos de nossa mãe, os que não atravessaram conosco. Ndi otu. Ogbanje. Suas máscaras terrenas atravessavam os humanos e tinham o cheiro dos portões, calcário azedo. Cerimônias mascaradas convidam espíritos, dando-lhes corpos e rostos, e por isso eles estavam aqui, nos reconhecendo em meio a suas brincadeiras.
O que vocês estão fazendo dentro desta menina tão pequena?
A Ada levantou os braços e girou. As pessoas ao redor espalharam-se repentinamente e ela correu junto, gritando quando um mascarado se jogou em sua direção. Ele parou e levantou-se, balançando suavemente. Tinha uma cara grande da cor de ossos velhos, uma boca crua e vermelha. Estava envolto em panos roxos e equilibrava um ornamento esculpido na cabeça, pintado em cores vivas. A luz da lua se derramava sobre sua forma. Estremecemos em nosso sono, o gosto de calcário limpo passando através de nós. Irmãoirmã inclinou a cabeça e o ornamento angulou-se agudamente contra o céu escuro. Estava com raiva.
Acorde!
Com o som de sua voz, bem dentro de A Ada, mais fundo do que as cinzas de seus ossos, nossos olhos rasgaram-se. O domador do mascarado puxou a corda que estava em sua cintura e eles se afastaram. A Ada ficou paralisada por um momento até Lisa aparecer, agarrando suas mãos e girando em círculos.
Foram embora um pouco depois da meia-noite, os primos de Lisa rindo e quebrando garrafas de cerveja no chão em um jato de vidro verde. Em casa, A Ada desamarrou o lenço e o segurou, desdobrado. Havia três marcas marrons, duas para suas narinas, uma para sua boca. Queríamos que ela o tivesse guardado, mas humanos são assim. Coisas importantes escapam no momento, quando ele está nítido e eles são jovens o bastante para acreditar que o sentimento permanecerá. Depois, A Ada lembraria daquela noite com estranha clareza como um dos poucos momentos genuinamente felizes de sua infância. Naquele momento, quando nossos olhos abriram na praça empoeirada da aldeia e acordamos no mundo dela e no nosso pela primeira vez, foi tudo puro esplendor. Éramos um, juntos, em equilíbrio por um breve momento aveludado em uma noite aldeã.
Perguntamo-nos nos anos que se seguiram o que ela teria sido sem nós, se ela ainda teria enlouquecido. E se nós tivéssemos permanecido adormecidos? E se ela tivesse ficado para sempre naqueles anos em que pertencia a si? Olhe para ela, rodopiando pelo condomínio vestindo shorts pretos de batik e uma camiseta de algodão, o longo cabelo preto trançado em dois arcos amarrados com fitas coloridas, os dentes brilhando e um chinelo arrebentado. Como um sol ofegante.
A primeira loucura foi que nascemos, que enfiaram um deus em um saco de pele.

Akwaeke Emezi, in Água Doce

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